domingo, 23 de agosto de 2015

O ensino da poesia segundo Ilse Losa

Ilse Losa, por ser de origem judaica teve, muito jovem, de deixar a Alemanha onde havia nascido para se instalar em Portugal. Isto em meados dos anos de 1930.

Nesse tempo, não obstante as feridas deixadas por uma guerra passada e as que já se esperava que fossem abertas pela seguinte, o interesse pela especificidade da infância e pela renovação da educação das crianças era largamente partilhado por académicos e intelectuais. Não será por acaso que o século XX ficou conhecido como "o século da criança".

Ilse cedo revelou este duplo interesse, começando por se dedicar à tradução de literatura infanto-juvenil e, quase em simultâneo, à escrita, que inclui contos, teatro e poesia; o ensaio veio de seguida, Alguns textos, inscritos nesta categoria, estão reunidos no livro Nós e a criança (Porto Editora, 1980, 3.ª edição).

Desse livro transcrevo um texto - A poesia - (pp. 151-153) que julgo importante para os educadores que entendam proporcionar aos mais pequenos o contacto a poesia, literatura que, como se sabe, é da ordem da arte.
"Geralmente, as crianças tomam contacto com ela na escola. Aí o poema é desfolhado. analisado gramatical e metricamente. Em suma, muito mastigado. A criança não se apercebe da beleza nem do significado real do texto que acaba por se lhe afigurar repulsivo como a comida que não lhe apetece comer. 
Lembro-me que numa escola que frequentei na Alemanha tivemos, em certa altura, de analisar, recitar, dividir em orações um longo poema de Schiller. Cheguei a ganhar-lhe tal aversão que, durante anos, não conseguia achar-lhe beleza nem aperceber-me do seu alto sentido. Só muito mais tarde, quando me dispus a revê-lo com calma e voluntariamente comecei a apreciá-lo. 
De um modo geral, a criança não toma contacto com a pessoas se excluirmos o escasso contacto na escola. Ou então - e pior ainda - é domesticada por adultos «ambiciosos» como recitadora «profissional». Ouvi um menino de cinco anos recitar durante uma reunião de adultos. Agitava os braços, cruzava-os sobre o peito, movia as mãos em gestos bruscos e suaves, falava em voz fúnebre, comovida, e rematava com um grito final cheio de efeito. E quando disse «A menina gorda», soube muito bem ressaltar o ingrediente malicioso.  
Ouvi também uma rapariguinha declamar sinistramente:  
«Morreu. Deitadas no caixão estreito,
Pálida e loira, muito loira e fria...» 
Perante estes Eusebiozinhos dos nossos dias apetece-me gritar: Não! Deus nos livre, assim não! 
Para a criança, o poema pode significar alguma coisa como uma melodia, se lho apresentarmos como deve ser. Leiamo-lo, ou dêmo-lo a ler (isso depende da idade) e não façamos pressão sobre ela para gostar ou decorar. Talvez não compreenda, nos primeiros contactos, todo o sentido dos versos e se deixe apenas encantar pelo ritmo e pela cor. (Digo cor, porque não posso abstrair a cor da poesia, e a criança experimenta o mesmo.) 
Proporcionemos-emos assim uma entrada voluntária no reino dos poetas, orientando-a apenas na escolha. Ela, depois, decorará os poemas de que mais goste. 
Naturalmente, a criança em idade pré-escolar preferirá o poema adaptado ao seu mundo restrito.  
Cabra-cega!
Cabra-cega!
Tudo ri
Mãos no ar
A apanhar
[de Afonso Lopes Vieira]  
Bichinho-de-contaConta...
E o bichinho-de-conta
Contou
[de Sidónio Muralha]
Cavalinho, cavalinho
Que baloiça e nunca tomba:
Ao montar o meu cavalinho
Voo mais do que uma pomba!
[de Matilde Rosa Araújo] 
Gosta de ouvir repetidas vezes e, quase sem dar por isso, decora-o. Contudo, não me parece condenável ler mesmo a esta criança de idade pré-escolar um poema feito para «gente grande», logo que não seja complicado. Há poesia simples e clara, perfeitamente acessível como:  
Tinha um cravo no meu balcão;
Veio um rapaz pedir-mo,
- mãe, dou-lho ou não?
[de Eugénio de Andrade] 
Pescador da barca bela
Onde vais pescar com ela
Que é tão bela,ó pescador?
[de Almeida Garrett] 
A criança escuta, talvez, como escuta o murmúrio dum ribeiro, ou o canto dos pássaros, ou um techo de música. E um ou outro poema ficará registado na sua memória e se, mais tarde, deparar com ele, isso será um grande regresso ao lar. 
O lápis as tintas são um meio de expressão mais fácil; mas há crianças que se exprimem «em versos». Assim, uma rapariga de onze anos escreveu: 
Chegou a Primavera
Chegou a Primavera
Já não é como era
Chegou a Primavera. 
Chegou a alegria
A pombinha voltou
O rouxinol cantou.  
As nuvens fugira
O Sol brilha mais 
Eu também sou da natrureza
Agora canto mais. 
A Primavera voltou
Chegou a Primavera.
Chegou!
(...) 

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante relembrar esta grande escritora, pedagoga e pioneira na autoria e responsabilidade editorial de livros para a infância.

Graça Sampaio disse...

Gostei muito deste texto! Carregado de razão - e paixão.

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