Professora: “Não te importas de largar a bola? Não te importas de te sentar no teu lugar?”
Tive de me beliscar para acreditar que era mesmo assim, que as salas de aula britânicas, em 2004, eram mesmo assim….
Chamo-me Angie Mason. Já dei aulas em escolas secundárias públicas, nos anos 70. Bons tempos, esses! Mais tarde, deixei de dar aulas e tornei-me uma produtora de rádio e televisão especializada na área educativa. No início do ano passado, estava envolvida num projecto interescola de caridade e decidi que podia fazer muito mais com a minha experiência nas salas de aula. Frequentei um curso de “reciclagem” para professores e inscrevi-me como professora substituta em várias empresas de recrutamento. De forma aleatória, estas agências mandavam-me para várias escolas como professora substituta, e não quis acreditar no que vi. Não consigo descrever o que vi. Como professora substituta, passei a fazer parte de um “exército” de 15 mil docentes, que vão preenchendo as faltas de professores que adoecem ou se ausentam para formação.
As pessoas que, como eu se inscrevem nessas agências podem ser enviadas para qualquer estabelecimento da rede escolar. Como professora substituta não tenho como influenciar as escolas para onde sou destacada.
Para voltar a dar aulas, precisava de uma cópia da declaração da tutela atestando que ainda estou inscrita como professora no Estado. Felizmente para as crianças, só isso não bastava. Precisava de dois comprovativos de residência, do meu currículo, um certificado de habilitações com formação nessa área e, mais importante, precisava do registo criminal, atestando que não era uma criminosa. Nos meses que se seguiram, exerci em várias escolas e fiquei cada vez mais decepcionada à medida que assistia ao nível de perturbação nas salas de aula, que tornavam totalmente impossível ensinar alguma coisa. Decidi então regressar à sala de aula com duas câmaras ocultas para mostrar a realidade às pessoas. Toda a gente fala em indisciplina nas salas de aula, mas a maioria das pessoas nunca a testemunhou. Pode ser que este documentário ajude a “chamar a atenção”.
Estou bastante nervosa em relação a tudo isto. Já é bastante mau entrar numa sala de aula com alunos que não conhecemos, ensinar matérias que eventualmente nunca demos. Porém, estou muito nervosa por causa das câmaras e não sei se vou ser apanhada, se elas vão funcionar bem. É bastante assustador.
Vejam, estamos num bairro da classe média, não é um bairro social, não são casas degradadas. É uma zona residencial de qualidade. Algumas celebridades moram neta zona, pessoas com dinheiro a viver aqui. Vou passar uma semana nesta escola da zona. Não pretendo culpar exclusivamente as escolas que aparecem neste documentário. A meu ver, estas escolas poderiam estar em qualquer lugar do país, tendo em conta a amplitude do problema de indisciplina. A primeira escola que vou filmar é uma escola de grandes dimensões na zona de Londres. Na minha primeira aula, vou ensinar Inglês a alunos com 13 anos.
Fiquei verdadeiramente chocada logo no primeiro dia, do meu regresso às aulas. Pensava que seria como nos bons velhos tempos, em que dizia: “Bom dia. Pode, tratar-me por Sra. Mason. Estou aqui para dar aulas de Inglês, Francês, o que for”… Só que não foi nada assim.
Entrei numa sala de aula, em que faltava muita gente. Os atrasados continuaram a chegar, ao fim de 10-15 minutos. Tentei chamar a atenção batendo palmas. Simplesmente ignoraram-me. Ignoraram-me. Não paravam quietos, gritavam, recusavam-se a fazer trabalhos… Não prestavam atenção a nada. No que dependesse deles, estar ali ou não era igual.
O simples facto de pedir para abrirem os livros era uma tarefa árdua.
Lembro-me de tentar perceber o que estava a acontecer ali, por que é que não me prestavam atenção. Estou ali para os ajudar, para lhes ensinar.
Foram precisos quinze minutos para me darem atenção. Quando cheguei a casa nesse dia, estava rouca. Tive de levantar a voz e tentar repor a ordem inúmeras vezes. Acabei em lágrimas. Soluçava do fundo do coração só de pensar no rumo que a Educação tinha tomado.
A minha história tinha começado numa grande escola, na zona de Londres, a dar aulas de Inglês a rapazes de 13 anos.
Professora: “Pronto. Está bem. Acalmem-se. Abram os vossos livros de Inglês. Os amarelos… sim?”
Aluno: “Não tenho esse livro, stôra.”
Professora: “Podes partilhar com ele? Por que é que não te calas?”
Aluno: “Calem-se, pá!”
Professora: “Não se importam de abrir os livros amarelos na página… Desculpem, mas vão ter de me ouvir. Não se importam de virar? Há quem queira estudar.”
Perde-se tanto tempo! Quando parece que conseguimos finalmente acalmá-los, basta um pequeno incidente para os “atiçar” de novo.
Professora: “Podes parar de lhe bater?”
Aluno 1: “Ele estava a socar-me.”
Aluno 2: “Foi ele que começou.”
Aluno 1: “Foste tu!”
(...)
Professora: “Vamos retomar o trabalho e acabar esta história… A viúva de Paolo Severini cuidou sozinha do filho… Desculpa, mas não quero ouvir palavrões na sala de aula… Eu ouvi. Não volto a avisar. Não te importas de sentar ali? Podes começar a ler. Quem é que tem o livro? Então!?”
Aluno: “Não sei ler, stôra!”
Professora: “Se não sabes ler, não devias estar aqui.”
Algumas crianças fazem um grande esforço para aprender e alguns ajudam mesmo a manter a ordem…mas não têm sorte.
Professora: “Quero silêncio para conseguir ouvir o vosso colega… Senta-te! Obrigado. Podes continuar.”
Nessa turma havia rapazes que não queriam ou não sabiam ler. Antigamente, as crianças com necessidades especiais ou com problemas de indisciplina frequentavam escolas diferentes. Actualmente, dá-se primazia à integração, mas devo dizer por experiencia própria, que essa opção não é benéfica nem para as crianças com necessidades especiais, nem para os outros.
Professora: “Estás deliberadamente a perturbar. Sai e vai para a sala de onde não devias ter saído.”
Aluno 1: “Quero lá saber.”
Prof.: “Queres lá saber?... Está bem. Tu é que sabes. Levem-no. Não te quero na minha aula. Não te quero cá enquanto estiveres a fim de perturbar.”
Aluno 2: “Se não saíres, vou pessoalmente buscar-te a casa e expulso-te!”
Prof.: “Vamos… Faltam cinco minutos para o intervalo. Ou seja os “desgraçados” que estiveram à espera de ler vão ficar para trás, à semelhança dos restantes.”
Tem piada ver que os inspectores estão em actividade. Estão em todo o lado. E os professores estão num frenesim para saber se têm a papelada em ordem, os objectivos, os programas, os planos e toda a parafernália que estão agora no centro do sistema educativo. Pergunto-me se chegam a ouvir a algazarra da escola ou sequer se isso vai aparecer nas avaliações, que vão ser publicadas daqui por algumas semanas.
Professora: “Acabámos de perder mais cinco minutos. Vamos ler esta história, quer queiram quer não, porque não conseguimos prosseguir com o resto do trabalho enquanto não lermos tudo.” (...)
Depois de ter tido bastante dificuldade para os pôr a fazer alguma coisa, começou uma briga na sala. Alguns destes rapazes são fortes, mais altos e mais fortes do que eu. Ainda tenho bastante presente as directivas da tutela para contendas físicas que dizem que os professores não devem intervir, sempre que houver um grupo de alunos “à bulha”. Felizmente, alguns dos colegas dos dois alunos conseguiram separá-los, pondo fim “à bulha”.
Professora: “O que é que vem a ser isto? O que é que se passa?”
Mas, quando a primeira contenda foi dada como sanada, eclodiu uma segunda briga. Felizmente, apareceu um auxiliar que retirou o pau de plástico ou de borracha de um dos rapazes.
Auxiliar: “Pára! Pára! Dá-me isso! Dá-me!”
Há 30 anos, não havia cá isso dos auxiliares. Conseguia manter a minha turma sob controlo. E mais, se algum aluno fosse expulso da sala, já não voltava. Não consigo recordar casos de vandalismo como estes contra o material escolar ou de alunos com mau génio, e nem sequer cheguei a precisar da ajuda do responsável. Julgo que é desolador sentir que, na maior parte do tempo que passei como professora substituta, naquelas turmas, era para “controlar multidões”.
Professora: “Nunca pensei. Não faças isso! Não se faz!”
Pouco depois, foram publicadas as avaliações... A nível disciplinar, a avaliação desta escola é satisfatória (Outubro de 2004).
Sinto que a escola não ganhou nada com a minha passagem lá. Se virmos o dia de hoje, dei seis aulas. Parece-me que a aula mais produtiva foi com a turma dos mais novos, com os alunos do 7.º ano, porque são mais “suportáveis” e não apresentam os vícios de indisciplina dos mais velhos. Os alunos do 8.º ano não estiveram mal.
Professora: “Não quer dizer que um seja bom e o outro mau.”Este foi o grupo que mais trabalho me deu durante a semana. Parece-me que começam agora a acalmar e, para além de uma briga, o trabalho realizado foi produtivo. Em relação ao resto, mais vale esquecer. Hoje dei seis aulas, quatro das quais são “para esquecer”.
Professora: “Quero deixar bem claro aos rapazes que, caso não se portem bem…A qualquer sinal de perturbação vou falar com a Direcção, visto que não vou aceitar mais barulho e falta de respeito.”
Queriam que ficasse mais uma semana, mas recusei. Já não tenho força nem capacidade – a sério – para aturar aquilo tudo outra vez.(CONTINUA)
sábado, 24 de abril de 2010
"Caos nas salas de aulas": Primeira escola
Caos nas salas de aulas é a tradução portuguesa do documentário Classroom Chaos, produzido pela BBC e da autoria é Angela Mason, uma ex-professora do ensino secundário, que depois de um inderregno de cerca de três décadas, voltou ao ensino.
Tendo, nesse intervalo de tempo, trabalhado na área do audio-visual, nunca deixou de se interessar por aquilo que se passa na escola. Como tantas outras pessoas, preocupada com o comportamento indisciplinado dos alunos, resolveu dar a conhecer as suas características e dimensões em escolas londrinas.
Actualizou as suas credenciais como docente de substituição, tendo, assim, acesso a várias turmas de diversos anos de escolaridade. Filmou algumas delas com recurso a câmaras ocultas, tendo sempre com o cuidado de não identificar contextos nem sujeitos.
.
O documentário resultante dessa abordagem foi dado a ver em Inglaterra, em 2005, provocando acesas polémicas, nas quais se envolveram várias entidades educativas, deseencadeando, inclusivamente, contenciosos institucionais.
Os motivos que levaram à sua realização, o impacto que teve na sociedade, os argumentos que apoiam o seu interesse ou a sua inadequação, as questões que levanta sobre as opções educativas contemporâneas, a análise que faz da organização dos sistemas de ensino, a dúvida que levanta sobre a validade da avaliação das escolas, a interrogação que coloca em torno da (im)possibilidade de investigar objectivamente o ensino e a aprendizagem em sala de aula, justificam que partilhemos o essencial com os leitores do De Rerum Natura, uma vez que tudo o que nele se evidencia nos parece próximo da nossa realidade educativa.
Primeira escola documentada
Compilação do texto: Ana Cunha.
Imagem: http://www.thisislondon.co.uk/news/article-23403380-suspended-teacher-insists-filming-classroom-behaviour-was-right.do
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3 comentários:
isto acontece cá... não vale a pena ir à europa. só somos europeus no que não presta.
Sim, pareça-o ou não por fora, muitas das nossas escolas transformaram-se ou estão a transformar-se nisto. O pior é que nem os pais querem que lhes mostrem a realidade.
Os alunos são os mais capazes de, consciente ou inconscientemente, e às vezes provocadoramente, revelar o que verdadeiramente se passa.
Os professores preferem muitas vezes aguentar e esconder.
As hierarquias também parecem preferir ir pintando a situação o mais cor-de-rosa (sem conotação política) possível.
Para onde caminhamos?...
O que escrevo não é exagero. Faça-se um pequeno teste: pergunte-se a quaisquer alunos se querem vir a ser professores...
Nesta matéria, parece que não estamos distantes da velha Albion!
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