sábado, 17 de julho de 2010

Os abatopatas

Novo texto de João Boavida, antes publicado no diário As Beiras, sobre essa obsessão autárquica, mas não só, de cortar árvores de todos os tamanhos e tipos, e em todo o lado, cidade, aldeia, campo...

À custa de não sermos capazes de fazer algo de válido, criamos frustrações em cadeia e por isso odiamos e tentamos destruir tudo o que nos faz sombra. Desde logo, obviamente, as árvores. Seres indefesos, que não respondem na mesma moeda, silenciosos, humildes ou magníficos na sua nobreza, que nos protegem, nos educam na beleza, nos repousam o olhar, nos refrescam, nos limpam o peito, nos dão quase tudo o que têm. Mas que nos fazem sombra. E por isso nos incomodam. Ou incomodam muitos, os que só gostam da própria sombra. Ou até mais da sua sombra do que de si próprios.

Não encontro outra razão para a facilidade, o à vontade, a energia e o desembaraço com que se deitam abaixo, se abatem árvores que não fazem mal a ninguém. E mais, que fazem bem a imensa gente sem pedir quase nada, ou mesmo nada, durante anos e anos, gerações e gerações. Às vezes séculos. E até milénios.

É fatal: não somos capazes de fazer obra de alguma envergadura - e às vezes de nenhuma - que não tenhamos que “limpar” antes o terreno levando à frente quantas árvores houver. Com frequência acabamos por não fazer lá nada, mas ao menos deixámos o terreno “limpo”. E a nossa obra fica por aí. Outras vezes tratamos tão mal as árvores, desprezamo-las de tal modo que elas entram em stress, dizem. Fazemos-lhe golpes irremediáveis para amores efémeros, furos definitivos para cartazes de um dia, garrotes assassinos para propaganda política inútil, e muitas outras ofensas por coisas de nada. Fazemos-lhe tantas que elas adoecem. Anos e anos a tratá-las sem cuidado, ou não as tratar, vidas inteiras sem pensar nelas, ou a brutalizá-las. E elas em silêncio. Segundo parece gemem, mas ninguém as ouve. Deviam responder na mesma moeda, mas não são capazes. E às tantas adoecem. E lá vem a ansiada necessidade de as abater. E então ficamos muito satisfeitos porque encontramos motivos suficientes para fazer aquilo que melhor fazemos, que é abater quem está indefeso.

Cortam-se em todo o lado, por muitas razões. Todas as razões são boas para o abatopata. Construir qualquer coisa é um bom motivo. Mas nem é preciso. Basta andar a arranjar uma casa, construir um armazém, uma garagem, até uma escola. Fazer uns acrescentos a uma escola respeitável, uns arranjos importantes, é certo, e logo se arranjam boas razões para abater uns tantos cedros. Com muitos anos e bom porte, belos, bem alinhados, embora desprezados. E que tinham dignidade. Por que razão uma obra de remodelação precisa do sangue sacrificial de árvores que não incomodavam as obras nem os que as faziam?

13 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Pois.
O meu querido professor Jorge Paiva, leva décadas atrás de décadas a tentar educar esta gente que nós somos. E a mostrar-nos como somos irracionais.
Provavelmente, a nossa irracionalidade é muito maior do que ele próprio imaginaria, e por isso nada nem ninguém é capaz de nos travar... Alegremente cá vamos, na direcção do abismo.
E para desgosto dele e de mais uns poucos, talvez nem o mítico Choupal de Coimbra escape. E realmente, o espaço que ocupa, e o betão e/ou asfalto que ali se podia aplicar... pensarão outros.

Anónimo disse...

ABASTOPATIA

Quando alguém nos faz sombra, o que acontece
é tentar derrubá-lo a todo o custo,
como se fosse uma árvore ou arbusto
que, sem nos fazer mal, assim parece.

É a lei da vida, a lei da natureza:
deitar abaixo o que nos incomoda
como, nos tempos de hoje, está na moda
por falta honradez e de nobreza.

Livre ninguém se encontra, desta forma,
de ser objecto desta mesma norma
injusta, com certeza, mas corrente.

Julgo, porém, que o caso é diferente:
enquanto o ser humano dá contenda,
as árvores não têm quem as defenda!

JOÃO DE CASTRO NUNES

joão boaventura disse...

Ao caro JCN, os versos da sua alma gémea

Árvores do Alentejo

Horas mortas... curvadas aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol postonte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água! !

Anónimo disse...

Para o Dr. João Boaventura, em reciprocidade:

PREVIDÊNCIA

Se um dia em plena serra te encontrares
sob inclemente céu com sol ardente
e não tiveres onde te abrigares,
toma esta decisão na tua mente:

quando de novo por ali passares
não te esqueças de pôr uma semente
para fazer nascer, nesses lugares,
uma árvore... num gesto previdente.

Quem sabe se mais tarde, anos andados,
passando por ali um neto teu,
ele não vai agradecer ao céu

ter providenciado no sentido
de naquela aridez haver surgido
uma sombra... devida aos teus cuidados!

JOÃO DE CASTRO NUNES

ana disse...

Gostei do seu artigo! É lamentável ver desaparecer um foco de oxigénio.

As árvores embelezam a vida. Hoje, e assisti há pouco tempo, cortam-se as árvores porque dão trabalho, as folhas caídas incomodam, não há tempo para limpar!

Numa sede de concelho próximo de Coimbra, numa avenida inteira derrubaram-se todas as árvores e não era para construir nada...

ana disse...

Parabéns aos fazedores de sonetos!

Anónimo disse...

Para termonar... romanticamente:

TEU NOME

Como um selo indelével entalhei
teu nome para sempre no meu peito
gravado com cinzel de ouro de lei
em letras capitais de grande efeito.

Gravei teu nome em tudo que encontrei
no meu caminho, a torto e a direito,
gravei-o em todo o sítio onde passei
correctamente sem nenhum defeito.

Está teu nome em todas as estradas,
nas árvores dos bosques decoradas
com setas trespassando um coração.

Até nos astros o gravei, amor,
onde em noites de límpida visão
o reconheço pelo seu fulgor!

JOÃO DE CASTRO NUNES

António Piedade disse...

Caro Professor João Boavida

Gostei do seu hino às árvores.

Cumprimento

António Piedade

Helena Damião disse...

Caros Amigos,
É pena que poemas tão bons e textos tão humanos, a propósito de um simples texto de denúncia e revolta, não possam fazer reviver as árvores inutilmente abatidas. De qualquer modo, obrigado pela companhia.
João Boavida

Anónimo disse...

PINHEIRO MANSO

Tenho um pinheiro manso no quintal,
de tronco largo e copa arredondada,
de cujo lenho foi aparelhada
para o meu berço a tábua principal.

Tem um aroma intenso, especial,
que me entra pela porta escancarada
e torna toda a casa perfumada
com o seu fresco cheiro natural.

Passo horas a olhá-lo do balcão
e a imaginar que, quqando for o dia,
eu sem dúvida alguma gostaria

que fosse construído o meu caixão,
tal como o berço foi, com a madeira
do mesmo tronco e idêntica maneira!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

«essa árvore é perfeita

pena que as folhas são verdes
e caem, sujando minha ignorância
pena que as raízes são subterrâneas
e profundas - e eu tão superficial
pena que o tronco tem casca externa
pena que as flores não combinam
com a cor do novo carro que comprei
pena que, um dia, insatisfeito,
terei que cortá-la e não plantar outra no lugar
pena que os frutos são comestíveis demais
e atraem pássaros barulhentos e indesejáveis
pena que não dê sombra à noite
pena que não abane o rabinho
quando chego em casa
pena que cresça para cima
pena que produza oxigênio
pena que não seja de ferro, plástico e papel celofane
pena que o perfume das flores seja apenas aroma

pena que seja apenas uma árvore»

Poema de NICOLAS BEHR

transcrito daqui
http://dias-com-arvores.blogspot.com/2006/05/essa-rvore-perfeita-pena-que-as-folhas.html

Anónimo disse...

Realmente... é um poema muito "bera"! JCN

Anónimo disse...

TRÊS REQUISITOS

Nunca serás um homem de verdade
se um filho não fizeres
e um livro pelo menos escreveres
e uma árvore em qualquer localidade
por tua mão plantares,
a fim de não passares
a vida sem nenhuma utilidade!

JCN

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