Transcrevo o artigo publicado no Jornal de Letras, n.º 1039 (saído hoje), p. 17, da autoria de Eugénio Lisboa, intitulado Cantigas de Amigo:
“O homem que viaja em busca de um amigo, percorre o mais longo caminho possível” (Ali-Ibn-Abi-Tali).
"Na madrugada do dia 27 de Agosto de 2007, está agora a fazer três anos, faleceu, num hospital londrino, o poeta Alberto de Lacerda (AL) que, cinquenta e seis anos antes, para ali fora viver, ido de Lisboa, onde estivera sediado cinco anos, oriundo de Moçambique. Exílio se chamou, muito apropriadamente, um dos seus belos livros de poesia. Foi encontrado por um amigo inglês, caído no corredor do seu minúsculo e atravancado apartamento, em Battersea, frente ao parque com o mesmo nome, em coma, e rodeado de livros, jornais, papeis, discos, quadros, objectos, apagando-se, em suma, como sempre quisera viver: no meio das suas “coisas”, tão preciosas quão desarrumadas.
“O homem que viaja em busca de um amigo, percorre o mais longo caminho possível” (Ali-Ibn-Abi-Tali).
"Na madrugada do dia 27 de Agosto de 2007, está agora a fazer três anos, faleceu, num hospital londrino, o poeta Alberto de Lacerda (AL) que, cinquenta e seis anos antes, para ali fora viver, ido de Lisboa, onde estivera sediado cinco anos, oriundo de Moçambique. Exílio se chamou, muito apropriadamente, um dos seus belos livros de poesia. Foi encontrado por um amigo inglês, caído no corredor do seu minúsculo e atravancado apartamento, em Battersea, frente ao parque com o mesmo nome, em coma, e rodeado de livros, jornais, papeis, discos, quadros, objectos, apagando-se, em suma, como sempre quisera viver: no meio das suas “coisas”, tão preciosas quão desarrumadas.
No testamento, deixou tudo o que tinha – e não era pouco - a Luís Amorim de Sousa (LAS), seu amigo de longa data: tinham-se conhecido em meados de 1959, quando este se transferiu de Lourenço Marques para a capital britânica. O gesto – entregar todo um espólio valiosíssimo, material e culturalmente falando, ao que, jovem, o fora, em 1959, procurar em Londres, pela única razão de que, ainda em Lourenço Marques, a leitura dos "77Poems" o tinha deslumbrado – correspondia a um acto de confiança, gratidão, justiça e amizade. Uma amizade, a vários títulos – e nos dois sentidos – única.
Já alguém disse que as velhas amizades se improvisam. Eu creio, antes, que se constroem, com lentidão, atenção, minúcia, devoção e continuada paciência. Mas, como esta, com esta dimensão e duração, não se constroem muitas vezes. De resto, basta lançar um breve olhar ao “manual de construção” que é o belo poema “Bellini e Pablo Também” , com que LAS quis “fechar” o seu livro acabado de publicar, "Às Sete no Sa Tortuga – um retrato de Alberto de Lacerda (2010)", para se ter uma vívida noção dos píncaros a que pode ascender o conceito de amizade. O poema, aliás, dera já o título a um belo livro de poesia que LAS não há muito publicou: servir de título a um livro e de fecho comovido às memórias de uma amizade sublinha bem o valor emotivo e simbólico que o autor lhe atribui – ao poema e ao que ele celebra.
Este livro singular vem à luz, simultaneamente com dois outros: "O Pajem Formidável dos Indícios (poemas inéditos de Alberto de Lacerda)" e "The Sea that Lies Beyond My Rocks – Alberto de Lacerda in London and the U.S.", um roteiro de amizades literárias internacionais, que LAS concebeu, escreveu e montou – um tesouro informativo - e sendo os três livros dados como parte da Colecção Alberto de Lacerda, dirigida pelo mesmo LAS, e em processo de construção. Ainda em Moçambique, LAS obtivera, de um velho professor do Liceu uma opinião sucinta e forte acerca de Lacerda: “Um homem singularíssimo.” Ao encontrá-lo, em Londres, irá confirmar, apreciativamente, o diagnóstico. Repositório riquíssimo e colorido, nele se refere, por exemplo, “o olhar vertiginoso” do grande poeta e genial conversador", ou se nos informa que “nada escapava ao seu olhar minucioso.” De encontro em encontro, de “parco jantar” em “parco jantar”, LAS foi descobrindo, com evidente fascínio, as vigorosas singularidades do poeta, os seus caprichos reveladores e também a sua amada “circunstância”, isto é, a cidade de Londres. Porque, bicho essencialmente urbano – “Sou pouco dado à contemplação hortícola” - , da Inglaterra, foi sobretudo Londres que lhe habitou o imaginário. Lacerda conhecia Londres como ninguém (o apartamento de onde Eliot tinha saído à surrelfa, para se ir casar e ser feliz com a Valerie, e coisas miudinhas, neste gosto): em suma, uma Londres muito sua. “Viajar por Londres na companhia do Alberto”, diz-nos o autor destas memórias, “era como entrar na gruta de Aladino. Só que de vaguear tinha, simultaneamente, tudo e nada. Qualquer simples imprevisto o podia facilmente fazer mudar de direcção ou levá-lo a procurar outros destinos.”
Londres será o seu grande amor urbano, a que dará impressionante voz, entre outros, num poema de 5 de Julho de 1963: “Exactamente em Chelsea / Exactamente em Londres / Exactamente / No centro / Da Liberdade.” “Os locais favoritos do Alberto”, nota LAS, saboreadamente, “situavam-se principalmente em Chelsea e no West End. Mas não só. [...] Em Camden Town, por exemplo, apontou-me a casa onde se acolheram Rimbaud e Verlaine, que, para sua irritação, não se encontrava sequer assinalada.”
Lacerda era um homem frequentemente revoltado, ou indignado, mas não sofria do “humor melancólico” que afecta tanto lusíada, de D. Duarte para cá. Gostava da vida, do seu esplendor, e gostava igualmente da arte, que fruía com farto e saudável apetite. LAS cita uma das crónicas que Alberto fez para a BBC, na qual, celebrando o pintor Hockney, se auto-retrata sem vergonha: “Hockney dá-me uma impressão de plenitude, de felicidade, de realização.” Lacerda, mesmo nos momentos mais duros de falta de dinheiro (“umas contas infernais a pagar”) e perante uma perspectiva profissional pouco auspiciosa, arranja maneira de achar que tem andado a ter muita sorte: Londres, os bons amigos, a música, a arte que frui com gosto inapagado, o reconhecimento internacional que a sua poesia, apesar de tudo, vai tendo... É certo que vai ruminando um catálogo de “horrores” (a televisão, os telemóveis, os computadores e até os automóveis _ “gabava-se”, diz o seu biógrafo, com alguma ironia, “de nunca ter sucumbido à tentação de ter um televisor”) e, contra eles, arremete com sanha igual à que D. Quixote punha no seu assalto aos moinhos. Nenhum “horror”, porém, lhe empanava o gosto de viver. A vida, mesmo madrasta, mesmo revestindo um arrastado estatuto de perpétuo estudante pelintra, foi-lhe, de certo modo, um gozado festim. Isto denuncia-se até no léxico que privilegiava: LAS sublinha, com pontaria certeira, as palavras que o Alberto patrocinava: “prodígio”, “assombro”, “espanto” e, sobretudo, “maravilha” Eu juntaria o adjectivo “óóóóptimo!” (com exclamação), que ele pronunciava com uma duração interminável e um meio sorriso cúmplice.
No centro de tudo isto, ficava a poesia, e a sua poesia. O Pajem Formidável, agora editado, não envergonha o melhor que o poeta produziu e tanto impressionou alguns dos seus pares, nos Estados Unidos, na Inglaterra, em França, no Brasil, etc. Rosanna Warren, sua colega na Universidade de Boston, afirma que os poemas de AL são “uma maravilhosa combinação de le grand chant e de claridade modernista.” A certo poema chama-lhe “uma peça verdadeiramente majestosa”, J. M. Cohen, crítico do Spectator, em carta a AL, refere-se à sua poesia “tão pura, tão despida de maneirismos.” Jorge Guillén acha-a “cada vez mais concentrada e essencial”.
Tudo isto e muito mais se encontra nos três livros, que são uma dádiva. LAS chamou ao seu poema “Bellini e Pablo Também” cantiga de amigo e ofereceu-o a Lacerda pelos seus 70 anos. Cantigas de Amigo são também estes livros, que se devem, não pouco, ao generoso apoio da Fundação Mário Soares, que acolheu o espólio e lhe tem estado a dar eficiente e carinhoso tratamento. Saudação especial a Alfredo Caldeira. Do seu trabalho, diria o Alberto que é um prodígio, um assombro, um espanto, uma maravilha!
Eugénio Lisboa
Já alguém disse que as velhas amizades se improvisam. Eu creio, antes, que se constroem, com lentidão, atenção, minúcia, devoção e continuada paciência. Mas, como esta, com esta dimensão e duração, não se constroem muitas vezes. De resto, basta lançar um breve olhar ao “manual de construção” que é o belo poema “Bellini e Pablo Também” , com que LAS quis “fechar” o seu livro acabado de publicar, "Às Sete no Sa Tortuga – um retrato de Alberto de Lacerda (2010)", para se ter uma vívida noção dos píncaros a que pode ascender o conceito de amizade. O poema, aliás, dera já o título a um belo livro de poesia que LAS não há muito publicou: servir de título a um livro e de fecho comovido às memórias de uma amizade sublinha bem o valor emotivo e simbólico que o autor lhe atribui – ao poema e ao que ele celebra.
Este livro singular vem à luz, simultaneamente com dois outros: "O Pajem Formidável dos Indícios (poemas inéditos de Alberto de Lacerda)" e "The Sea that Lies Beyond My Rocks – Alberto de Lacerda in London and the U.S.", um roteiro de amizades literárias internacionais, que LAS concebeu, escreveu e montou – um tesouro informativo - e sendo os três livros dados como parte da Colecção Alberto de Lacerda, dirigida pelo mesmo LAS, e em processo de construção. Ainda em Moçambique, LAS obtivera, de um velho professor do Liceu uma opinião sucinta e forte acerca de Lacerda: “Um homem singularíssimo.” Ao encontrá-lo, em Londres, irá confirmar, apreciativamente, o diagnóstico. Repositório riquíssimo e colorido, nele se refere, por exemplo, “o olhar vertiginoso” do grande poeta e genial conversador", ou se nos informa que “nada escapava ao seu olhar minucioso.” De encontro em encontro, de “parco jantar” em “parco jantar”, LAS foi descobrindo, com evidente fascínio, as vigorosas singularidades do poeta, os seus caprichos reveladores e também a sua amada “circunstância”, isto é, a cidade de Londres. Porque, bicho essencialmente urbano – “Sou pouco dado à contemplação hortícola” - , da Inglaterra, foi sobretudo Londres que lhe habitou o imaginário. Lacerda conhecia Londres como ninguém (o apartamento de onde Eliot tinha saído à surrelfa, para se ir casar e ser feliz com a Valerie, e coisas miudinhas, neste gosto): em suma, uma Londres muito sua. “Viajar por Londres na companhia do Alberto”, diz-nos o autor destas memórias, “era como entrar na gruta de Aladino. Só que de vaguear tinha, simultaneamente, tudo e nada. Qualquer simples imprevisto o podia facilmente fazer mudar de direcção ou levá-lo a procurar outros destinos.”
Londres será o seu grande amor urbano, a que dará impressionante voz, entre outros, num poema de 5 de Julho de 1963: “Exactamente em Chelsea / Exactamente em Londres / Exactamente / No centro / Da Liberdade.” “Os locais favoritos do Alberto”, nota LAS, saboreadamente, “situavam-se principalmente em Chelsea e no West End. Mas não só. [...] Em Camden Town, por exemplo, apontou-me a casa onde se acolheram Rimbaud e Verlaine, que, para sua irritação, não se encontrava sequer assinalada.”
Lacerda era um homem frequentemente revoltado, ou indignado, mas não sofria do “humor melancólico” que afecta tanto lusíada, de D. Duarte para cá. Gostava da vida, do seu esplendor, e gostava igualmente da arte, que fruía com farto e saudável apetite. LAS cita uma das crónicas que Alberto fez para a BBC, na qual, celebrando o pintor Hockney, se auto-retrata sem vergonha: “Hockney dá-me uma impressão de plenitude, de felicidade, de realização.” Lacerda, mesmo nos momentos mais duros de falta de dinheiro (“umas contas infernais a pagar”) e perante uma perspectiva profissional pouco auspiciosa, arranja maneira de achar que tem andado a ter muita sorte: Londres, os bons amigos, a música, a arte que frui com gosto inapagado, o reconhecimento internacional que a sua poesia, apesar de tudo, vai tendo... É certo que vai ruminando um catálogo de “horrores” (a televisão, os telemóveis, os computadores e até os automóveis _ “gabava-se”, diz o seu biógrafo, com alguma ironia, “de nunca ter sucumbido à tentação de ter um televisor”) e, contra eles, arremete com sanha igual à que D. Quixote punha no seu assalto aos moinhos. Nenhum “horror”, porém, lhe empanava o gosto de viver. A vida, mesmo madrasta, mesmo revestindo um arrastado estatuto de perpétuo estudante pelintra, foi-lhe, de certo modo, um gozado festim. Isto denuncia-se até no léxico que privilegiava: LAS sublinha, com pontaria certeira, as palavras que o Alberto patrocinava: “prodígio”, “assombro”, “espanto” e, sobretudo, “maravilha” Eu juntaria o adjectivo “óóóóptimo!” (com exclamação), que ele pronunciava com uma duração interminável e um meio sorriso cúmplice.
No centro de tudo isto, ficava a poesia, e a sua poesia. O Pajem Formidável, agora editado, não envergonha o melhor que o poeta produziu e tanto impressionou alguns dos seus pares, nos Estados Unidos, na Inglaterra, em França, no Brasil, etc. Rosanna Warren, sua colega na Universidade de Boston, afirma que os poemas de AL são “uma maravilhosa combinação de le grand chant e de claridade modernista.” A certo poema chama-lhe “uma peça verdadeiramente majestosa”, J. M. Cohen, crítico do Spectator, em carta a AL, refere-se à sua poesia “tão pura, tão despida de maneirismos.” Jorge Guillén acha-a “cada vez mais concentrada e essencial”.
Tudo isto e muito mais se encontra nos três livros, que são uma dádiva. LAS chamou ao seu poema “Bellini e Pablo Também” cantiga de amigo e ofereceu-o a Lacerda pelos seus 70 anos. Cantigas de Amigo são também estes livros, que se devem, não pouco, ao generoso apoio da Fundação Mário Soares, que acolheu o espólio e lhe tem estado a dar eficiente e carinhoso tratamento. Saudação especial a Alfredo Caldeira. Do seu trabalho, diria o Alberto que é um prodígio, um assombro, um espanto, uma maravilha!
Eugénio Lisboa
Na imagem: retrato a óleo de Alberto de Lacerda.
4 comentários:
Muito interessante esta recordação intitulada "Cantigas de Amigo", extemporâneas.
Este post relembra-me esta
Cantiga de amigo
- Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabeis novas do meu amigo!
Ai Deus, e onde está ele?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabeis novas do meu amado!
Ai Deus, e onde está ele?
Se sabeis novas do meu amigo,
aquele que combinou comigo!
Ai Deus, e onde está ele?
Se sabeis novas do meu amado,
aquele que mentiu do que há jurado!
Ai Deus, e onde está ele?
- Vós me perguntais pelo voss’amado,
e eu bem vos digo que é sano e vivo.
Ai Deus, e onde está ele?
Vós me perguntais pelo voss’amado,
e eu bem vos digo que é vivo e sano.
Ai Deus, e onde está ele?
E eu bem vos digo que é sano e vivo
e estará convosco antes do prazo saído.
Ai Deus, e onde está ele?
E eu bem vos digo que é vivo e sano
e estará convoco antes do prazo passado.
Ai Deus, e onde está ele?
D. Dinis
De cantigas... está o mundo cheio! JCN
Devo à leitura da obra de Alberto a descoberta de uma face de mim e a vida vivida das férias deste ano de 2010. Agradeço igualmente ao seu testamentário a obra que escreveu a seu respeito e os dois volumes complementares de maior dimensão que completam actualmente a obra publicada de Alberto Lacerda. Grato, JV
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