sexta-feira, 20 de abril de 2007
Jorge Luís Borges e o enigma da educação
Um amigo comprou um livro e emprestou-mo antes de o ler. Tratei de o sublinhar sem qualquer cerimónia e, pior do que isso, muito pior do que isso, de lhe roubar descaradamente ideias para escrever este texto. Só com os amigos tomamos estas liberdades que, bem sei, não devíamos tomar… Tendo redimir-me, esclarecendo que a essência das linhas que seguem não me pertence.
O livro a que me refiro é de Jorge Luis Borges, um dos maiores habitantes de bibliotecas, tem por título “Este ofício de poeta” e foi publicado entre nós, em 2002, pela Teorema. Trata-se dum conjunto de seis conferências ou lições sobre poesia que proferiu nos idos de 1960, na Universidade de Harvard. Por muito ter lido, escrito – ou tentado escrever, notou ele – e analisado, nos quase setenta anos de idade que já contava nessa altura, pôde começar a primeira lição deste modo: “Dediquei a maior parte da minha vida à literatura e só dúvidas posso oferecer-vos."
Percebo tal observação mas parece-me que nessa primeira lição - “O enigma da poesia” -, proferida a 24 de Outubro de 1967, Borges esclareceu de maneira muito clara, sem deixar grande margem para dúvidas, que a poesia para continuar a ser poesia, precisa de ser experienciada por alguém: é no encontro quase mágico entre a obra e o leitor que ela renasce. Na verdade, renasce sempre que é lida e só renasce quando e porque é lida: “Um livro” – diz o escritor argentino – “é um objecto físico num mundo de objectos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então chega o leitor certo e as palavras (…) saltam para a vida e temos a ressurreição da palavra (…). Por isso podemos dizer que a poesia é uma experiência nova a cada vez”.
Assim se afastou de duas ideias distintas, mas igualmente erróneas, que têm sido, de resto, muito debatidas: o texto poético, ou alguns textos bem identificados, têm uma valia a priori, à margem de qualquer leitor; e o texto poético tem uma valia contingente, dependente apenas e só do reconhecimento que certos leitores fazem de certos textos. Em alternativa, pôs a tónica na dinâmica, sempre renovada, entre os textos e as pessoas que neles se detêm, admitindo e explicando que o seu sentido depende de “memórias partilhadas”, mais de carácter universal do que circunstancial, podendo, no entanto, o tempo depreciá-los, “quando as palavras perdem a sua beleza” ou enriquecê-los, quando os torna “mais vivos”.
Ora, apesar de Borges não ter sido, como se sabe, pedagogo, conseguiu captar numa vintena de páginas mal contadas, o sentido e natureza da educação: porque o valor da poesia e de todo e qualquer saber – filosófico, científico, artístico, religioso… – se joga na relação que alguém estabelece com ele, justifica-se a sua transmissão, a sua reflexão, a sua criação e, não menos relevante, o envolvimento emocional com ele. É preciso reconhecer que se trata de tarefas árduas e eternamente inacabadas, pois o saber construído e que se pode construir é da ordem do infinito, e que para ser saber no presente e no futuro, alguém tem de lhe prestar uma atenção especial, de o retomar de modo empenhado, de o cultivar para que se renove. Na escola, esse alguém é plural: são os professores e os alunos, nunca só uns ou outros.
Num poema de Jorge Luís Borges encontro o sentido do que acabei de escrever.
Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que foi arredores.
Os antigos que não nos decepcionarão mais
porque são mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer que jamais terminamos de ler.
A saudade, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O Oriente que, na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro.
Os mais velhos, com quem não conseguiríamos
conversar durante um quarto de hora.
As mutantes formas da memória, que está feita do esquecido.
Os idiomas que mal deciframos.
Um ou outro verso latino ou saxão que não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem faltar porque já morreram.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diversa.
O xadrez e a álgebra, que não sei.
Maria Helena Damião
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10 comentários:
Traduzir é sempre complicado... «Recuerdo» por «saudade»?...
Aqui fica o original:
Lo nuestro
Amamos lo que no conocemos, lo ya perdido.
El barrio que fue las orillas.
Los antiguos, que ya no pueden defraudarnos,
porque son mito y esplendor.
Los seis volúmenes de Schopenhauer,
que no acabaremos de leer.
El recuerdo, no la lectura, de la segunda parte del Quijote.
El Oriente, que sin duda no existe para el afgano,
el persa o el tártaro.
Nuestros mayores, con los que no podríamos conversar
durante un cuarto de hora.
Las cambiantes formas de la memoria,
que está hecha de olvido.
Los idiomas que apenas desciframos.
Algún verso latino o sajón, que no es otra cosa que un hábito.
Los amigos que no pueden faltarnos,
porque se han muerto.
El ilimitado nombre de Shakespeare.
La mujer que está a nuestro lado y que es tan distinta.
El ajedrez y el álgebra, que no sé.
Alef,
Já lhe elogiei o comentário num outro post, por o achar inteligente, mas agora digo-lhe que se fazer uma tradução é complicado, fazer uma crítica também não é nada fácil. A forma seca e arrogante com que emendou a tradução leva-me a crer que não percebeu o enigma referido no título do post.
guida martins
É sempre difícil "ler" atitudes. Não achei nada arrogante, pelo contrário, agradeço a versão original, como agradeço a MHD ter colocado aqui o poema traduzido: é muito bonito.
Guida:
Muito me espanta o seu comentário. Não houve qualquer intenção arrogante da minha parte, mas cada um é livre de opinar como achar melhor. O que não significa que todas as opiniões valham sempre o mesmo, sobretudo quando se trata de julgar intenções ou atitudes alheias.
De facto, chamou-me a atenção o termo «saudade», que é possível, mas, como tantas vezes, traduzir é interpretar. «Recordação» não ficaria certamente muito bem... Talvez se pudesse pôr «lembrança»... E não me escandaliza «saudade», mas fica-me um ponto de interrogação... E como o poema original é realmente muito bonito, sem mais comentários, coloquei-o. Se o retirarem, não me zango... Não vamos fazer disto um «caso».
Alef
E algo importante, que ficou por escrever: peço desculpa se o meu comentário inicial feriu alguém.
Alef
Alef
Não quero de forma nenhuma fazer disto um caso e concordo, inteiramente, que julgar atitudes é muito "arriscado" e talvez não o devesse ter feito, pelo que lhe peço desculpa. O que aconteceu foi que também eu me surpreendi com o seu comentário. Tenho lido, com muito interesse, os seus comentários, nomeadamente os relativos a questões filosóficas e aprendido muito (a minha filosofia nem chega a ser de café, é mais da de "trazer por casa"). Verifiquei que o alef tem uma excelente capacidade de argumentação na defesa das suas posições e talvez não esperasse, de si, um comentário tão "seco" a um texto tão interessante e a um poema tão bonito, tanto na versão traduzida como na original. De quaquer forma, acredite, que vou continuar a lê-lo com o mesmo interesse.
guida
Muito bem, Guida, «caso encerrado». Bem-haja.
Disfrutemos da poesia, dêmos vida à Biblioteca...
Alef
Prof. Helena:
Parece-me que o seu post toca uma questão muito importante que vem sendo discutida aqui - nomeadamente pelo Desidério - que é o valor do conhecimento. Só se os alunos tiverem capacidades suficientemente desenvolvidas é que serão capazes de apreciar devidamente um texto, seja ele qual for, e apropriar-se do que lá é dito, para que esse conhecimento, e a sua beleza, não caia no esquecimento.
Para além de dotar os alunos com as competências de que necessitam para ingressar no mundo do trabalho, todos deveriam ter oportunidade de desenvolver capacidades que lhes permitissem - ou que os levassem a querer - ler algumas das obras que constituem um património que desaparecerá se cair no esquecimento. Esquecermo-nos disto será esquecermo-nos de sermos Humanos.
Só mostrando a beleza destes textos, as pessoas lhes poderão atribuir valor...
Obviamente que se só se mostrar aos alunos textos sobre o Big Brother, eles só conhecerão o Big Brother. Mas se se mostrar a beleza da literatura, pode ser que daqui a alguns anos a saibam apreciar devidamente.
Cumprimentos,
José Oliveira
Tomar.
Pessoalmente prefiro ler os textos na sua lingua original sempre que possivel, começando a ser já um habito meu, não sou adepto de traduções que muito dificilmente são fieis ao seu original, tento arranjar uma edição da sua lingua original.
Com o que Jorge Luís Borges escreveu tenho lido alguns poemas seus, em Espanhol Latina-Americano.
Cada lingua tem as suas singularidades e compreendo a necessidade de haver traduções para certos públicos, por isso quando o fazemos temos que defender a nossa identidade cultural e linguistica, defendendo a nossa portugalidade, mais niñguem o fará por nós, devemos ter presente que o hispanismo é uma realidade fortemente dinamica nos ultimos anos tanto no universo audiovisual como editorial, reflexo do poder economico e cultural de espanha, claro que a escolha da palavra "saudade" não é inocente mas é necessário assumir a escolha de tradução que fazemos, o compromisso que se assume entre os dois universos linguisticos e também o risco que isso comporta, tanto para quem escreve como para quem lê. Enquanto leitor teremos que ser criticos mas até isso está sempre limitado às nossas escolhas entre as diversas legitimidades linguisticas e culturais.
Já mais pensaria lêr um autor português noutra lingua, que não seja em Português, julgo que sou um leitor critico e tenho feito as minhas escolhas. Agora cada um que faça a sua escolha.
Mas o problema da tradução é cientificamente interessante (e não só, também das "opções editoriais" da Helena, que colocou cada frase numa só linha, quando no origianl são, pelos vistos, 2 versos). Para o tema geral do post, será relativamente indiferente. Mas não posso deixar de apreciar o confronto com o original, que o Alef nos proporcionou e que pessoalmente acho enriquecedor.
Até porque aos alunos poderíamos eventualmente perguntar: as "orillas" do bairro serão só "arredores"? E aqui é que a poesia se torna modo específico (e vivo)de falar do mundo, creio. No diálogo com os leitores, como também diz a Helena.
Marvl
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