quarta-feira, 22 de junho de 2016

Colóquio sobre a cultura e as língua clássicas no ensino básico

Representação da peça Prometeu Agrilhoado de Ésquilo pelo grupo de teatro Thíasos, 
do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
(Claustros da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da mesma universidade)  
(Fotografia de Belmiro Fernandes Pereira)

Para fazer face ao progressivo desaparecimento da cultura e das línguas clássicas do currículo escolar, em 2015, o Ministério da Educação/Direcção Geral da Educação entendeu acolher um projecto destinado ao Ensino Básico designado por “Introdução à Cultura e Línguas Clássicas”.

Trata-se de um complemento curricular que as escolas portuguesas podem integrar, como "Oferta de Escola", no seu Projecto Educativo.

Foi proposto por diversas entidades que se têm mostrado particularmente preocupadas com a situação de abandono dessa área de conhecimento civilizacional no nosso sistema de ensino: Associações de Professores, Departamentos Universitários, Centros de Formação de Associações de Escolas, Centros de Investigação e Escolas.

Um ano após a realização de um Seminário nacional de apresentação desse projecto, que teve a presença do então Ministro Nuno Crato, de representantes da Direcção Geral da Educação e de muitos directores, professores e estudiosos de todo o país, teve lugar no passado dia 4 de Junho, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, um Colóquio internacional cujo objectivo foi fazer o balanço do trabalho desenvolvido durante o ano nas nossas escolas e traçar linhas de actuação para o futuro.

Foram convidados especialistas e professores europeus que deram o seu testemunho sobre o ensino das línguas clássicas nos seus países, onde, em virtude das recentes reorganizações do currículo, se faz sentir o mesmo problema.

Em nenhum deles, porém, a situação se compara com a portuguesa: em Itália o estudo da língua latina é obrigatório durante cinco anos, tanto para os alunos da área de humanidades como para os da área científica, enquanto o grego é apenas obrigatório na área de humanidades. Na Áustria também o latim é estudado por alunos de ambas as áreas, tal como na Bélgica. Em Espanha, o latim continua a ser obrigatório para os alunos de estudos humanísticos. Apenas em Portugal a disciplina de latim é opcional no ensino secundário e, na maior parte dos casos sem hipótese de funcionar, por não haver  número suficiente de alunos para que a escola possa abrir uma turma.

Foram igualmente convidados representantes das ciências, das artes, da pedagogia, que explicaram, nas suas intervenções, a importância da cultura e das línguas clássicas para o seu trabalho de investigação, de criação e de ensino.

A representante da Direcção Geral da Educação sublinhou essa importância e acentuou o valor formativo da mencionada área em níveis precoces de aprendizagem e ao longo da escolaridade.

Foi dado um lugar de relevo aos depoimentos das direcções das escolas e aos professores que integraram o projecto durante este ano lectivo e que, com entusiasmo, permitiram que muitas centenas de alunos do 1.º ciclo até ao 9.º ano fizessem uma viagem pela Antiguidade numa ligação com o Presente.

O modo diverso como o projecto foi apreendido e desenvolvido superou as expectativas dos proponentes, sinal de que ainda existem no sistema pessoas que podem concretizá-lo e que têm vontade de o fazer.

Tratou-se, enfim, de um bom começo.

O facto de ter agregado, por vontade própria, tantas entidades e tantas pessoas traduz um consenso muito louvável acerca da importância da cultura e das línguas clássicas no currículo que a escola deve proporcionar.

Esperamos que este bom começo venha a alterar o panorama do ensino secundário, onde o número de alunos que frequentam o latim e o grego é absolutamente residual.

Helena Damião, Isaltina Martins, Cláudia Cravo, Delfim Leão, 
José Luís Brandão, Alexandra Azevedo, Paula Barata Dias.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Os antigos mamíferos tiveram de ver no escuro


Declarações que fiz ao Público para um artigo da jornalista Andrea Cunha Freitas que saiu hoje sobre a visão animal:

Paleontólogos, geneticistas, biólogos, químicos e físicos trabalham hoje em conjunto para esclarecer os mistérios que permanecem acerca da origem da fantástica capacidade de os animais verem o mundo colorido. Apesar de restar ainda muito por esclarecer, todos os avanços têm corroborado a teoria de Darwin, segunda a qual, após a diferenciação que define uma nova espécie, o que acontece por acaso (mutação ou modificação ocasional do ADN), é crucial a adaptação ao meio ambiente. Os genes codificam os receptores de luz que podem ser cones e bastonetes. Os seres humanos, tal como a generalidade dos primatas, têm três tipos de cones, os receptores de luz colorida (vermelho, azul, verde), e um tipo de bastonetes, os receptores de luz mais sensíveis dispostos principalmente na periferia na retina que possibilitam alguma visão nocturna. Os bastonetes só são respondem à luz de uma cor verde-azulada: por isso é que se diz que “de noite todos os gatos são pardos”  Sabe-se que mamíferos muito antigos,  antepassados remotos dos primatas, tinham quatro tipos de cones, mas, a certa altura, no tempo dos dinossauros (há mais de 66 milhões de anos, quando eles se extinguiram), eles perderam, por mutação, uma boa parte da visão da cor, ao ficarem só com dois cones. Os primatas readquiriram muito depois capacidade de ver a cor, graças a um fenómeno, de novo ocasional, chamado duplicação de genes.

Sabe-se, contudo, menos sobre a história evolutiva dos bastonetes. O trabalho agora publicado apoia a ideia de que os pequenos mamíferos que viveram no tempo dos dinossauros tinham vida nocturna, para evitarem serem comidos pelos grandes répteis. A sua visão no escuro, essencial ao seu modo de vida, foi melhorada através da multiplicação de bastonetes, a partir de cones azuis, por meio de um mecanismo biomolecular agora proposto. Hoje possuímos ainda os bastonetes em grande número (eles são muito mais numerosos que os cones), apesar de a nossa visão nocturna não ser essencial para a nossa sobrevivência, como uma marca desses tempos primitivos.  Uma vez que o nosso genoma – o conjunto de todos os genes -  resulta de genomas antigos, temos vestígios de espécies animais extintas dentro de nós. Quer dizer, transportamos connosco a nossa história evolutiva.


segunda-feira, 20 de junho de 2016

DETECTADAS NOVAS ONDAS GRAVITACIONAIS

Texto primeiramente publicado na imprensa regional.

T. PYLE/LIGO


Há milhares de anos que o ser humano desvenda o universo através da luz visível. Com ela aprendemos a ver o cosmos. No século XVII, a partir do uso do telescópio por Galileu para observar o céu nocturno (e não só) descobrimos que havia muito mais luz onde antes só havia breu. Com o progressivo desenvolvimento de melhores telescópios os astrónomos foram vendo cada vez mais estrelas, descobrindo galáxias e outros astros. A contemplação do universo deslumbrava, mas o melhor ainda estava para vir.

Com a descoberta de diferentes gamas de radiação electromagnética (infravermelho, ultravioleta, ondas de rádio, micro-ondas, raios X, raios gama), de que a luz visível é uma muito pequena parte, foi possível amplificar a nossa íris de observação do universo e descobriu-se o que antes não se conhecia nem se pensava existir. O Universo é muito maior e antigo do que se julgava. Uma nova astronomia e cosmologia nasciam há cerca de cem anos.

Contudo, temos observado o universo “só” através da radiação electromagnética que nos chega. E hoje sabemos que o Universo observável através desta radiação corresponde só a 4% daquilo que se estima constituir o Universo. Por exemplo, a radiação electromagnética parece não interagir com a matéria negra (que sabemos existir, mas não sabemos o que é!). Mas esta matéria negra parece interagir graviticamente com os corpos com massa como as galáxias. Se a gravidade é importante para compreender o movimento dos corpos feitos com a mesma matéria que nos compõe, talvez ela nos traga alguma luz sobre aquilo que não podemos ver, como sejam os buracos negros.

É por aqui que a detecção de ondas gravitacionais, previstas teoricamente há precisamente cem anos por Einstein, pode permitir-nos dizer que poderemos estar na alvorada de uma nova jornada na nossa investigação sobre o universo em que existimos. E o mais deslumbrante é que é imprevisível o que ainda não conhecemos hoje. A surpresa mora no futuro.

Einstein previu que certos fenómenos não só deformariam o espaço-tempo, como dariam origem a ondulações, a ondas gravitacionais. Assim como o choque de uma pedra com a superfície de um lago gera ondas que podemos sentir na margem, acontecimentos envolvendo grandes massas em movimento acelerado provocam ondulações que se propagam no espaço-tempo à velocidade da luz.

A teoria prevê que as ondas gravitacionais resultantes de fenómenos muito distantes da Terra sejam muito ténues. Para a sua detecção directa os cientistas necessitam de instrumentos muito sensíveis. Ao longo das últimas décadas, foram instalados para esse efeito quatro detectores baseados na interferometria de raios LASER: dois nos Estados Unidos (LIGO - Laser Interferometer Gravitational-Wave Observator), um na Alemanha (GEO600) e outro na Itália (VIRGO).

Agora, no passado dia 15 de Junho, foi publicado um artigo na revista PhysicalReview Letters que anuncia que às 3h38m de 26 de Dezembro os dois detectores LIGO, em colaboração com o detector VIRGO, detectaram directamente pela segunda vez ondas gravitacionais. Estas demoraram apenas 1,1 milissegundos entre os dois detectores (situados a 3000 km de distância entre Livingston e Hanford nos EUA) e, segundo a simulação efectuada pelos cientistas,  foram geradas  há cerca de 1400 milhões de anos nas últimas 27 órbitas de dois buracos negros antes de estes se fundirem. Os buracos tinham 14 e oito vezes o tamanho da massa do Sol e o resultante com 21 vezes a massa solar. Durante este evento cósmico, cerca de uma massa solar de energia foi convertida em ondas gravitacionais, as que agora foram sentidas na Terra.

É a confirmação de que somos capazes de detectar ondas gravitacionais, que os buracos negros existem e de muitos andam” aos pares por esse Universo fora. Agora vemos onde antes eramos cegos.


António Piedade

sábado, 18 de junho de 2016

"Tenho pena de quem tem que andar no público"

Fotografia de Inácio Rosa/Lusa publicada hoje no jornal Expresso (aqui)

Recebemos, em comentário, há bastante tempo - muito antes da última gritaria (supostamente) em defesa da escola pública e da escola privada - o texto que se segue que, a ser verdadeiro, presumo ter sido escrito por uma aluna do 3.º ciclo do ensino básico ou do ensino secundário.
"Eu tenho a dizer que, graças ao estado comparticipar o ensino privado, pude ter o privilégio de estudar numa das melhores escolas do país, não só em termos de conteúdos leccionados, mas também em termos de princípios morais e cívicos... Se assim não tivesse sido, os meus pais não teriam como me proporcionar este tipo de ensino pois a verba familiar era reduzida e eu teria sido uma infeliz na escola pública, onde fui vitima de bulling e a direcção nunca se preocupou, onde as minhas notas estavam a piorar de dia para dia porque eu era apenas mais uma aluna na sala de aula (turma com 17 alunos) e os professores não tinham qualquer interesse em ajudar os alunos... Na escola privada em pouco mais de mês e meio já era uma das melhores alunas da turma, porque despendiam de tempo para me ajudar (turma de 31 alunos), a escola estimulava os alunos com imensas actividades culturais... E posso dizer que sou hoje o que sou, graças aos meus pais e aquela escola, que me fez crescer longe de tanta malícia, em que o foco era MESMO a minha educação... Eu tive as duas experiências publico e privado... Tenho pena de quem tem que andar no público".
Guardei este texto por me ter impressionado de diversas formas. Uma delas, a que serve para a presente nota, é que há nele diversos elementos verdadeiros, os quais, não podendo se generalizados, deviam fazer-nos pensar.

As escolas públicas são as que mais se têm ressentido da aplicação de políticas e medidas internacionais e nacionais desastrosas que negam a sua própria missão: o ensino e a aprendizagem académica. São também as mais frágeis face à sedução e pressão que as mais diversas entidades, com destaque para as que têm poder económico, exercem sobre elas, fazendo infiltrar interesses marginais a essa missão.

As escolas privadas têm a seu favor uma maior margem de manobra no que respeita à aplicação dessas políticas e medidas, e também de aceitação dessas pressões. E algumas fazem-no da melhor maneira.

Talvez seja esse o caso das escolas que a aluna que nos escreveu frequentou ou frequenta.

Na verdade o sistema não se pode dividir em dois tipos de escolas: as boas, que são as públicas, e as más, que são as privadas; ou o contrário as boas, que são as privadas e as más, que são as públicas. 

Não retirando uma vírgula ao que antes disse neste blogue - o sector público e o sector privado podem coexistir apesar de o Estado não poder, de modo algum, comparticipar financeiramente o privado -, entendo que o que está em causa é proporcionar escolas boas para todos.

Escolas que sejam pensadas e funcionem em função de uma noção consistente de Bem: para os alunos, para a sociedade e para a humanidade. Trata-se de uma questão filosófica a que temos de voltar quanto antes.

Gostava de ter visto essa questão aflorada na manifestação que hoje levou milhares de pessoas a Lisboa em defesa da escola pública e gostava de ter visto isso nas manifestações anteriores em defesa da escola privada. Mas não vi, o que vi foram os slogans do costume que nada têm a ver com os a defesa do ensino e da aprendizagem.

Será impossível um país unir-se em favor da Escola?

Que escola estamos a construir?

Dizer que a escola está a sofrer uma grande transformação é já um lugar comum, todos constatamos isso. Mas é importante perguntar: Será essa transformação a correcta? Será para melhor?

Infelizmente, se há aspectos positivos nessa transformação, há também muitos aspectos negativos, principalmente no que diz respeito ao que deve ser o papel da escola.

A "escola" como o lugar de aprendizagem parece ter "passado à história". Hoje assiste-se a uma "mercantilização" do ensino, na escola cabe tudo, menos aprender...

A valorização do lucro, do imediatismo, do que tem utilidade em termos económico-financeiros está a pôr de parte, em muitos casos, a importância do conhecimento, do saber, da reflexão, da interiorização de valores universais.

E o problema parece estar a generalizar-se. Os interesses economicistas estão a sobrepor-se em todo o lado.

No blogue de um professor italiano (professor de línguas clássicas) podemos ler as mesmas queixas: a escola, diz o professor Massimo Rossi, transformou-se numa empresa, que tem de dar lucro; a quantidade sobrepõe-se à qualidade; a imagem externa é que conta, mais do que a qualidade do ensino ministrado; o professor é considerado melhor se fizer muitos projectos que tenham visibilidade externa. Eis alguns parágrafos do texto desse professor de um Liceu Clássico da região de Siena:
Ma quest’anno, all’amarezza solita, si aggiunge il profondo disagio di vivere in una realtà – la scuola italiana – che non è più quella che era quando ho cominciato ad insegnare, una scuola dove le norme imposte dall’alto stanno distruggendo quel poco di buono che in tanti anni eravamo riusciti a costruire con il nostro impegno, la nostra professionalità, il nostro amore per l’educazione e la formazione dei giovani. La tendenza attuale è quella di privilegiare la forma sulla sostanza, l’immagine sulla realtà effettiva, la quantità sulla qualità.
E mais adiante afirma:
Già l’aver definito la scuola “azienda”, gli studenti “utenti” e il preside “dirigente” qualifica il nuovo stato di cose: sì, perché le parole sono importanti e non vengono attribuite a caso; e così quella che era un’istituzione educativa e formativa è stata trasformata in un organismo commerciale che segue le leggi del mercato. L’immagine esterna di una scuola ha prevalso sulla qualità dei suoi insegnanti, nel senso che un progetto ben riuscito a livello territoriale ha certamente più risonanza di un gruppo di docenti che lavora con coscienza e competenza nelle proprie classi; l’attività di orientamento verso i futuri studenti non si è più fondata sull’eccellenza dell’insegnamento, ma si è cercato di attrarre i ragazzi proponendo gite, scambi culturali e progetti vari, e ciò ha provocato il fatto che molti studenti si sono iscritti a certi corsi senza avere le capacità o le attitudini per potervi riuscire ma solo perché attratti da queste attività complementari. Ancor oggi vige la norma della quantità: ogni scuola è contenta se aumenta il numero dei propri iscritti, prescindendo del tutto dalle loro qualità e disponibilità ad apprendere. Basta fare numero, tutto il resto non conta. Ed in base a questo principio molti scrutini sono diventati delle farse vergognose, in cui si assiste a promozioni assolutamente immeritate soltanto perché altrimenti “si perdono le classi”.
Pode ler-se o texto completo aqui

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Por uma "cultura de segurança"


O livro Managing Maintenance Error: A Practical Guide não é recente (é de 2003), mas só agora o li. Se aqui o refiro é porque o considero uma mais valia para quem se preocupa com o erro e com a sua possibilidade no campo profissional.

Nele James Reason, autor de referência no estudo do erro humano, e Alan Hobbs, investigador consagrado na área da segurança de sistemas, tratam o tema no âmbito do desempenho de profissionais que têm grandes responsabilidades na operação de sistemas complexos.

Enquadrados na área disciplinar designada por ergonomia cognitiva, retomam de trabalhos anteriores, sobretudo de Reason, o esclarecimento da noção de erro, bem como diversas categorizações dos erros e condições que os provocam. Avançam também explicações e estratégias fundamentais acerca da prevenção, detecção, superação e recuperação de erros mas vão muito além disso.

Exploram sobretudo a associação do erro à condição humana e, em função disso, detêm-se nos aspectos psicológicos subjacentes aos processos de decisão. Detêm-se também na formação dos profissionais e no que se designa por "cultura de segurança" nos locais de trabalho.

A título ilustrativo, apresentam a análise de casos de erros que provocaram acidentes de grande monta com o intento de que o seu conhecimento impeça que se repitam. Mas fazem-no com a consciência de que outros espreitarão.

Aprendendo com o erro

Meu artigo no n.º 5 da revista XXI - Ter opinião, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, do qual saiu ontem um excerto [adaptado], no exame nacional de Português do 12.º ano:

[In memoriam José Mariano Gago]

A ciência tem, hoje, tantas e tão úteis aplicações nas nossas vidas que a associação mais imediata que o cidadão comum faz hoje à ciência não pode deixar de ser a tecnologia. Essa associação, embora não diga o essencial sobre a ciência – que é acima de tudo a descoberta do mundo pelo homem – não deixa de ser adequada. A tecnologia precedeu a ciência – isto é, o fazer antecipou o saber – mas, na modernidade, toda a tecnologia passou a derivar da ciência  –  o saber passou a ser a única fonte do fazer.

As aplicações da ciência não se fazem sem riscos. Aliás, nada na vida humana, se faz sem risco. Não existe risco zero: é inevitável que vivamos permanentemente sob ameaças. Há que distinguir, na análise dos riscos, entre aquilo que são azares, eventos naturais desfavoráveis (aquilo que, nas antigas apólices de seguro, se chamavam “actos de Deus”), e erros, que resultam de falhas humanas (“errare humanum est”), que podem ir desde insuficiente cuidado no planeamento até uma acção dolosa, passando por um acidente involuntário. Se os azares não podem ser evitados, os erros podem e devem, tanto quanto possível, ser prevenidos. É decerto virtuosa a aprendizagem que podemos fazer a partir deles. A ocorrência de um certo erro deve despoletar medidas para evitar situações do mesmo tipo. Podemos continuar a errar, mas os novos erros serão menores e, sobretudo, diferentes. A ciência, através do seu moderno braço armado que é a tecnologia, protege-nos dos riscos inerentes à Natureza e minimiza os riscos originados por acções humanas. Se é certo que os avanços da ciência, ao possibilitar novas intervenções do homem no mundo, geram riscos, não é menos verdade que a ciência, a aplicação correcta do método científico, ainda é o melhor instrumento de que dispomos para errar cada vez menos.

Como medir o risco? A ciência quantifica normalmente o risco usando a noção de probabilidade. [Por exemplo, voar é seguro, mas não é 100 por cento seguro. A probabilidade de o leitor sobreviver no seu próximo voo de avião é de 99,9999815 por cento.] Contudo, a noção de probabilidade não é de fácil apreensão pelo comum das pessoas. Muitos passageiros, mesmo sabendo do baixo risco de fatalidade (0,0000185 por cento), têm medo quando entram num avião. O nosso cérebro tem dificuldade em avaliar riscos.

[...]

[Como vimos,] o risco, correcta ou incorrectamente percepcionado, está por todo o lado nas nossas vidas, sendo várias as interrogações que se podem colocar em face dele. A ciência traz-nos constantemente novos riscos assim como maneiras de os minimizar. Os exemplos anteriores sugerem que a ciência, sendo assaz relevante, não é nem pode ser tudo numa tomada de decisão. [...]

Qual é então o valor da ciência? E quais são os perigos da ciência? De facto a ciência como processo intelectual de descoberta do mundo é inofensiva. É melhor saber do que não saber. Mas a actividade que o homem exerce ou pode exercer no mundo uma vez de posse do conhecimento científico, é sempre arriscada.

[...] 

quarta-feira, 15 de junho de 2016

O SISTEMA TERNÁRIO DOS ENSINOS BÁSICO E SECUNDÁRIO

Meu artigo de opinião saído na edição de ontem do PÚBLICO: 

“Tudo o que sucede, sucede por alguma razão”.
 Gabriel Garcia Marquez

Acabo de ler o artigo “Escolas públicas, vidas privadas”, saído no PÚBLICO (12/06/2016), da autoria de Manuel Carvalho, com o qual me identifico, quase diria por completo, reconhecendo-lhe o mérito de perspectivar esta temática para além do binário ensino oficial/ensino convencionado com a achega do ensino privado.

Aliás, no meu longo deambular em quatro artigos de opinião neste jornal sobre uma polémica que está longe de terminada, titulei um deles: “Ensinos oficial, convencionado e privado”(13/11/2013). Nele chamava a atenção para o ensino privado, da forma seguinte: “Em plena época de grave crise económica, promover uma situação de favor para o ensino privado subsidiado pelos cofres do Estado, poderá ser uma forma de transformar o ensino privado, com longa e valiosa tradição (em minha lembrança e a título de mero exemplo, o Colégio Valsassina de Lisboa, Membro-Honorário da Ordem de Instrução Pública) num barco em perigo de dernar por, em nome da sua independência, dispensar quaisquer formas de subsídios estatais. Salvo melhor opinião, reduzir esta questão ao binário , ensino oficial/ensino privado convencionado pode ter como consequência trágica ferir de morte o ensino privado, tout court”.

 Entretanto, não posso deixar de estranhar que se tenha tentado criar o mito de que a esquerda tem estado de alma e coração em defesa de um ensino oficial verdadeiramente dignificado. Aduzo, também, o facto de a Fenprof, pouco preocupada com a exigência na formação dos professores, se apresentar tardiamente (isto é, quando o final de alguns contratos de associação estão anunciados formalmente), apenas como apoio logístico da mega manifestação a levar a efeito no próximo dia 18 deste mês em defesa da escola pública. Por seu turno, o Partido Socialista, como partenaire do PSD, está longe, bem pelo contrário, de sair sem mácula na criação, nem sempre justificada, dos primeiros contratos de associação. E, por outro lado, acresce terem sido no consulado de José Sócrates construídas escolas oficiais faraónicas (apesar da diminuição da população escolar), enquanto paredes-meias antigos e prestigiados liceus viam as paredes a abrir brechas e a chover dentro das salas de aulas. Ora, se, como diz o povo, águas passadas não movem moinhos, devemos, portanto, saudar a coragem da secretária de Estado “Alexandra Leitão se ter tornado o rosto do combate contra a continuação dos contratos de associação”(Manuel Carvalho).

 Claro que numa sociedade ideal, que está longe de ser a nossa, como disse Jean Jaurès, “atingir o ideal é compreender o real”, deveria haver, mas não há, toda a possibilidade em os pais poderem inscrever os filhos, onde quisessem fazê-lo, mas sem ser à custa do erário público, o dinheiro dos impostos de todos nós, por vezes, em mera satisfação megalómana de famílias mais ou menos abonadas que gostam de blasonar terem os filhos a estudar em colégios privados. Justiça seja feita a Alexandra Leitão que paga do seu bolso os custos de ter duas filhas suas a estudar no Colégio Alemão.

 Esta a diferença não despiciente entre estas duas situações. Ou seja, quem quer luxos deve-os pagar não se tornando parasita de uma economia em que os pobres estão cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Duas perspectivas sobre emigração: António Costa e Mário Nogueira


O comentário do engenheiro Ildefonso Dias feito ao meu post “O Conselho Nacional de Educação e a Avaliação dos Professores” (13/06/2016), leva-me a confessar desconhecer o caso por si relatado. Fui informar-me, e para que possam ser tomadas as ilações pertinentes, transcrevo do “Expresso” dois parágrafos:
1. “A história parece estar a repetir-se. Tal como Pedro Passos Coelho em 2011, este domingo António Costa incentivou os professores a emigrarem, ao referir-se ao alargamento do ensino da língua portuguesa em França. “É uma oportunidade de trabalho para muitos professores de Português que, por via das alterações demográficas, não têm trabalho em Portugal e podem encontrar trabalho aqui, em França”, disse.
2. Mário Nogueira, líder da FENPROF, diz ver um “significado diferente” nas declarações de Costa. “Passos Coelho disse para os professores emigrarem para outras áreas. Não disse para irem dar aulas”, explica ao “Jornal de Notícias”. 
Ponto 1: A leitura do texto não deixa dúvidas daquilo que António Costa queria dizer e não daquilo que quereria dizer, mas não disse. E para se justificar para o facto de não ter apelado à emigração, serve-se do sofisma: “A estrada da Beira e a beira da estrada não são a mesma coisa, pois não?” (“Económico”). Claro que não! Mas o que tem uma coisa a ver com a outra?

Ponto 2: Mário Nogueira, professor do 1.º ciclo do básico (por formação) e sindicalista (em exercício) escreveu aquilo que se costuma dizer ser pior a emenda que o soneto. Ou seja, como se emigrasse não fosse sair do próprio país, onde não se encontra emprego, independentemente do emprego procurado num país estrangeiro.

O que aqui está em questão é o flagelo do desemprego que grassa em Portugal, a exemplo do tempo da chamada "Mala de Cartão” tão criticada depois de 25 de Abril.

Moral da história: “A oposição é a arte de estar contra, mas com uma habilidade tal que logo se possa estar a favor” (Maurice de Tayllerand, político e diplomata francês, 1754-1838). E a coisa complica-se desastrosamente quando a habilidade cede lugar à inabilidade!

O PEQUENO CEMITÉRIO QUE TODOS OS CIRURGIÕES CARREGAM DENTRO DELES


A minha entrevista ao neurocirurgião Henry Marsh, para a Notícias Magazine, feita em Lisboa, onde esteve para lançar o seu livro Não faças mal (Lua de Papel), já traduzido em 22 línguas:

"Quando se é neurocirurgião e se acredita na alma ou nalguma forma de vida depois na morte, temos de lidar com uma séria dissonância cognitiva. Porque nós somos o nosso cérebro. E voltamos onde começámos. Quando vemos pessoas com danos cerebrais, cuja personalidade e moral mudam, é muito difícil acreditar que alguma coisa sobrevive para além da morte. Mas isso não desvaloriza o pensamento, valoriza a matéria, de maneiras que não compreendemos. Como é que estas moléculas produzem pensamento consciente? Eu considero isso profundamente empolgante."

segunda-feira, 13 de junho de 2016

O Conselho Nacional de Educação e a Avaliação dos Professores

“Não gosto da democracia, quando os que nos governam não são os mais competentes”.
Sócrates (Diálogos de Platão”)


Acabo de ler, no jornal “Público” de hoje, um editorial, intitulado “Alertas ao ensino na semana de exames”, que faz eco de um conselho do Conselho Nacional de Educação. Dele extraio a parte derradeira: “Se os inspectores também pudessem observar as aulas, talvez as avaliações (de professores, alunos e escolas) fossem melhor e mais justas. Resta saber se tais alertas serão escutados ou apenas tidos como decorativos”.

 Por ser de há muito, e em vários textos, defensor de uma avaliação séria dos professores capacitada, com a fragilidade das limitações da condição humana, para distinguir, numa escala gradativa de William Ward, “o professor medíocre que diz, o bom professor que explica, o professor superior que demonstra e o grande professor que inspira”, publiquei aqui no “DRN”(27/02/2008), um post intitulado “A avaliação dos Professores”, que reproduzo integralmente, imediatamente abaixo:

 “Existe um declarado braço-de-ferro no sistema educativo português que o programa da RTP 1 “Prós & Contras” de 25 de Fevereiro de 2008 veio mostrar e até agudizar. Para esta situação muito tem contribuído por um lado a teimosia da ministra da Educação e por outro as sucessivas manifestações sindicais de rua, por vezes à porta das escolas e na presença dos alunos, pautadas por um comportamento cívico pouco próprio. Aliás, a forma de estar de ambos os litigantes numa discussão nada clarificadora sobre a avaliação dos professores está bem caricaturada num alusivo cartoon: “Parece que os professores não estão contentes com as novas medidas da ministra da Educação. E o que dizem os sindicatos? Uns que tem 1,50 m e outros 1,60 m”.

 Neste clima de guerrilha permanente, noticiava “O Primeiro de Janeiro”, no passado dia 20 de Fevereiro, medidas de intimidação por parte da Fenprof: “Mas, se a política não mudar, os professores ameaçam tornar a vida do Governo muito difícil no que resta da legislatura”. É certo que a situação de prepotência inviabiliza qualquer diálogo. Mas não é menos certo que se deve excluir a utopia de o sistema educativo possuir apenas bons profissionais nos quadros docentes ou, mesmo até, como exagerou Mário Nogueira da Fenprof, no referido programa televisivo, ao querer passar a sua mensagem sindical de excelência docente, “de haver professores mais excelentes e professores menos excelentes” . Quando a fartura é muita, o pobre desconfia!

 Debrucemo-nos sobre a realidade dos factos. Até ao recente congelamento das carreiras docentes, o acesso dos professores licenciados ao 10.º escalão era feito num processo avaliativo similar aquele que João Lobo Antunes teve num dos seus livros como uma “calha que permitia deslizar sem atrito”. Ou seja, o acesso dos professores ao escalão de topo dependia dos anos de serviço e da frequência de acções de formação meramente presenciais, por vezes em temáticas nada relacionadas com as disciplinas ministradas. Não considerando os casos de indivíduos que entretanto faleceram ou desistiram da docência, tratava-se, portanto, de um processo de avaliação laxista: a percentagem dos que chegavam ao 10.º escalão devia andar perto dos 100 por cento. Seria vantajoso que o ministério da Educação publicasse o valor exacto dessa percentagem.

 Assim tornar-se-ia possível confrontar esta percentagem de êxito docente com a percentagem de fracasso de alunos, isto é, que não completaram os seus estudos, apesar das recentes medidas governamentais relativas às “Novas Oportunidades” e outras, como, por exemplo, o acesso ao ensino superior de maiores de 23 anos, em que o simples BI substitui o diploma do 12.º ano de escolaridade.

 Tentemos, agora, encontrar paralelos entre o panorama educacional português da actualidade e o descrito neste texto de Arthur Schopennauer (1778-1860):

“O que em sociedade desagrada aos grandes espíritos é a igualdade de direitos e, portanto, de pretensões, em face da desigualdade de capacidades, de realizações (sociais) dos outros. A chamada boa sociedade admite méritos de todo o tipo, menos os intelectuais: estes chegam a ser contrabando. Ela obriga-nos a demonstrar uma paciência sem limites com qualquer insensatez, loucura, absurdo, obtusidade. Por outro lado, os méritos pessoais devem mendigar perdão ou ocultar-se, pois a superioridade intelectual, sem interferência nenhuma da vontade, fere pela sua mera existência. Eis porque a sociedade, chamada boa, não tem só a desvantagem de pôr-nos em contacto com homens que não podemos louvar nem amar, mas também a de não permitir que sejamos nós mesmos, tal qual é conveniente à nossa natureza. Antes nos obriga, por conta do uníssono com os demais, a encolhermo-nos ou mesmo a desfigurarmo-nos” (in “Aforismos para a Sabedoria da Vida”).

 O ambiente de polémica que se vive na avaliação dos professores não pode ser desbloqueado convenientemente por partes desavindas postas a público em intervenções televisivas em que o coração fala mais alto do que a razão, como aconteceu no programa “Prós & Contras”. Exige uma arbitragem das forças litigantes, por exemplo através de uma comissão a funcionar com plena independência do poder político e de interesses corporativos. E mesmo com capacidade para intervir com bases científicas sólidas em tão melindroso e complexo assunto (vide, in “De Rerum Natura”, de 20 de Fevereiro de 2008, o oportuno e lúcido texto de Helena Damião, “A excelência é rara”). Daqui a pergunta: terá sido solução do problema a criação (tardia) do Conselho Científico para a Avaliação dos Professores, ainda por cima constituído por uma única pessoa: a sua presidente? Não, de forma alguma, tratou-se simplesmente de pôr o carro à frente dos bois!

 Como bem refere César Cantú, “a democracia fundada sobre a igualdade absoluta é a mais absoluta tirania”. Sem nos encolhermos ou nos desfigurarmos, há que denunciar uma tirania que iguala desiguais, pondo em causa a própria honorabilidade de uma profissão que vê o seu prestígio atacado pela tutela, afinal a grande responsável pelo descalabro educativo.

 “O tempora! o mores!” No reinado de D. José, o Marquês de Pombal manifestou o seu grande apreço pelos professores ao ordenar que no teatro pudessem ocupar os primeiros lugares da plateia que, por norma, se destinavam à nobreza. A actual ministra da Educação arruma-os nas galerias! “

Passados oito anos deste meu post, a exemplo de Vergílio Ferreira, “tenho esperança; é o que me vem sustentando: a esperança de que amanhã é que é”. Mas será mesmo que o poder político se arroje a distinguir, “comme il faut”, os bons dos maus professores? Aqui chegado, renasce em mim a desesperança.

Encerramento do Ano Internacional da Luz


Encerramento do
Ano Internacional da Luz

Casa da Música | 21 de Junho de 2016 | 17:00

A Comissão Nacional da Organização de 2015 - Ano Internacional da Luz, o Departamento de Física e Astronomia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto têm a honra de convidar V. Ex.a  a assistir à Sessão de Encerramento do Ano Internacional da Luz em Portugal, no dia 21 de junho de 2016, na sala 2 da Casa da Música, na Praça da Boavista, no Porto, pelas 17.00 horas, como  seguinte programa:

1    1- Introdução por Carlos Fiolhais, Coordenador da Comissão Nacional, em nome das entidades que a integram (Sociedade Portuguesa de Física, Sociedade Portuguesa de Química, Sociedade Portuguesa de Óptica, Ordem dos Biólogis, Agência Ciência Viva, Universidades de Lisboa, Coimbra e Porto)
2    
      2- Conferência proferida por Sir Michael Berry, H. H. Wills Physics Laboratory, Professor Emérito da Universidade de Bristol - UK, que será apresentado por Orfeu Bertolami, intitulada:

                     “Making Light of Mathematics

3 - Concerto na sala Suggia pelo Remix Ensemble Casa da Música com o barítono Ivan Ludlow, sob a direção do maestro e oboísta Heinz Holliger.


Resumo da Conferência (não técnica) de Sir Michael Berry:

“A strongly visual presentation, describing many ‘mathematical  phenomena’ that find application and sometimes spectacular physical illustration in the physics of light. Concepts such as fractals, catastrophe theory, knots, infinity, zero, and even when 1+1 fails to equal 2, are needed to understand rainbows, twinkling starlight, sparkling seas, oriental magic mirrors, and simple observations on interference, polarization and focusing.”

Descrição do Rémix Ensemble:

O Remix Ensemble é o agrupamento de música contemporânea da Casa da Música. Desde a sua formação em 2000, já apresentou em estreia absoluta mais de oitenta e cinco obras. Desde a sua formação em 2000, o Remix Ensemble apresentou em estreia absoluta mais de oitenta e cinco obras e foi dirigido pelos maestros Stefan Asbury, Ilan Volkov, Kasper de Roo, Pierre-André Valade, Rolf Gupta, Peter Rundel, Jonathan Stockhammer, Jurjen Hempel, Matthias Pintscher, Franck Ollu, Reinbert de Leeuw, Diego Masson, Emilio Pomàrico, Brad Lubman, Peter Eötvös, Paul Hillier, Titus Engel e Baldur Brönnimann, entre outros. No plano internacional apresentou-se em Valência, Roterdão, Huddersfield, Barcelona, Estrasburgo, Paris, Orleães, Bourges, Toulouse, Reims, Antuérpia, Madrid, Milão, Ourense, Budapeste, Norrköping, Viena, Witten, Berlim, Amesterdão, Colónia, Zurique, Hamburgo, Luxemburgo e Bruxelas, incluindo festivais como Wiener Festwochen e Wien Modern (Viena), Agora (IRCAM – Paris) e Printemps des Arts (Monte Carlo).

VIEIRA E A CIÊNCIA


Meu artigo no n.º 3 da revista "Café com  Letras", que já está nas bancas:

O Padre António Vieira viveu numa época de ouro da ciência, a  época da revolução científica, na qual sobressaíram grandes nomes como René Descartes, Galileu Galilei e Isaac Newton. Não sendo um cientista, tanto pela preparação que adquiriu no Colégio da Baía, no Brasil (um nó da rede global dos colégios jesuítas) como pelas suas numerosas leituras durante a sua longa vida, estava a par da ciência do seu tempo. Aos seus conhecimentos científicos ia amiúde buscar exemplos que serviam no seu discurso catequético e profético.  

No discurso de Padre António Vieira coexistem referências a autores antigos, como Aristóteles, que era a cartilha nas escolas jesuítas, e a autores modernos, como Descartes. Este filósofo e matemático apresentou em 1637, num apêndice ao famosíssimo Discours de la Méthode, uma descrição científica do arco-íris: este não era mais do que o resultado da refracção e da reflexão da luz solar em gotas de água na atmosfera. A luz solar batia na gota, desviava-se, reflectia-se no fundo da gota e voltava a desviar-se ao sair. Descartes foi, com o holandês Snell, o autor das leis da refracção, que descrevem matematicamente o desvio da luz quando passa de um meio para outro, no caso o ar e a água. Mais tarde, Newton, que realizou experiências com prismas de vidro em 1666, explicará que o desvio da luz de um meio para outro se devia à diferente velocidade de diferentes partículas de luz nos dois meios. A luz solar é branca, mas, como a luz branca é feita de partículas correspondentes às diferentes cores, as cores apareceriam diferenciadas dentro da gota e, ainda mais, à saída dela. No século XVII, o arco-íris era considerado “um dos principais ornamentos do trono de Deus” (Discours sur l'histoire universelle, 1681, do bispo e teólogo francês Jacques de Bossuet) e, conforme está escrito no Génesis, o sinal da aliança que Deus tinha celebrado com os homens após o Dilúvio universal (“o meu arco que coloquei nas nuvens. Será o sinal da minha aliança com a terra”, Gn. 9, 13). Ainda hoje o arco-íris se diz Arco da Velha: Velha significa Velha Aliança. Ora, num dos Sermões do Santíssimo Sacramento (in Obra Completa do Padre António VieiraParenética, tomo II, vol. VI, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2013-2014, p. 84), proferido em Santa Engrácia, Lisboa, em 1645, escassos oito anos após ter saído o livro de Descartes, Vieira diz: “Na Íris ou Arco celeste, todos os nossos olhos jurarão que estão vendo variedade de cores: e contudo ensina a verdadeira Filosofia que naquele Arco não há cores, senão luz, e água”.  

A verdadeira Filosofia significa a ciência dos modernos, entre os quais estava Descartes. Mais tarde, no Sermão da Segunda Dominga da Quaresma (idem, tomo II, vol. III, p. 49), pregado na Capela Real em 1651, Vieira afirma: “Isto, que chamamos Céu, é uma mentira azul, e o que chamamos Íris ou Arco-celeste, é outra mentira de três cores”.

Com efeito, sabemos hoje que a cor azul do céu se deve à difusão da luz branca pelas moléculas que constituem o ar: o céu, de facto, é preto, como poderá confirmar hoje um astronauta da Estação Espacial Internacional. E sabemos também que as cores todas do arco-íris (convencionalmente sete, mas, na realidade, tantas quantas se quiserem pois existem todas as cambiantes entre o vermelho e o violeta) podem ser obtidas combinando as três cores primárias: vermelho, azul e verde. Numa linha científica coerente, Vieira, numa outra prédica, o Sermão da Quinta Quarta-feira da Quaresma (idem, tomo II, vol. IV, p. 215), dito na Misericórdia de Lisboa em 1669, explica o arco-íris com base na refracção da luz, como Descartes tinha aventado: “O rústico, porque é ignorante, vê muita variedade de cores no que ele chama Arco-da-Velha; mas o Filósofo, porque é sábio, e conhece que até a luz engana (quando se dobra), vê que ali não há cores, senão enganos corados, e ilusões da vista”.

Repare-se como é dada a primazia ao saber do “filósofo” (filósofo natural, entenda-se) em relação ao saber comum. Uma das marcas da ciência moderna é precisamente a ultrapassagem do senso comum: esta é ainda mais visível em Galileu e Newton do que em Descartes. O arco-íris é real, mas, para ele existir, têm de concorrer três coisas: a luz solar, as gotas de água e os olhos do observador. Cada observador terá sempre um arco-íris em torno de si, razão pela qual nunca poderá alcançar uma ponta.

Passando agora da terra para o céu, foi em 1609 que Galileu dirigiu pela primeira vez a sua luneta para o firmamento. A observação que fez das luas de Júpiter foi não uma prova do sistema heliocêntrico, mas uma indicação da sua plausibilidade, já que havia, além da Terra, um astro com luas em órbita. Vieira, embora conhecendo a  tese heliocêntrica de Nicolau Copérnico, publicada em 1543, e defendida muito mais tarde por Galileu, com a oposição da Igreja, não a sustentou, como aliás seria de esperar de um ministro da Igreja. Mas Vieira não menosprezou o poder explicativo do sistema heliocêntrico. Sobre ele afirmou no Sermão do Primeira Dominga do Advento (idem, tomo II, vol. I, pp. 181-182), pregado na Capela Real em 1652: “Copérnico, insigne Matemático do próximo século, inventou um novo sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis demonstrar (posto que erradamente) que não era o Sol o que se movia, e rodeava o mundo, senão que esta mesma terra, em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a que se move, e anda sempre à roda. De sorte, que quando a terra dá meia volta, então descobre o Sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta, então lhe desaparece o Sol, e dizemos que se põe. E a maravilha deste novo invento é que na suposição dele corre todo o governo do universo, e as proporções dos astros, e medidas dos tempos com a mesma pontualidade, e certeza, com que até agora se tinham observado, e estabelecido na suposição contrária”.

Apesar de apontar o erro do esquema copernicano, atente-se na sua expressão admirativa: “a maravilha do novo invento”. No Sermão da Dominga Décima Sexta Post Pentecosten (idem, tomo II, vol. V, p. 287), dito na Capela Real em 1651, Vieira esclareceu que Copérnico estava errado por contrariar a Bíblia: “Opinião foi antiga de muitos Filósofos que não era o Sol o que se movia, e dava volta ao mundo, senão que permanecendo sempre fixo, e imóvel, esta terra em que estamos é que, sem nós o sentirmos, se move, e nos leva consigo (...). Mas esta opinião, ou imaginação matemática, assim como ressuscitou em nossos tempos, assim foi também condenada como errónea, por ser expressamente encontrada com as Escrituras divinas”.

O heliocentrismo era antigo (Aristarco de Samos tinha-o defendido no século III a.C.) mas eram Galileu e Kepler, Galileu com bastante mais estrondo, que agora o propalavam. Em Portugal, as ideias heliocêntricas, embora tivessem sido no século XVI do conhecimento do matemático Pedro Nunes, “cosmógrafo-mor do Reino”, demoraram muito tempo até encontrarem acolhimento generalizado. Ainda em finais do século XVIII eram vistas com muitas reservas entre nós.

Se Vieira não foi copernicano, de facto no seu tempo quase ninguém era. Mas foi moderno em muitos aspectos. Viajante por várias vezes ao Brasil e observador da realidade dos trópicos, chamou a atenção para o extraordinário valor das observações dos portugueses de novas terras, novas espécies e novas gentes. O conhecimento empírico passou a contrapor-se, nos séculos XV e XVI, ao saber das antigas autoridades, num prelúdio à Revolução Científica. No Sermão da Terceira Dominga do Advento (idem, tomo II, vol. I, p. 262), pregado na Capela Real em 1650:  “Nenhuma coisa houve mais assentada na antiguidade, que ser inabitável a Zona tórrida: e as razões, com que os Filósofos o provavam, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia que o negasse. Descobriram finalmente os Pilotos, e marinheiros Portugueses as costas da África, e da América; e souberam mais, e filosofaram melhor sobre um só dia de vista, que todos os Sábios e Filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação. Os discursos de quem não viu são discursos: os ditames de quem viu são profecias”.

Um bom exemplo da contraposição entre os saberes antigo e moderno é a existência humana nos antípodas. Vale a pena ouvir a poderosa voz de Vieira (in Autos do Processo da Inquisição, idem, Obra Profética, tomo III, vol. IV, p.  439) afirmando que os Portugueses sabiam bem mais sobre o assunto do que os antigos: “Já disse que acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles, nem Santo Agostinho pela diferença dos tempos; e sendo os tempos, como confessam os mesmos padres, o melhor intérprete das profecias, bem pode acontecer sem maravilha e cuidar-se sem presunção, que um homem muito menos sábio possa atender, depois do discurso de largos anos e sucessos, algumas profecias que os antigos, sapientíssimos e santíssimos, por falta de notícia não declararam nem alcançaram.”

O próprio Vieira foi um descobridor dos céus. Forneceu contribuições para a ciência ao deixar registos das suas observações de cometas, alguns delas inéditas, como o cometa que viu na Baía em 1695, quase no fim da sua vida. Para ele os cometas eram sinais de Deus. Por isso, com atentíssimo olhar, perscrutava as mudanças na abóbada celeste. No seu tempo, as esferas sólidas e fixas do céu do sistema geocêntrico de Aristóteles e Ptolomeu estavam a ser substituídas pelo conceito de céu fluido, um céu que os cometas conseguiam romper para chegarem perto da Terra. O céu deixava de estar longe e separado da Terra.

(publicado também como capítulo de livro in "Vieira, Esse povo de palavras", coord. José Eduardo Franco, Aida S. lemos e Paulo S. Ferreira, Esfera do Caos, 2016, pp. 111-114)

A CHAVE DAS BIBLIOTECAS


Em 1834, no rescaldo da Guerra Civil e da Revolução Liberal, o governo português, pela pena de Joaquim António Aguiar, o "Mata Frades",   mandou encerrar as casas de ordens religiosas que, em grande número (cerca de 500), estavam espalhados pelo país. AS respectivas bibliotecas foram então desactivadas, Uma quantidade enorme de livros foi, em muitos casos, mudada de sítio. Por exemplo, a multissecular biblioteca do Mosteiro de Santa Cruz foi em grande parte transferida para a Biblioteca Pública Municipal do Porto, onde trabalhava como 2.º bibliotecário  o então desconhecido Alexandre Herculano. Só não foram os grandes livros de coro,que eram  demasiado pesados para poderem ir nos carros de bois... Devido a essa reorganização, muitos livros perderam-se. E outros perder-se-iam depois disso, por incúria. Um verdadeiro desastre.

É, por isso, muito oportuno e assaz louvável o trabalho de reconstituição dos acervos das bibliotecas de instituições religiosas, feita através do levantamento dos catálogos e inventários, por Luana Giurgevich e por Henrique Leitão, os dois historiadores da Universidade de Lisboa com créditos na história do livro, em particular o segundo na história do livro científico (preparou exposições sobre os livros “Aula da Esfera”, a escola internacional de matemática que os Jesuítas mantiveram largos largos anos no Colégio de  S. Antão, onde é hoje o Hospital de S. José). O pesado volume de 863 páginas (o peso reflecte o número das bibliotecas...) acaba de ser publicado pela  Secretariado Nacional para os Bens da Igreja, como o n.º 1 da colecção “Fontes para o estudo dos Bens Culturais da Igreja”, dirigida por Sandra Saldanha. O título é em latim- “Clavis Bibliothecarum” (Chaves da Biblioteca) -  e o subtítulo explica o conteúdo - “Catálogos e Inventários de livrarias de instituições religiosas em Portugal até 1834”. Há dois prefácios: um  de D. Pio Alves, bispo auxiliar do Porto e Presidente da Comissão Episcopal de Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais e outro  de Noel Golvers, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lovaina e membro da Academia Internacional da História da Ciência.

A obra é o resultado de um trabalho aturado e minucioso de pesquisas de fontes impressas e manuscritas. Os leitores dizem que deve estar incompleto, mas parece bastante completo. Aqui está a chave para a história cultural do país antes de 1834, pois ela não pode ser concebida sem olhar para o papel da Igreja. Giurgevich e Leitão apresentam uma espécie de ”top ten” das bibliotecas religiosas nacionais. Havia em Portugal cerca de uma dezena de bibliotecas de grande porte (isto é, com mais de 20.000 volumes), incluindo a Biblioteca do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (ca. 36.000 volumes), da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, o Convento de Nossa Senhora de Jesus de Lisboa (ca. 32.000), da Ordem dos Frades Menores ou Franciscanos,  o Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa (ca. 30.000), da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, e o Convento de Nossa Senhora e Santo António de Mafra (ca. 28.400),  da Ordem dos Cónegos Regrantes de S. Agostinho (como o de Santa Cruz, em Coimbra), e o Convento de Nossa Senhora das Necessidades (ca. 28.000), da Ordem dos Oratorianos, e cerca de 30 bibliotecas de grande porte (isto é, contendo entre 5000 e 20.000 volumes), incluindo o do já referido Colégio de Santo Antão de Lisboa (ca. 11.600), da Ordem dos Jesuítas,  a Casa Professa de S. Roque (13.000), em Lisboa, também dos Jesuítas,  e o Mosteiro de São Martinho de Tibães,  da Ordem dos Beneditinos (ca. 9000).

Ora aqui está um volume que facilita muito o trabalho dos historiadores, não apenas os que queiram estudar a história da igreja, mas também os que queiram estudar a história das letras, das artes e das ciências, quer dizer e em geral, a história da cultura e das mentalidades. Fazer a história do livro é fazer a história da cultura: ao saber o que se lia, passamos também a ver o que se sabia e o que se transmitia. 

domingo, 12 de junho de 2016

PORTUGAL, A ENGENHARIA E O FUTURO


Gilberto Santos é um engenheiro de Viana do Castelo que, tendo em novo a paixão dos automóveis, se formou em Engenharia Mecânica, no ramo de Engenharia de Automóveis, em Bratislava, na Eslováquia (em Portugal não havia à época esse ramo da engenharia). Doutorou-se mais tarde na Universidade do Minho, depois de ter passado pela Universidade Nova de Lisboa.  Hoje ensina na Escola Superior de Tecnologia do  Instituto Politécnico do Cávado e do Ave.  

O livro “Engenharia pt”, com o sugestivo subtítulo “Uma via verde para o desenvolvimento tecnológico e económico do país”, foi publicado pela Vida Económica em 2014, com nada mais nada menos do que quatro prefácios: de António Sampaio do Nóvoa (então Reitor da Universidade de Lisboa), Carlos Matias Ramos (então Bastonário da Ordem dos Engenheiros),  Fernando Santos (então Presidente da Ordem dos Engenheiros da Região Norte) e António Saraiva (Presidente da Confederação da Indústria Portuguesa).

Depois de capítulos iniciais sobre a diferença entre ciência e tecnologia, o ensino da engenharia entre nós e a ligação entre as escolas do ensino superior e a indústria, o autor expõe o problema que, acima de tudo, o preocupa. Após as especiarias da Índia, do ouro do Brasil e dos cheques da CEE, Portugal está numa encruzilhada. Somos ainda um país em que a engenharia continua a ser de processos e não de produtos, limitando-nos a montar e, quando muito, a acrescentar algum valor a produtos desenvolvidos lá fora. Veja-se, por exemplo, no sector automóvel,  a montagem dos carros da  na Auto-Europa  cuja concepção vem inteiramente de fora. Juntando-se a outros autores, Gilberto Santos diz que o mar é a nossa grande oportunidade de futuro, uma vez que se trata de um recurso natural enorme e em larga medida por explorar. Mas quase não temos estaleiros para construir barcos... E, quando os temos, a engenharia naval é importada.  

A nossa escolha actual é entre continuar a ser um país de mão de obra barata e de pouco valor acrescentado ou tornar-nos um país da sociedade do conhecimento, capazes de fazer produtos  com alto valor acrescentado. As sete etapas que o autor apresenta com vista à escolha da segunda via são: melhorar a educação no ensino básico e secundário, principalmente na matemática e na física (nas quais os alunos continuam a ter dificuldades), promover a formação em engenharia (os alunos estão a fugir de ramos essenciais como a engenharia civil, assustados com o temporário desemprego nessa área), aprofundar as relações universidades/politécnicos – empresas (o ensino superior, apesar de progressos recentes, está ainda em grande medida de costas voltadas para o mundo das empresas), criar novas empresas e melhorar as existentes (por vezes em vez de estabelecer novas empresas, de futuro incerto,  melhor seria optimizar os resultados das que já laboram), inserir mestres e doutores nas empresas (os empresários recusam-se a  empregar doutorados, que só numa escassa minoria vão para a indústria), criar uma política tecnológica (adoptou-se nos últimos vinte anos uma política científica, mas ela não foi combinada com a política económica) e, por fim e em resumo, criar riqueza agora em vez de pedir emprestado ao futuro (o que estamos a fazer quando nos endividamos). 

A segunda parte do livro, em cerca de metade das cerca de 400 páginas, e porque nem tudo está mal em Portugal apresenta doze casos de sucesso da engenharia nacional, que incluem a Efacec, que desenvolveu um sistema de gestão de redes eléctricas, a Amtrol-Alfa, que desenvolveu reservatórios de pressão para GPL, a NewTextiles, que criou vestuário interior com fibras de efeito terapêutico, a Vangest, que faz design de automóveis (modernamente já há entre nós quem crie carros desportivos!), etc.

A encerrar a obra é referida uma série de índices do World Economic Forum (Suíça) apresentados no Global Competitiveness Forum, de 2014-1915. Há coisas boas e coisas más. Estamos em 2.º lugar mundial, depois dos Emiratos Árabes Unidos, na qualidade da rede rodoviária,  em 8.º na disponibilidade de cientistas e engenheiros em 18.º na qualidade das instituições de investigação científica. Mas, em forte contraste, estamos em 91.º na capacidade de reter talentos, em 111.º na robustez dos bancos, e em 138.º na amplitude da dívida pública.

Gilberto Santos coloca a dado passo a dúvida de António Sérgio de há cem anos: “Quando nos convenceremos de que se cria, avigora, triunfaliza um povo, não por uma colectiva recordação do passado, mas por uma aspiração comum para o futuro?” A pergunta permanece mais actual do que nunca. O passado não se pode mudar, mas o futuro pode.

ONTEM E HOJE NA SAÚDE, EM PORTUGAL

Texto do Professor Galopim de Carvalho, que muito agradecemos.
Meus pais, os meus heróis, aos 41 anos (1941)

Á memória dos meus pais.

É verdade que ainda estamos longe da perfeição no bem-vindo e louvável Serviço Nacional de Saúde, mas a nossa actual juventude ignora como eram os cuidados médicos e os recursos farmacêuticos no tempo dos avós. Esta reflexão levou-me a comparar o que temos no presente com o que marcou o tempo da minha infância com capacidade de observar e interiorizar o mundo à minha volta.Os problemas de saúde próprios da idade proporcionaram-me a percepção da imensa distância que, nestes dois mais vectores relacionados com a saúde, a medicina e a farmácia, separa o ontem do hoje.
É claro que não conheço o suficiente de história da medicina e da instituição farmacêutica que me permitam abordar este tema em moldes historicamente fundamentados. Mas o que eu posso e sei fazer é comparar o que, nestes domínios, se passava nesse tempo no seio da minha família e procurar estabelecer a comparação com o que a minha experiência nos centros de saúde, hospitais e farmácias da actualidade.

Nesse tempo, em que um AVC (acidente vascular cerebral) tinha o nome de apoplexia, e que, para referir a difteria, dizíamos garrotilho, os doentes, incluindo os acamados, eram tratados ou morriam em casa e aí, também nasciam os filhos, com o apoio de experientes comadres ou de parteiras. A maioria das mulheres além de mães de filhos e de “donas de casa”, ocupavam-se dos doentes e dos familiares velhos que, assim, não eram encaminhados e feitos prisioneiros nos tristes lares da sociedade do presente.

Das mezinhas e remédios manipulados na “pharmácia”, passou-se aos fármacos produzidos industrialmente pelas grandes multinacionais. Amigdalites, otites, gripes, rubéola, sarampo, varicela, parotidite (papeira) e gastroenterites, embora com nomes diferentes, tudo isso andou lá por casa, tocando constantemente todos os filhos (cinco, na altura), poucas vezes o pai, quase nunca a mãe. Foi um tempo em que a única vacina obrigatória era a se ministrava contra a varíola, enfermidade grave, tantas vezes fatal, conhecida por toda a gente com o nome bexigas, pois deixava, nos poucos que lhe sobreviviam, inúmeras pequenas cicatrizes das vesículas pustulentas espalhadas por todo o corpo, particularmente visíveis no rosto.

Falava-se, de anginas, de dores de ouvidos, de bexigas doidas, de trasorelho, de dores de barriga associadas ou não a diarreia ou soltura, tudo situações que a mãe ultrapassou, pelos seus próprios meios, uma vez por outra, com a ajuda do médico chamado a casa e, nas situações mais preocupantes, com rezas a Nossa Senhora, velas e promessas de cera ao Senhor Jesus dos Passos, na Igreja se São Francisco.

Hoje, a imensa maioria dos médicos exerce a sua actividade nos muitos e bons Hospitais e nem sempre bons Centros de Saúde espalhados pelo país, numa frutuosa conquista do Serviço Nacional de Saúde, muitos acumulam com consultório privado, onde só vai quem poder pagar. Só alguns, sobretudo no interior do país, mais afastados dos centros urbanos, perpetuam a figura do João Semana, no romance de Júlio Dinis.

A medicina do presente tem ao seu alcance dezenas de equipamentos que a moderníssima tecnologia concebeu e produziu para seu auxílio na obtenção de tomografias, ecografias, ressonâncias magnéticas, electrocardiogramas e encefalogramas, entre muitos outros exames, recorrendo sistematicamente e dezenas de tipos de análises clínicas, permitindo-lhe diagnósticos cada vez mais seguros.

O médico da minha infância observava a língua, os dentes, os olhos e as orelhas do enfermo, apalpava-lhe a barriga e auscultava-o sem estetoscópio, que era coisa que ainda se não usava. E como equipamento de apoio ao diagnóstico pouco mais havia do que o raios-X. Através de um pano, usado para o efeito, o “senhor doutor” colava o ouvido às costas e ao peito do doente e, assim, por audição directa, avaliava-lhe o estado dos pulmões. Na nossa casa, depois de todos estes procedimentos, lavava as mãos no lavatório, por tradição no quarto de dormir, preferindo o sabão azul ao sabonete que, dizia ele, não desinfectava tanto, limpando-as, de seguida, numa outra toalha de linho (o pano turco só mais tarde entrou na nossa vida) impecavelmente branca e passada a ferro, que a nossa mãe tinha guardada para estas ocasiões. Por fim, ia sentar-se à mesa da casa de jantar e passava a receita com uma bela caneta de tinta permanente, coisa então de muito poucos. Nem o nosso pai que, embora escriturário de profissão, ainda usava caneta com aparo de molhar no tinteiro.

Muito longe dos dias de hoje, em que o médico, digita o nome do fármaco ou o do respectivo princípio activo no teclado do computador e que depois imprime, o clínico da minha infância escrevia a receita numa folha de papel, onde indicava todos os produtos a incluir na manipulação do remédio, precisando, para cada um, a respectiva dosagem. Ao contrário dos dias de hoje, em que a dita indústria abastece as farmácias, quase a cem por cento, com centenas de especialidades, nesse tempo, tudo o que era sais, pós, xaropes, hóstias, pomadas, supositórios e outros produtos, era manipulado na farmácia (botica para os mais velhos) pelo boticário.

Uma purga com óleo de rícino ou um clister eram tratamentos irrecusáveis sempre que aparecíamos com febre. Dizia o clínico que, antes do mais, serviam para limpar os intestinos. Vinham, depois, consoante os casos, os papelinhos de criogenina, para baixar a febre, as fricções com vinagre aromático ou com álcool canforado, o algodão iodado ou os emplastros de papas de linhaça e mostarda, a escaldar, colocados sobre o peito. Se doíam as costas, pincelavam-se com tintura de iodo ou aplicavam-se meia dúzia de ventosas.

Nas dores de ouvidos, e quão fortes eram, a minha mãe procurava dar-nos alívio vertendo, lá para dentro, leite levemente aquecido, o que, segundo me lembro, pouco ou nada resultava. As dores só passavam quando a otite era debelada pelas defesas próprias do organismo. Com as anginas era a mesma coisa. As correspondentes dores de garganta, a febre e a dificuldade de engolir passavam ao fim do tempo que durava a luta dos leucócitos sobre o Streptococcus, o agente patogénico. Mas era crença generalizada que essas amigdalites se curavam com as mezinhas caseiras e, assim, a mãe besuntava-nos a parte anterior do pescoço, onde se localizavam as ínguas, com pomada de beladona, sobre a qual se passava um lenço de algodão, de preferência encarnado, no dizer da tia Floripes. Em complemento, gargarejávamos com água e sal, chupávamos sumo de limão, engolíamos colherzinhas de mel e fazíamos zaragatôas com azul de metilene.

Este último tratamento, feito ao deitar, era aceite como um brincadeira porque tingia de verde o xixi da manhã seguinte. Ir para a escola com um lenço atado ao pescoço, a cheirar a beladona não era agradável. Mas muito pior quando o tratamento era feito com enxúndia de galinha que, com o mesmo propósito, era preferida pela minha avó Isabel, mãe de muitos filhos e com larga experiência no tratamento destas enfermidades. A gordura amarela destas aves era guardada numa velha tigela de faiança de Sacavém, onde se oxidava, tornando-se rançosa e mudando a cor para castanho. Era nesta fase de apodrecimento, exalando um cheiro nauseabundo, que este unguento estava, dizia ela, em condições de produzir o efeito desejado.

Havia, porém, situações graves como o garrotilho, designação que se dava à difteria. Esta exigia o recurso ao médico, mas havia uma norma nesse tempo, segundo a qual o doutor só era chamado se, ao fim de três dias, o doente não desse mostras de recuperação, em resposta aos tratamentos caseiros. Por vezes, este tipo de procedimento tinha consequências fatais. Isto aconteceu com um meu vizinho e colega de escola, vítima desta angina má. O estado da doença causada pelo Corynebacterium diphtheriae não cedeu ao soro que lhe foi ministrado tarde demais. Foi a consternação na minha rua. Morrera um menino.

Passados dois ou três dias sobre este trágico desfecho, comecei com dores de garganta e muita febre. A sorte foi o estado de alerta em que a minha mãe ficara, o que a fez chamar, de imediato, o nosso médico. Foi já amodorrado na cama que vi surgir, na porta do quarto, Dr. Fonseca. De farta bigodeira branca, a chegada do velho clínico confirmou os meus receios, afinal, os mesmos da minha mãe. O velho médico tomou-me o pulso, observou-me a garganta com o cabo de uma colher a servir de abaixa-línguas e, depois, com a dita toalha de linho de permeio, colou-me o ouvido às costas e ao peito, mandando-me respirar fundo, parar de respirar, tossir e dizer trinta e três, à medida que ia procurando, em audição directa, as respostas dos meus pulmões. A sua conclusão, dita à minha mãe, numa voz descontraída que deu para eu ouvir perfeitamente, foi:

- Temos aqui, dona Adília, mais um caso de angina diftérica na nossa Escola de São Mamede.
Face a esta afirmação, recordo, afundei-me resignadamente nos lençóis, convicto que teria o mesmo fim do Cardoso, o meu condiscípulo acabado de enterrar. Pouco depois da saída do médico, entrou a menina Rita, a enfermeira que habitualmente nos assistia na aplicação de injecções, para me ministrar o correspondente soro e, assim, as imunoglobulinas do fármaco venceram as toxinas produzidas pela bactéria, mas encheram-me de urticária, situação que se resolveu depois com Anafilarzan, o anti-histamínico então em uso.

Uma entorse, por exemplo, num artelho ou num pulso resolvia-se, via de regra, com escaldões num alguidar com água quase a ferver onde se dissolvia um punhado de sal. Aí se mergulhava o pé ou a mão e parte do antebraço, procurando resistir ao intenso calor, o tempo considerado necessário. Por último, apertava-se a articulação com uma ligadura, no sentido de a imobilizar e reduzir o inchaço.

Depois era esperar uns dias até o incómodo passar. Nos casos mais difíceis de resolver por esta via, a mãe recorria à tia Palmira, para que ela “cosesse o torcegão”. Conheci a virtude desta senhora uma vez em que, correndo no Largo dos Penedos, torci um pé no sítio do tornozelo.

Chegado a casa dela, levado pela minha mãe, a virtuosa senhora mandou-me sentar à sua frente, numa cadeirinha baixa, pegou-me no pé magoado e ajeitou-o sobre os seus joelhos. A seguir tirou-me a ligadura, encostou um novelo de lã cinzenta à zona mais inchada e começou a “cosê-lo” com uma agulha grossa onde enfiara um pedaço de lã do mesmo novelo, sem o habitual nó na ponta do fio. A agulha e o fio iam entrando e saindo ao ritmo de uma reza, dita em surdina, para mais ninguém ouvir. Recebida da mãe à hora da morte, explicou, guardá-la-ia consigo enquanto vivesse e só ao sentir-se morrer a transmitiria à mulher que ela entendesse merecer tal virtude. Durante a cosedura e a intervalos de tempo, como se de um refrão se tratasse, perguntava em voz bem audível.

- “O que é que eu coso?” – e a minha mãe respondia, por mim.
- “Carne quebrada, nervo torto”. – e a senhora confirmava – “Isso mesmo é que eu coso”.

Terminada a cosedura, repôs-me a ligadura e recomendou-me repouso e mais uns escaldões. O incómodo acabou por passar e tudo voltou ao normal alguns dias depois. Habituada que estava na assistência à doença, numa casa de família com seis filhos, a minha mãe assumiu, nas vezes em que isso foi necessário, o papel da tia Palmira. Não conhecendo a tal reza, substituía-a por Padre Nossos e Avé Marias, com idêntico bom resultado. Em sua muito convicta opinião, o que contava era a fé com que se rezava.

Situações mais fora do comum na nossa casa também as houve, mas essas, por sorte, surgiram num tempo com maiores recursos médicos e farmacêuticos. De todas a mais grave, dolorosa e prolongada foi a que atingiu a minha irmã mais velha, teria ela os seus dezassete ou dezoito anos. Tosse, perda de peso e um estado febril permanente foram o pré-aviso daquilo que ninguém queria acreditar. E o aviso chegou, inesperado e assustador, no dia em que a menina tingiu de sangue o lenço que levara à boca em mais um acesso de tosse. Tuberculose pulmonar foi o cru diagnóstico que o médico transmitiu ao meu pai. Ao pai e não à mãe, porque, na nossa cultura e nesse tempo, os assuntos graves eram coisa de homens, e a tuberculose, nesses anos, era sentença de morte quase certa. Às mulheres competia tratar dos doentes, chorar e rezar.

O estado desta minha irmã ia-se agravando e os tratamentos, incluindo os pneumotóraxes que vinha fazer a Lisboa, não respondiam como todos desejávamos. O espectro da terrível doença, que a todos atemorizava, e o perigo de contágio aos irmãos era mais uma preocupação para os pais. Havia os sanatórios e as alas de alguns hospitais, de onde poucos saíam curados. A nossa mãe não consentiu essa separação.

- Se a menina morrer, - dizia, angustiada mas firme, - morre aqui em casa, onde nada lhe vai faltar.
Reorganizou o espaço, com um quarto só para a enferma, onde, para além do médico e da enfermeira, só ela entrava para tudo o que fosse preciso e era sempre muito. Lavar a filha e mudar-lhe a roupa (que era escaldada com água a ferver e só depois lavada em alguidares à parte), fazê-la ingerir as refeições, vencendo um natural grande fastio (também a loiça desta filha era escaldada e lavada à parte), dar-lhe os medicamentos, vigiá-la várias vezes durante a noite e fazer-lhe companhia nos escassos momentos que tinha de algum vagar. Nós, os irmãos, estávamos autorizados a assomar à porta do quarto, para dizer adeus à mana, cá de longe, mas tínhamos de pôr um lenço, humedecido com álcool, a tapar a boca e o nariz.

Foi, então que, por milagre e em resposta às suas preces, no dizer da nossa mãe, surgiram no mercado dois medicamentos que inverteram uma situação galopante, com hemoptises frequentes, transformando-a numa caminhada lenta mas decisiva para a cura. Um belo dia o médico informou o meu pai do promissor tratamento com a recém-descoberta estreptomicina injectável, a par da toma, por via oral, do novíssimo e igualmente esperançoso ácido paraminossalissílico. O antibiótico era um pó branco em frasquinho de vidro com uma tampinha de borracha inviolável, onde a enfermeira injectava soro fisiológico retirando depois metade do soluto para a injecção diária da manhã, deixando a outra metade para a que vinha ministrar ao fim da tarde. Cem escudos era o custo de cada uma destes frasquinhos. Era mais do que o salário de três dias de trabalho do pai. Cada embalagem do outro fármaco, que vinha directamente da Suíça, Pamisal, assim se chamava, custava seiscentos escudos e tinha comprimidos para um mês. Neste quadro só se tratavam os ricos ou os que conseguissem crédito.

Ao fim de mais de um ano, a terrível doença foi vencida. Sem menosprezar o papel dos medicamentos, a nossa mãe não se cansava de lembrar a providencial intervenção de Nossa Senhora e de Seu Divino Filho, que nunca a abandonaram. Era sua profunda convicção que tinham sido, sobretudo, as suas orações, que a haviam curado.

Não é possível evocar estes anos da vida da nossa família, sem render homenagem ao nosso pai que, pelo trabalho regular e suplementar, sem descanso nem desfalecimento, garantiu que nada nos faltasse, à nossa mãe que, em casa, sem descurar as múltiplas tarefas do dia-a-dia, foi enfermeira eficaz e incansável, e à nossa tia Cecília, também ela uma moura de trabalho, que, depois de enviuvar, veio para nossa casa ajudar a irmã a cuidar de uma ranchada de filhos.

A. Galopim de Carvalho

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