Caro Desidério
Murcho:
Há,
atualmente, uma sequência de graus de ensino com regras de precedência. Isso
explica o porquê da sua tranquilidade como professor na universidade: depois de
si, resta o trabalho. Que seja de investigação, de estiva, de professorado, ou
lá o que for — resta o trabalho. Resta, portanto, aquilo que quem emprega acha
do diploma que é passado pela sua instituição, e do caso concreto que é o
indivíduo que surge como titular dessa sabedoria.
Para
trás da sua faculdade, o jogo é outro: cada grau de ensino ministra um conjunto
de conhecimentos que dá acesso, principalmente, ao grau seguinte.
Principalmente? Não: na prática, simplesmente.
Então,
cada grau de ensino limita-se a criar a qualificação reconhecida pelo grau
seguinte. Como este é o estado das coisas, é por aqui que devemos começar o
raciocínio.
Pergunto
eu: qualificação segundo uma pluralidade de critérios?
E
respondo logo: Deus nos livre! Segundo curricula nacionais que, praticados,
permitem a graduação de qualquer menino.
Concordo
consigo quanto à necessidade de liberalizar o ensino. Dê-me o beneficio de uns
minutos (o tempo deste raciocínio, e deste artigo) para se questionar se deve,
ou não, existir um plano de enquadramento nacional.
1.
Repare que há situações
diferentes: falando de um dos meus terrenos, a Geometria Descritiva, diria que
não é controverso o que há que saber: representação de ponto, reta e plano, e
das suas inter-relações, representação de sólidos, isolados e em relação com o
resto, representação de superfícies, idem, e por aí fora. O que é que um curriculum
nacional poderá dizer sobre o assunto? Que os alunos do ensino secundário que
queiram prosseguir carreira em certas formações universitárias deverão ter esse
conhecimento, como pré-requisito. E o que é que o ensino público pode fazer?
Pode inseri-lo no plano curricular das escolas secundárias, entregando a
professores qualificados a tarefa de dar essas aulas. Segundo que critérios? Os
que esses professores entenderem mais corretos. Como verificar os resultados?
Com exames nacionais, ou locais, de qualidade, de onde emerge a certificação.
2.
Imaginemos, agora, o ensino
liberalizado, mas sem apoio no curriculum nacional: cada escola terá um colégio
que produz uma ideia sobre o que é necessário ensinar, recrutando docentes de
acordo com isso. Ou cada escola não tem colégio nenhum, apenas se propõe como
gestora de prestação de serviços, sujeitando-se à oferta e à procura. As
escolas põem anúncios nos jornais, e os professores deambulam entre
instituições de ensino, oferecendo os seus talentos por um ordenado semanal, ou
mensal, ou anual. Como é que conseguimos certificar os resultados? Através do
mesmo sistema de exames nacionais, ou locais? Seja. Mas não havendo supervisão
estatal, quem verifica a qualidade da avaliação? O mercado de emprego? Então
como é que o Estado garante a maior possível igualdade de oportunidades? O que
fazer ao menino pobre de uma aldeia interior que não teve a oferta do seu
colega do litoral urbano? O que fazer ao jovem que, aos 18 ou aos 23 anos, se
encontra na posse de um diploma desdenhado?
Tenho
angústias com o discurso estratosférico: com cérebro de trolha, preciso de
referências palpáveis. Digamos então: do primeiro ciclo do básico deverão sair
miúdos que sabem ler, escrever, contar e calcular. Que conhecem a História e a
Geografia do país onde vivem, que conseguem mapear o seu presente e o seu
passado. Que percebem o que é o conhecimento científico e a Natureza, ganharam
o gosto pela interrogação, e tiveram contacto com o que é experimentar. Que se
exprimem com um conhecimento rudimentar, mas estruturado, da língua materna, e
complementam isso com um conhecimento ainda mais rudimentar, mas estruturado,
de uma língua estrangeira. Que praticaram alguma música e alguma atividade
artística. Que fizeram alguma coisa com as mãos.
Ponto,
parágrafo: isto foi o 1.º ciclo do ensino básico.
Sugere-me
que os professores poderão estar à solta, e as escolas, e tudo quanto mexe, e o
ministério não interfere — ou nem existe —, e não há exames. E que o menino é
avaliado, e transita de ciclo. Com que critérios? Os do consenso geral? A
sociedade decide, por tentativa e erro, o que é melhor?
Dando
de barato que isto acontece, com quantas baixas pelo caminho?
É
que, meu amigo, neste solto e livre processo haverá muita ignorância, muita
incompetência, muita fraude… muitas coisas indesejáveis, em suma. À mistura com
bom e excelente ensino, bem entendido.
Admitamos
que a sociedade faz a triagem. Sobram as vítimas: os garotos foram enganados,
têm um punhado de coisa nenhuma e perderam o primeiro comboio. Não são sapatos
rejeitados pelo mercado: são ex-alunos do 1.º ciclo do básico. E do 2.º, e por
aí fora, e chegaram à faculdade, ou ao instituto, e alguém lhes diz: meus
senhores, a vossa ignorância dói, vão estudar para um lado qualquer e voltem um
dia — apresentáveis. Ou à empresa, que afirma: meu caro, você está atrás da
rapaziada que vem da instituição tal e tal, porque temos boa experiência com
esses fulanos.
Estou
a raciocinar em termos de sapatos.
E
estou de acordo consigo: não se aprende a ser romancista, ou professor, ou
médico. Não se aprende a ser coisa nenhuma, de facto. Aprende-se, no entanto,
coisas que permitem que as vocações tenham corpo; possuam substância e adquiram
peso. Que o médico saiba medicina. O romancista escrever. O professor ensinar.
Os
colegas (?) que tudo fazem para que eu ensine pior, estão lá porque uma lei
idiota baralhou e esfumou algo muito simples (One Very Simple Principle): havendo um curriculum nacional de
consenso, os professores serão responsabilizáveis por ministrar — aí, sim, como
entenderem — a instrução nacional.
A
minha zanga é com a lei iníqua. Não com a necessidade de definir o curriculum e
até os conteúdos das disciplinas. Não com a necessidade de poder afirmar que
qualquer criança que disponha de determinados conhecimentos vale tanto como
qualquer outra, independentemente do custo da instituição onde eles foram
ministrados, do carro que os pais têm, do tipo de férias ou da feitura das
camisas que usa.
A
justiça social depende de, definidas as necessidades curriculares — verificar
se, efetivamente, o aluno domina as áreas referidas.
A
justiça social não pode depender de leis de mercado a fazer triagem de ensinos
de todas as cores, ao sabor dos pedagogos, das instituições e de programas variados, num quadro liberal em que o mar bate na
rocha — e o mexilhão são meninas e meninos. Não são sapatos.
Garantir
políticas de aproximação à igualdade de oportunidades é serviço público, e
garantia de mais liberdade.
Vou
reler o Stuart Mill, prometo. Já o tinha descarregado para o Kindle, há uns tempos, e foi gratuito;
veio a propósito de um texto da Gertrude Himmelfarb que devorei, no seu livro
de ensaios On Looking Into the
Abyss—Untimely Thoughts on Culture and Society, de que é o IV capítulo:
chama-se Liberty: "One Very Simple
Principle".
Ou
seja: honestamente, também vou olhando para os críticos: eles andam aí…
Deixo-lhe
um abraço, manifestamente, fraterno: penso, de facto, que andamos todos na
mesma guerra, fartos da mesmíssima coisa, a querer o melhor para as jovens
cabeças nacionais.
António Mouzinho
6 comentários:
Muito bem.
Ja tive ocasião de debater este topico com o Desidério e continua-me a causar perplexidade a posição dele.
Afinal, simplificando um pouco, podemos considerar que a plena "liberdade" pela qual ele tanto anseia imperou durante séculos, antes de existir serviço publico de educação. Os mestres eram profisionais verdadeiramente liberais que administravam a sua arte em total independência, quer para os filhos das familias abastadas que podiam (e queriam) pagar, quer em instituições religiosas que funcionavam na base da caridade. Convenhamos que, com esse sistema, o risco de fraude e de dilapidação do dinheiro dos educandos era, senão minimo, pelo menos proporcional à credulidade e à estupidez natural das suas familias, que devemos supor quantidade desprezivel.
O nivel de educação da população geral é que não era exactamente o mesmo...
Sera esse o sistema que o Desidério acha bom ?
Sinceramente, gostava de saber.
Abraços e mais uma vez estamos todos de parabéns por ele estar de volta às lides blogosféricas.
joão viegas
É curioso como as consequências desagradáveis que você refere que resultariam da libertação do ensino são precisamente as que se vêem hoje. E hoje há currículos nacionais e exames e directrizes. Mas você argumentará que o problema é que são maus. E a resposta é que serão sempre maus, porque são maus há quase 40 anos e há quase 40 anos que andamos a discutir sem proveito o ensino.
Com liberdade de ensino o que você tem é mais qualidade e não menos. Isto porque os professores responderão às duas coisas mais importantes a que um profissional de qualquer área deve responder: à sua consciência e aos destinatários do seu mister, que são os alunos e pais.
Você defende que no final de cada ciclo os alunos devem ter adquirido certas competências. Mas hoje, se você for honesto, terá de concordar que o maior obstáculo a que essa clareza de visão exista, e que os alunos efectivamente tenham adquirido tais competências, é precisamente o Ministério da Educação. Com liberdade, os objectivos de cada ciclo seriam claros para a generalidade de pais e professores; e porque não haveria a intervenção sempre doutrinária e de tendência fascista do estado português, os alunos seriam melhor preparados para essas competências. Porquê? Porque é isso que os professores melhor sabem fazer, apesar de tudo, e porque é isso que alunos e pais esperam da escola. A grande dificuldade actual é que o ministério não quer que o professor de geometria ensine geometria, mas antes pensamento geométrico, misturado com cidadania e mil coisas que nada têm a ver. E quando o ministério faz exames nacionais são tão tolos que custa a entender até a pergunta.
A liberdade de ensino não é incompatível com padrões nacionais, tal como a liberdade dos jornais não é incompatível com jornais nacionais. A liberdade de ensino permite que você e outros professores de geometria se organizem voluntariamente, façam uma associação, e façam exames externos nacionais. Apenas poderá haver outros professores de geometria com ideias diferentes das suas, que farão uma associação diferente. Não vejo qual é o problema disso. Significa que os pais poderiam escolher.
Finalmente, é surpreendente usar como argumento contra mim que em certas cidades as pessoas não têm a escolha de comprar o Notícias do Fundão, pelo que o melhor é acabar com esse jornal e fazer um só jornal nacional (qual deles? ah, claro, aquele que mais agrada ao poder político). Eu admito que numa cidade menor, pais e alunos terão menos escolhas do que numa cidade grande. Mas hoje não têm escolha alguma. Ah, claro, a menos que sejam ricos: aí têm realmente sempre escolha, que é em geram um colégio privado muito caro, onde se dá boa educação a que os pobres não podem chegar.
Caro Desidério Murcho:
Um pequenino comentário: a sua frase "quando o ministério faz
exames nacionais [esses exames] são tão tolos que custa a entender
até as perguntas" é, infelizmente, e profundamente e radicalmente e
exatissimamente verdadeira.
Há aqui excesso? Há. Mas apenas na falta de qualidade dos exames
que o ministério tem feito. Creio que o formato bem se podia
classificar como "eduquês cristalino".
Obrigado pela coragem. E pelo desassombro.
Obrigado, José.
E aproveito para acrescentar algo que me parece crucial. Uma das vantagens de libertarmos o ensino seria podermos passar a fazer o que realmente conta pelo ensino: o que consideramos boas directrizes, bons manuais, boa formação, bons exames. E se outros professores consideram isso mau e têm alternativas, muito bem: arregacem as mangas, e façam-nas, efectivem-nas. Qual é o problema de haver pluralismo?
Não podemos fazer estas coisas enquanto andamos a fingir que é possível um consenso -- ou sequer que o queremos -- entre professores que discordam profundamente sobre o que é de ensinar em matemática ou filosofia e como e em que níveis de ensino. É um fingimento porque nem sequer se tenta um consenso: tudo o que se tenta é ganhar o poder, para impor aos adversários invisíveis a nossa concepção do ensino. A esses adversários invisíveis chama-se muitas vezes o eduquês, e só a designação já esconde a mentira de querer meter toda a gente que discorda de nós no mesmo saco.
Na verdade, esta conversa estéril que dura há anos faz o jogo dos incompetentes: é que enquanto se discute coisas vagas sobre o ensino -- há ou não exames, fazemos assim ou assado -- as suas verdadeiras incompetências não se vêem: é que se eles tiverem de escrever duas páginas lúcidas sobre a área da sua especialidade -- filosofia ou história, física ou matemática, literatura ou música -- só sai asneiras que custam a entender, na melhor tradição do pior academismo salazarista nacional.
Do que precisamos é que cada grupo de professores, segundo os seus ideais do que é o ensino de excelência, possa desenvolver em sossego manuais, directrizes, exames, avaliações, formação, sem a interferência de um Ministério e dos professores a quem o Ministério dá poder para interferir e tentar prejudicar tanto quanto possível o trabalho de quem realmente está apostado na excelência educativa.
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