Os subscritores, devidamente identificados em baixo, pediram a este blogue para divulgar esta carta aberta, que de resto já está a circular na comunidade académica portuguesa:
Com esta carta aberta, endereçada a toda a comunidade
do Ensino Superior, e em particular à
comunidade dos matemáticos,
pretendemos tornar públicos
alguns acontecimentos relativos a um concurso público, aberto em janeiro de 2015, para preenchimento
de uma vaga de Professor Adjunto na área
de Matemática
Aplicada no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa (ISCAL) do
Instituto Politécnico
de Lisboa (IPL).
Os autores desta carta fizeram parte
dos 38 candidatos ao referido concurso, não tendo nenhum de nós sido vencedor. Entre os candidatos, houve um
entendimento bastante generalizado de que os resultados foram muito incorretos,
tendo sido apresentadas 14 contestações
à lista de ordenação provisória proposta pelo júri. Nenhuma destas
contestações foi
aceite, pelo que 3 dos autores desta carta interpuseram ainda recurso tutelar
junto do presidente do IPL. Novamente sem sucesso. Os resultados do concurso foram
homologados em dezembro de 2015.
Em nossa opinião, este caso mostra
claramente que um concurso pode satisfazer todas as normas em vigor
(nomeadamente as que dizem respeito à
constituição
do júri e à grelha de avaliação), pode ser disputado
por um grande número
de candidatos com currículos
de qualidade e, ainda assim, não
determinar uma seleção
minimamente aceitável
do candidato vencedor. Por entendermos que este é um caso exemplar, decidimos divulgar os detalhes do
processo, para que a comunidade universitária, e esperamos o próprio legislador, possam ter uma ideia mais precisa
da forma como alguns concursos ainda decorrem. O nosso objetivo é dar um contributo para
aumentar a transparência
destes processos e ajudar a repensar as regras que enquadram estes concursos.
Este é um assunto que a todos diz respeito. É sabido que o país investiu muito na
formação de novos
doutorados e investigadores, e que tem havido muita dificuldade em integrar
esta nova geração
nas instituições
de ensino superior. É um
lugar-comum que isto constitui um entrave à modernização
e progresso das próprias
instituições.
Simultaneamente, e principalmente, é
também um
problema para os mais jovens, alguns com percursos de muito mérito, e que veem o país fechar-lhes as portas
a uma vida profissional satisfatória.
O concurso público em
questão foi aberto pelo Edital Nº 19/2015 publicado no Diário da República, 2ª
série, Nº 6, de 9 de janeiro de 2015, e o Júri teve a seguinte composição:
· Presidente do Júri:
- Professora Ana Cristina Arrabaça Miranda Perdigão, Vice-Presidente do Instituto Politécnico de Lisboa e
Professora Coordenadora do Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa;
· Vogais:
- Prof. Doutor Jorge Sebastião
de Lemos Carvalhão Buescu, Professor
Associado com Agregação
da Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa;
- Prof. Doutor Fernando Manuel Pestana da
Costa, Professor Associado com Agregação da Universidade Aberta;
- Prof. Doutor Fernando José
Malheiro de Magalhães, Professor
Coordenador do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto do
Instituto Politécnico
do Porto;
- Prof. Doutor Carlos Alberto Martins André,
Professor Associado da Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa;
- Prof.ª Doutora Sandra Cristina Dias Nunes, Professora
Coordenadora da Escola Superior de Ciências
Empresariais do Instituto Politécnico
de Setúbal.
Consta do referido Edital a abertura
de um concurso para Professor Adjunto na área de Matemática Aplicada com as seguintes ponderações, previamente
aprovadas pelo júri
do concurso, tendo por objetivo a ordenação dos candidatos:
a) Desempenho Técnico-Científico e Profissional na área (30 %).
b) Avaliação
da Componente Pedagógica
(50 %).
c) Outras atividades relevantes para a missão da instituição (20 %).
Destacamos a distribuição das ponderações relativas ao
desempenho Técnico-Científico (alínea a) que se divide da
seguinte forma:
“a1) Atividades de
divulgação científica e tecnológica e de valorização económica e social do conhecimento
(moderador em palestras, seminários
ou congressos, membro de corpo editorial ou de revisão/arbitragem científica de revistas técnicas, serviços à
comunidade, etc.) —
(15%).
a2)
Coordenação de
projetos científicos/desenvolvimento,
orientação, arguição e participação em júris de investigação, dissertações, relatórios de estágio e projetos e
organização de
eventos científicos
— (10%).
a3)
Livros, capítulos
de livros, comunicações
científicas, artísticas e técnicas — (5%).”
Para além destes critérios, é
de notar que foi avaliada, na alínea
c), a “Participação em órgãos e nas atividades de
gestão da instituição” (10%), e a “Participação em grupos/comissões de trabalho
institucionais, ações
de divulgação da
instituição” (10%).
Alguns aspetos
desta grelha são
surpreendentes. Em particular, não
encontramos nenhuma ponderação
para a classificação
da produção científica, nomeadamente
relativa à autoria
de publicações em
revistas internacionais da área
científica do
concurso, sendo este um dos principais critérios para avaliar o mérito científico
de um candidato, em qualquer concurso para docente do ensino superior. É bom relembrar que o
objetivo da lei é o
de selecionar candidatos com um percurso científico de qualidade. Consultando por exemplo o
Decreto-Lei n.º
207/2009 de 31 de Agosto, citam-se os Artigos 15º-A (finalidade dos concursos): “Os concursos (…) destinam-se a
averiguar o mérito
dos candidatos, da sua capacidade profissional, da sua atividade científica, técnica e de investigação (…)” e o Artigo 30.º-A (deveres do pessoal
docente): “d)
Manter atualizados e desenvolver os seus conhecimentos culturais e científicos e efetuar
trabalhos de investigação,
numa procura constante do progresso científico e técnico
e da satisfação
das necessidades sociais”.
Para lá do que diz
a lei é isso que,
reconhecidamente, melhor serve os interesses dos utentes do ISCAL e também o desenvolvimento da
ciência no país. Parece-nos óbvio que esta grelha não cumpre esse objetivo.
Concorreram
38 candidatos ao referido concurso. Da aplicação que o júri fez da grelha de
avaliação resultou como primeira classificada uma candidata doutorada em Ciências
da Educação que já lecionava na Instituição responsável pelo concurso há
cerca de quatro anos, com a categoria de Professora Adjunta Convidada. A
referida candidata não é autora de nenhum artigo científico em revista
internacional na área do concurso, não participou em nenhum projeto de
investigação na área da Matemática ou Matemática Aplicada (ou tão pouco em
algum projeto financiado pela FCT), não é autora de nenhum livro, nem coordenou
projetos ou realizou atividade editorial nas Áreas da Matemática ou
Matemática Aplicada.
Na tabela
seguinte são
apresentados os dados que constam nas bases de dados Web of Science e MathSciNet relativos
aos trabalhos científicos
da candidata vencedora do concurso, e de uma amostra dos restantes candidatos,
bem como a respetiva posição
na lista de ordenação
final do concurso. O artigo da candidata vencedora que é mencionado na tabela é uma publicação
em ata de conferência
na área de Ciências da Educação.
Posição na lista de
ordenação
final
|
Nº artigos
Web of Science
|
Nº artigos
MathSciNet
|
Nº citações
Web of Science
|
1
|
1
|
0
|
0
|
2
|
45
|
34
|
377
|
5
|
9
|
9
|
107
|
7
|
12
|
16
|
11
|
8
|
20
|
17
|
108
|
10
|
11
|
11
|
136
|
11
|
13
|
18
|
4
|
18
|
9
|
8
|
22
|
26
|
26
|
32
|
437
|
Quadro 1: Posição dos candidatos na lista de ordenação final e alguns
indicadores de desempenho científico.
Para além do número de artigos e de citações
destes concorrentes, gostaríamos
ainda de salientar que uma pesquisa na base de dados Web of
Science, revela igualmente que alguns destes publicaram em revistas de
prestígio como Advances in
Mathematics, Communications on Pure and Applied Mathematics,
SIAM Journal on Scientific Computing, Annals of Pure and Applied Logic, SIAM Journal on Control and Optimization, Journal de Mathématiques Pures et Appliquées, Transactions of the
AMS, Journal of the EMS, Proceedings of the LMS, Communications in Mathematical Physics, entre muitas outras.
Poderíamos ser levados a pensar que a candidata venceu o
concurso porque as suas pontuações
na componente pedagógica
e em outras atividades compensaram pontuações muito fracas na componente científica. Mas isso não foi verdade. Na
tabela seguinte são apresentadas as pontuações atribuídas na componente científica pelos vários membros do júri (com exceção
da presidente do júri, que não atribuiu classificações)
aos candidatos que constam da tabela anterior (as pontuações foram normalizadas de acordo com o procedimento
definido no edital do concurso, tendo por referência uma
pontuação
total máxima de 100 pontos):
Posição
|
Avaliador 1
|
Avaliador 2
|
Avaliador 3
|
Avaliador 4
|
Avaliador 5
|
Média
Componente Científica
|
1
|
18,0
|
19,4
|
28,8
|
20,3
|
27,4
|
22,8
|
2
|
30,0
|
24,2
|
31,2
|
21,5
|
26,0
|
26,6
|
5
|
27,0
|
21,0
|
31,9
|
16,5
|
41,1
|
27,5
|
7
|
23,0
|
22,6
|
27,4
|
17,7
|
26,7
|
23,5
|
8
|
18,0
|
33,9
|
28,9
|
20,3
|
31,5
|
26,5
|
10
|
30,0
|
41,9
|
27,4
|
24,1
|
30,8
|
30,8
|
11
|
11,0
|
22,6
|
34,2
|
15,2
|
15,8
|
19,8
|
18
|
7,0
|
17,7
|
21,9
|
11,4
|
20,5
|
15,7
|
26
|
17,0
|
21,0
|
26,4
|
17,7
|
16,4
|
19,7
|
Quadro 2: Pontuações atribuídas na
componente científica.
Na coluna “Média Componente Científica”
do quadro anterior é apresentada a pontuação final efetivamente atribuída a
cada candidato na componente científica
(alínea (a) da grelha de avaliação). A esta pontuação foram depois somadas as
pontuações na componente pedagógica
(alínea (b)) e em outras atividades (alínea
(c)) para obter a pontuação final que determinou a lista de ordenação proposta
pelo júri. A título de exemplo, a candidata vencedora teve uma pontuação final
de 92,6/100 onde 22,8/100 dizem respeito à avaliação da componente científica.
Já o segundo classificado teve 88,9/100 de pontuação final, com 26,6/100 na
componente científica, etc.
Fazemos a ressalva que não é o nosso entendimento
que o processo de classificação
dos candidatos deva ser uma tradução
literal da sua performance nos indicadores de produção e impacto das publicações. Há
certamente muitos outros aspetos a considerar, como a área de trabalho, a
idade dos candidatos, a afinidade com o trabalho dos docentes da instituição que lançou o concurso, para
mencionar apenas alguns. Muitos destes aspetos são subjetivos e a sua ponderação é
naturalmente do âmbito
de discricionariedade do júri.
No entanto, no caso desta tabela classificativa, parece-nos que foram
ultrapassados todos os limites razoáveis:
afinal, um curriculum científico
inexistente (para a área
do concurso), é sempre
inexistente.
Estes argumentos foram apresentados ao júri nas 14 reclamações à lista provisória de ordenação final. Também se contestou o facto
de a área científica da candidata
(doutorada em Ciências
da Educação) ter
sido considerada pelo júri
como afim da Matemática
Aplicada.
O
júri do concurso decidiu por unanimidade manter a ordenação dos candidatos e a
pontuação atribuída à candidata vencedora. Em resposta à reclamação que
argumentava que a tese de doutoramento da candidata não era da área do
concurso, o júri declarou que “decidiu admitir a concurso todos os detentores
do grau de doutor que, na sua tese de doutoramento e na sua investigação, tenham
desenvolvido ou feito uso relevante de métodos matemáticos ou estatísticos,
independentemente da área científica formal em que a referida tese foi
originalmente classificada”. Por entendermos que era importante, fomos
consultar a tese de doutoramento da candidata vencedora. Constatamos facilmente
que no seu trabalho foram usados apenas métodos matemáticos e estatísticos de
nível elementar, igualmente presentes em muitos trabalhos de outras áreas científicas
como a Sociologia, História, Economia, Medicina ou Relações Internacionais. Na
maioria das teses de doutoramento nestas áreas faz-se “uso relevante” de
métodos matemáticos e estatísticos, porquanto são calculadas médias, quartis e
percentagens, apresentadas tabelas de dados numéricos e gráficos de séries
temporais, e efetuadas análises de variâncias, com o propósito de estudar o
assunto da tese. Exatamente aquilo, e apenas aquilo, que é “feito uso” na tese
da candidata. Seguindo este raciocínio chegamos à conclusão que quase todos os
doutorados em Ciências Sociais e Humanas (e por maioria de razão em todas as
outras áreas do saber) são doutorados em área afim da Matemática Aplicada, o
que é claramente um absurdo.
Por estas razões, na sequência da decisão do júri, três dos subscritores
desta carta apresentaram ainda recurso tutelar ao Presidente do Instituto Politécnico de Lisboa. Foram
apontadas, novamente, a falta de produção
científica e a
incorreta avaliação
da área de
trabalho da candidata. A 18 de Dezembro de 2015, a resposta do presidente do
IPL, sustentada por pareceres do departamento jurídico, alegou a soberania do júri.
E é assim que em 2015, uma
candidata doutorada em Ciências
da Educação, sem
um único artigo
científico
publicado, nem atividade científica
conhecida na área
da Matemática e
Matemática
Aplicada, vence um concurso para Professor Adjunto de Matemática, um concurso com
38 candidatos, alguns com prémios
Gulbenkian, vários
investigadores FCT, alguns com currículos
longos (tanto cientifica como pedagogicamente), outros extremamente promissores
e muitos, muitos matemáticos
que fazem investigação
nestas áreas.
Estes resultados foram possíveis
não obstante um
grande número de
candidatos ter apresentado reclamações,
e tentado tudo o que a lei permite para evitar este desenlace.
Em conclusão, não nos parece que o
interesse público
tenha sido salvaguardado neste concurso, começando com os critérios do edital, e terminando na escolha da candidata
vencedora. Em particular, tudo isto nos parece ir contra os objetivos de todo o
investimento feito pelo país
para desenvolver a Ciência
e o Ensino Superior.
Cabe a todos nós, fazendo ou não parte do sistema universitário, contribuir para o melhor ensino superior público possível. Assim, e por último, apelamos a todos
que ajudem a alertar para outras situações
do mesmo género,
tornando o sistema mais transparente, e aos docentes, em particular, que não aceitem colaborar em
concursos com estes critérios,
ou que ajam ativamente numa tentativa de os alterar.
Os signatários,
Pedro R. S. Antunes
Investigador FCT, GFM (UL)
Nuno Costa Dias
Professor Adjunto, Escola Náutica
Gilda Ferreira
Bolseira Pós-Doutoramento da FCT,
LaSIGE (UL)
Rui A. C. Ferreira
Investigador FCT, GFM (UL)
Alexandre Rodrigues,
Bolseiro Pós-Doutoramento da FCT, Centro de
Matemática (UP)
José Agapito Ruiz
Professor Auxiliar Convidado
Departamento de Matemática (UC)
João Filipe Lita da Silva
jfls@fct.unl.pt
Professor Auxiliar
Professor Auxiliar
Departamento de Matemática (FCT/UNL)
Hugo
R. N. Tavares
Investigador FCT, CAMGSD (UL)
Jorge F. D. Tiago
Bolseiro Pós-Doutoramento da FCT,
CEMAT (UL)
8 comentários:
“Assim, e por último, apelamos a todos que ajudem a alertar para outras situações do mesmo género, tornando o sistema mais transparente...”
Aqui fica de novo um alerta já antes divulgado: http://tempoderecordar-edmartinho.blogspot.pt/2015/12/escandalo-num-concurso-para-professor.html
Parabéns pela descrição clara e objectiva da situação. Para ver se melhoramos a transparência e aumentamos a qualidade dos concursos.
Nós cá no ensino secundário público temos a soberania do director da escola secundária. Assim, docentes do ensino secundário, de todas as áreas curriculares (Matemática, Inglês, Geometria Descritiva, História, Filosofia, Biologia, etc. etc.) são avaliados no seu desempenho docente por uma educadora de infância com habilitações para o pré-escolar e complemento de formação para o 1.º ciclo do ensino básico. :::::::::::::::::: Alguns deste professores do ensino secundário têm mestrado e doutoramento (antes de Bolonha) pela Universidade de Lisboa e pela Universidade do Porto, são investigadores colaboradores na Universidade de Lisboa, têm investigação de pós-doutoramento original, etc. etc. etc.
Bom, isto é só mais um exemplo do sistema absurdo que temos em portugal. Eu mesma já passei por vários concursos com desenlaces muito semelhantes! No ultimo concurso a que concorri na Universidade de Lisboa, fui considerada doutorada numa área não afim da Probabilidade e Estatistica porque, segundo o juri, sou doutorada em Matemática :) (e segundo o juri nao é uma area afim da Probabilidade e Estatística, de rir mas ok), mas de facto sou doutorada em probabilidade. Mas claro o concurso tinha "fotografia" e a resposta que o juri dá a quem reclama é sempre a mesma: "o juri é soberano...." Será que alguém irá um dia meter a mão nisto!?
Como é que este caso acabou? Ficou, tipo assim?
Eventualmente, mas suspeito que não antes do ano 2927!
Exactamente. E o número de publicações da candidata vencedora continua o mesmo: zero!
Obrigado, colocaram aqui uma pérola para investigar. É um daqueles casos em que o "interesse público" suplanta o "direito ao esquecimento".
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