Este texto é sobre um caso concreto, ainda não (completamente) apagado das nossas memórias. O leitor facilmente o reconhecerá, mas omito a sua identificação e a dos intervenientes, por entender que, mais do que ter a particularidade de caso, traduz um modo de pensar, um preocupante modo de pensar, o dever de educar as crianças e os jovens.
Numa reportagem da SIC - Quando a violência entra na sala de aula - dizia-se o seguinte acerca de um professor: “… deixou uma nota escrita em que atribuía a sua depressão à indisciplina que não conseguia controlar.”
Os jornais noticiarem o teor dessa nota: "se o meu destino é sofrer, dando aulas a alunos que não me respeitam e me põem fora de mim, não tendo outras fontes de rendimento, a única solução apaziguadora será o suicídio". Noticiaram também que fez "pelo menos sete" participações à direcção da escola, "alertando para o comportamento de um aluno em particular".
Como se sabe, tudo acabou da pior maneira possível: o professor em causa faleceu.
A comunicação social questionou a escola onde trabalhava, a Direcção Regional de Educação de pertença, e o Ministério da Educação. Muita cautela e silêncio foram as mensagem destas três instâncias.
Mas os encarregados de educação dos alunos do professor mobilizaram-se de diversas maneiras. Uma delas foi escolher uma representante “para defender a maior dos adolescentes”. Essa representante declarou na reportagem da SIC:
“Eles também são indisciplinados com outros professores… Um aluno é conversador, tanto é numa aula como é na outra.
SIC: Pode não ser…
Depende do professor que estiver à frente, se o professor conseguir controlá-los ou não. Aquele professor, pelos vistos, ou não conseguia ou não queria…. Há aqui uma grande incógnita, nós não estávamos presentes, mas é assim: temos de confiar naquilo que os nossos filhos dizem (…). Tudo o que foi dito não é verdade e é injusto para eles, alunos, estarem a ter um rótulo que não é verdade. E as participações que houve, que o professor fez, as participações por escrito, era de que os alunos, esses mais problemáticos, entravam com o phones nas orelhas, ligavam o telemóvel ou o MP4 durante a aula, e ele não gostava disso e foram as participações que ele fez porque achava isso inadequado.”
Posteriormente, manifestaram-se perto da escola (ao que parece, com professores) por se sentirem “indignados com a associação entre o suicídio de um docente e a indisciplina dos alunos, argumentando que o caso está a perturbar os estudantes e pais”. Isto pode ler-se nos jornais, onde também se pode ler as declarações de alguns deles:
Um disse: "Quando cheguei à escola vi adolescentes muito revoltados. Os alunos (…) dizem que é mentira, que não tiveram responsabilidades no suicídio do professor" (…) "é impossível que o professor se tenha suicidado por causa dos alunos". "Alguém que pratica um ato destes tem que ter antecedentes. Ninguém se suicida por causa de uma turma. Nunca ouvi falar de violência nas aulas". Porém, outro disse: "Nesta escola há insegurança, como há noutras. Há situações de bullying com colegas do meu filho, e um deles levava tareias todos os dias".
Mais recentemente, foi notícia, pela voz de um responsável pela educação, que os alunos estão "perturbados" e, como tal, "têm de ser objecto" de preocupação. "Temos de nos esforçar para que estas situações possam ser ultrapassadas. Tratam-se de jovens que são na sua generalidade bons alunos e que não podem transportar na sua vida uma situação de culpa que os pode vir a condicionar pela negativa". Ao que parece, "uma equipa de psicólogos (…) está a articular" com a escola o acompanhamento mais adequado.
Com base nos dados (talvez poucos) acima apresentados, não se pode afastar a hipótese da inexistência de uma ligação entre o sofrimento extremo do professor (que, ao que sei, nunca teve acompanhamento psicológico ou outro) e as características do contexto laboral, mas também não se pode afastar a hipótese contrária, ou seja de existir uma ligação, que pode até ser uma ligação próxima.
Afastar-se esta hipótese, não a querer considerar por se pensar que ela pode perturbar psicologicamente alguns dos intervenientes, será, sob o ponto de vista moral e afectivo, a melhor opção educativa? Conduz ela ao sentido da responsabilidade individual que deve caracterizar a inteligência adulta?
Reproduzo aqui a melhor resposta que ouvi para estas perguntas e que foi dada por uma professora num documentário da BBC intitulado Classroom chaos: "Alguns jovens parecem conhecer bem os seus direitos, mas são poucos os que conhecem os deveres e as obrigações. Ainda assim, as crianças não deixam de ser crianças. Querem que lhe sejam impostos limites, elas querem ser controladas, ser tratadas como crianças. Não é fácil lidar com isso. É preciso ter segurança e calma."
Ver notícias referidas no texto aqui e aqui.
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5 comentários:
Os professores também são seres humanos, com qualidades e defeitos, com os seus problemas espirituais, sociais, psicológicos, etecetera. Da forma como as coisas têm decorrido, e com o que já vi até agora nos meus 5 anos como formadora, não acho nada improvável a existência de sofrimento associado a uma turma em particular...quantos professores não dirão o mesmo?
Claro que dependerá das circunstâncias psicológicas da pessoa em causa, mas se já se está debilitado e se já se questiona a própria capacidade...começa-se a transpor isso tudo para uma situação concreta que seja fonte de algum tipo de sofrimento.
Bem vistas as coisas, tb os professores sofrem bullying. Uma coisa é ensinar. Outra coisa é ser-se pedagógico. Outra ainda é ser-se disciplinador. Uma muito diferente é ter estrutura psicológica suficiente para lidar com determinadas situações...e, hoje em dia, um professor tem de ser tudo isso e muito mais. Não há mais lugar para idealismos. Da forma indiscriminada como todos têm acesso ao ensino, mesmo não querendo ser ensinados, do modo indiscriminado como todos adquirem um grau, perante a falta de educação e estrutura social e interpessoal, de todos os lados, isto acaba por ser mais um comer ou ser comido...
Não é nada fácil, porque é um trabalho que parece recair nos ombros de um professor, quando é algo que tem obrigatoriamente de envolver toda uma comunidade: a equipa formativa, a direcção, a orientação, a mediação, os pais... só uma pessoa não chega. E qd a política já é, como já disse, comer ou ser comido...
Não é fácil não. Nem com crianças, nem com adolescentes, nem com adultos.
Neste processo, muitos terão a sua quota-parte de responsabilidade. A começar pelo conselho de turma.Que atitude solidária tiveram para com o colega? Agiram em bloco, determinando e fazendo cumprir as regras necessárias ao bom funcionamento de todas as aulas? Como disse a representante na reportagem da SIC:
“Eles também são indisciplinados com outros professores… Um aluno é conversador, tanto é numa aula como é na outra"....
Cara Helena Damião,
Portugal foi contaminado pelo populismo e como tal a responsabilidade de tudo o que acontece nas "escolas" públicas é do... professor!
Por Lisboa, são milhares os professores dos quadros do ministério da "educação" a concorrer às poucas escolas a sério existentes e outros tantos a abandonar a profissão.
A ideolo-pedagogo-burocracia que tomou conta das "escolas" públicas faz tudo para salvar a face do delinquente (que é disto que se trata) e faz tudo para repreender a vítima.
O populismo paga-se caro e este em particular vai-nos custar mesmo muito caro.
Enquanto o Ministério dispersa a sua atenção pelas avaliações do desempenho, pelo estatuto da carreira docente, pelo estatuto do aluno, pela gestão autónoma ou não das escolas, pelos horários, pela reforma curricular, centrado em segmentos parcelares, obcecado pela manutenção temática herdada de séculos, e incapacitado, por esse centralismo, de lançar outros olhares para outras causas do desgoverno e desencontro estrutural e conjectural escolar, acaba por criar um novo problema, o da alteridade, posicionando-se em olhar a instituição escolar como o outro, o diferente do Ministério, o alheio ao Ministério, o estranho, o desconhecido, e, por desconhecido, desconhecido o tipo de relacionamento.
O problema da alteridade que também se observa dentro do Ministério, onde cada gabinete, cada serviço, olha para o outro gabinete, ou o outro serviço, como o outro, não o próximo, mas o distante que tem outros problemas, outras subjectivações. Compartimentos estanques.
O problema da alteridade que também se observa dentro das escolas: o professor é "o outro" para os alunos, e os alunos são "os outros" para o professor.
Vivendo num mundo de estranhos e rodeado dos "outros", mimeticamente se cria a indisciplina e a agressão, física ou psicológica, entre alunos, entre alunos e seus familiares contra professores.
A massa crítica alarga-se porque os acontecimentos acabam por gerar outros acontecimentos, e a cadeia não tem fim, e as pessoas começam a pensar, quando, e quem, poderá harmonizar a relação entre professores e alunos, professores e famílias dos alunos, entre Ministério e escolas.
De confusão em confusão, a sociedade interroga-se se não serão os alunos imputáveis, potenciais criminosos, quando agridem, porque a agressão só pode aparecer onde o ambiente o sugere e motiva, porque a escola está cheia dos "outros".
Um pedagogo brasileiro convidado a visitar uma Universidade americana, a primeira impressão que colheu, quando viu uma pista de atletismo teve este desabafo "uma pista bem montada convida as pessoas a correrem nela". Desconheço se era um indirecta ao edifício cuja estrutura não convidaria a frequentá-la.
(Continua)
Continuação
A conflitualidade é sinónimo de quebra ou ruptura do elo social por carência de uma mediação dentro da classe e outra entre a escola e a família, e outra entre a escola e o Ministério, não os órgãos sindicais já ultrapassados na mediação por obsoleto e vivendo, como os outros países, uma fase crítica.
Enquanto não se institucionalizar uma ritologia escolar, e não uma mimese do desgoverno do Estado, de que enferma a massa crítica, dificilmente se encontrará o caminho, e viveremos de penitência em penitência, divagando nas soluções aleatórias e desenquadradas da realidade, ao ponto de se pretender criminalizar crianças, como se de adultos se tratassem, o que denota falta de bom senso e total desnorte, porque dispensa as pessoas do trabalho fastidioso de averiguar as causas de comportamentos desviantes.
Para se entender melhor do que aqui se expões, e para não me alongar, proporia uma leitura do n.º 23/2004, da revista Tréma, que aborda o tema Approche (s) anthropologique (s) en éducation et en formation, enjeux et défis, onde se fazem abordagens que interessam, se não para solução para os problemas que nos afligem, mas para auscultar outros pontos de vista que nos possam orientar serenamente, sem cavalgarmos doidamente, sem peso e medida, nas soluções in promptu.
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