quarta-feira, 25 de março de 2009
José Mourinho, doutor honoris causa
Novo post de Rui Baptista:
“Seria sempre treinador de futebol, mas sem faculdade seria assim-assim e nunca muito bom” (José Mourinho, “Record”, 24/03/09)
O recente doutoramento honoris causa, pela Universidade Técnica de Lisboa do licenciado em Educação Física pelo ISEF/Faculdade de Motricidade Humana José Mourinho (1984) fez-me folhear páginas de recortes de artigos de jornais por mim escritos ao longo de várias décadas para neles rebuscar um tema que tem sido motivo de discussão pública. Nessas páginas, encontrei fundamento para a evolução e teorização do actual futebol nacional que longe se afastou do tempo das chamadas “balizas às costas” por ser o que é hoje: uma indústria que faz correr rios de dinheiro e apaixona multidões de todo o mundo e o tornou matéria de estudo académico, como mostra a cerimónia que serve de título a este texto.
Décadas atrás, Carlos Miranda, ao tempo director de A Bola, ao escrever que “Carlos Queirós é um caso de predestinação comparável a Mozart” (que, como se sabe, aos quatro anos já tocava cravo e aos cinco ensaiava os primeiros passos da composição) deu o mote a uma discussão que corre o risco de se eternizar. A razão parece-me simples: nasce-se poeta e escritor, por exemplo. Mas não se nasce médico ou professor de Educação Física.
Sustento esta opinião no facto de na proliferação de licenciaturas por todos os escaninhos do país, numa girândola de matérias impensáveis há poucos anos atrás, não haver cursos universitários de Poesia e os melhores escritores portugueses não serem licenciados em Letras: Ferreira de Castro tinha a 4.ª classe do ensino primário, José Saramago o extinto curso industrial, António Lobo Antunes o curso de Medicina, etc., etc. Assim, de igual forma, nasce-se predestinado para a prática do futebol de alta competição (Carlos Queirós e José Mourinho foram-no só medianos), mas não se nasce treinador de futebol. E é essa confusão que tem retardado o progresso do futebol, uma arte e uma técnica hoje com foros de cidadania académica.
Mas esta discussão não é apenas dos dias de hoje. Do mundo distante de milénios das actividades corporais da Antiga Grécia chegou até nós a polémica entre práticos e teóricos. Segundo Galeno (célebre médico grego da escola de gladiadores, tido como pai da actual Medicina Desportiva), os treinadores troçavam das teorias dos professores de ginástica (pedótribas) e dos médicos sob o pretexto de que quando se não tem a prática do ofício não deve ser reconhecido o direito de discutir sobre coisas desconhecidas!
Como escrevi na altura, Severiano Correia, treinador e antigo jogador de futebol, já falecido, fez-se prosélito desta teoria ao subscrever parte da entrevista de Balmanya, então treinador do Bétis de Sevilha, em A Bola, e em que este “se mostrava muito surpreendido com o facto de o Sporting, para além de um treinador de futebol, também ter um preparador físico, situação que não compreendia, uma vez que o técnico deve ser o único responsável por toda a orientação da equipa” (“Tribuna”, Lourenço Marques, 05/03/64).
Por sempre ter defendido a necessidade de ser um professor de Educação Física a ministrar a preparação física das equipas de futebol (e das outras modalidades desportivas), da resposta que me mereceu esta provocatória opinião, respigo: “Ainda recente, o caso até de um treinador de futebol que, pela experiência de 30 anos, reduz à expressão mais simples os conceitos laboratoriais da Medicina Desportiva e da Metodologia do Treino” (“Notícias da Tarde”, Lourenço Marques, 06/03/64). Reacendia-se uma polémica tendo como protagonistas professores de Educação Física, médicos de Medicina Desportiva e treinadores de futebol!
Anos volvidos, ao ler na imprensa que, numa reunião do Sindicato Nacional de Treinadores de Futebol, fora levantado o problema dos técnicos de Educação Física orientarem a preparação técnico-táctica das equipas profissionais de futebol (a preparação física tornara-se já matéria de consenso), não pude deixar de intervir nesta matéria, escrevendo: “Claro que quando um bacharel em Educação Física [de posse do então curso médio de instrutores de Educação Física] nos dá conta de muito ter aprendido, no aspecto da preparação física, com um treinador de futebol, ainda que de gabarito, mas sem preparação académica escolar, todas as conclusões, a partir daqui, são possíveis: até a de considerar exercício ilegal de profissão o facto de um licenciado em Educação Física treinar uma equipa de futebol” (“Jornal Novo”, 15/01/77).
Contrariando os que julgaram ver no futebol uma actividade profissional em que os antigos jogadores de futebol, agora treinadores de futebol, seriam os seus teorizadores, seguiu o desporto-rei a evolução dos outros domínios do saber, reconhecendo a necessidade de uma formação superior para os respectivos agentes.
Assim, numa primeira fase (ou fase empírica) o futebol esteve entregue a práticos, antigos jogadores de nomeada com cursos de treinadores de fim-de-semana (ou pouco mais), merecedores de gratidão porque cabouqueiros do actual futebol português, de que é justo realçar os nomes de Pedroto, Tony ou António Oliveira, por exemplo. Numa segunda fase (ou fase pré-científica), surgiram os então instrutores de Educação Física, Henrique Calisto e Hernâni Gonçalves. Na fase actual ou terceira fase (fase científica), aparecem, entre outros, os teóricos de formação superior em Educação Física (com ou sem a recente “Opção de Futebol”), Carlos Queirós, Jesualdo Ferreira e Carlos Carvalhais. Englobo nesta lista o nome de Artur Jorge com o curso de treinador de futebol obtido numa universidade da ex-RDA.
Consequentemente, não posso deixar de subscrever a opinião categorizada de Joseph Blatter, então secretário-geral da FIFA, quando afirmou que “Carlos Queirós e os seus jogadores praticam o verdadeiro futebol do futuro” (“A Bola”, 23/06/91). Todavia, o messianismo de um super-treinador, capaz de tudo vencer, é carga demasiado pesada para os frágeis ombros humanos, ainda que musculados com os mais altos graus académicos ou títulos honoris causa universitários. Ora, como se leu, em letra de caixa alta, e em título de reportagem n’ “O Jogo” de 24/03/09, “o doutor Mourinho também é humano”. E, como tal, sujeito a errar, como ele próprio humildemente reconhece (ibid.): “Estou disposto a trabalhar o jogo até à exaustão, a perder horas e horas. A ideia é a de tentar reduzir a imprevisibilidade do jogo”, explicando que nunca o conseguirá fazer na totalidade uma vez que “há sempre uma bola que vai ao poste ou um jogador que comete um erro” (a que eu acrescento um imponderável não menor: o árbitro que desvirtua o resultado dos jogos deliberadamente ou não). Não é a bola redonda?
Rui Baptista
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8 comentários:
Um doutoramento honoris causa por qualquer outra cusa que não o mérito científico do doutorando é um dislate. O Doutoramento honoris causa deve ser concedido a um indivíduo com um percurso intelectual brilhante, mas que, por qualquer razão, não se doutorou (estou, por exemplo, a pensar no antigo Presidente do Tribunal Constitucional, Cardoso da Costa, e, se não estou em erro, foi também esse o caso de Roland Barthes). Já atribuirem-se doutoramentos honoris causa a Mário Soares ou a Steve Wonder é apenas estúpido.
Ignoro se o de Mourinho se enquadra nos requisitos que estabeleci ou não. Não ignoro que detesto Mourinho. Não ignoro que, não gostando de Mourinho, ele vai sendo campeão em todos os países por onde passa, desmentindo aqueles (onde eu já me incluí) que dizem que ele não vale nada. Resta a realidade final: Mourinho é o melhor numa actividade de merda: o futebol.
Discordo em parte com um pensamento transmitido. Também um poeta, um músico ou um jogador de futebol tiveram uma “formação” que lhes permitiu atingir o sucesso, nem que tivesse sido a ler muito, a ouvir muita música ou a jogar muito futebol. O caminho para excelência não se faz apenas pela via técnica e universitária. É obvio que os mestres e professores, são uma ajuda muito importante, porém o fundamental é “caminhar”, procurar mais e melhor, mesmo que por vezes esse caminho seja realizado sozinho.
Tenho dúvidas quanto aos méritos do autodidactismo enunciado por SoccerLab. O autodidacta tem sempre por mestre um ignorante.
Na devida altura, responderei "per se", como é meu hábito, aos comentários que forem sendo feitos. Para já uma uma excepção, em resposta a "Funes, o memorioso". Alguém disse, com verve, que "o autodidacta é um ignorante por conta própria". As excepções honrosas, servem apenas para confirmar a regra!"
Li já dois livros sobre os métodos de Mourinho: o "Mourinho, porquê tantas vitórias?" e a tese de Luis Lourenço, "Liderança: As lições de Mourinho".
Pelo que entendi dos estudos efectuados o que se passa é que Mourinho aplicou conhecimento científico ao futebol e ao treinar, criando uma forma original e nova de treinar e de ver o jogo.
Desconstruiu um paradigma vigente e criou um novo com base na sua experiência empírica e nos seus estudos científicos. E melhor: o seu método novo deu resultados práticos excelentes.
Assim sendo, creio que estão reunidos os requisitos essenciais: investigação original e aplicação prática de uma nova tese. Mourinho apenas não reduziu o seu trabalho a escrito num manual nem defendeu a sua tese perante um júri.
Fê-lo para si próprio, aplicou-o na prática e a sua melhor defesa são os títulos que conquistou com o seu método.
Creio por isso que passou o seu doutoramento com distinção e o mesmo é merecido.
Lamentavelmente, é impossível consultar a sua tese como faríamos com qualquer uma outra outra comum... é uma tese que está no segredo de si mesmo e da qual apenas vemos os resultados práticos...
Acabo de detectar uma arreliadora gralha que pousou no galho do meu comentário.Assim, na frase "As excepções honrosas, servem apenas para confirmar a regra", encontra-se uma vírgula a mais.
Caro Rui Baptista,
Esqueça as gralhas, senão o meu comentário vai parecer escrito por um autodidacta. Até "cusa" escrevi, em vez de causa.
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