sexta-feira, 27 de abril de 2007

A razão é arbitrária?

Objecta-se por vezes à racionalidade do seguinte modo: a razão não é o único instrumento na procura da verdade. Na realidade, não é possível defender a razão enquanto a única ou a melhor via para a verdade sem argumentar de forma circular. Tudo o que podemos fazer para defender a razão é apelar aos princípios da própria razão; e tudo o que podemos fazer para levantar objecções a outras vias para a verdade é uma vez mais apelar à razão. Mas isto é circular. Logo, aceitar ou não a razão e o pensamento crítico é uma questão de preferência pessoal ou arbitrária.

As pessoas que aceitam este tipo de argumento podem encarar a razão e o pensamento crítico como importantes e interessantes. Mas encaram-nos também como uma espécie de «jogo», em última análise sem fundamento, ao mesmo nível de outros «jogos» (como a tradição, a autoridade e a revelação religiosa); e estas pessoas pensam que não é possível decidirmo-nos, com base em quaisquer princípios, a favor de um dos «jogos» em detrimento de outro.

Este argumento está errado porque não tem em consideração todas as alternativas à nossa disposição. O argumento centra-se no suposto dilema de defender a razão (e levantar objecções à desrazão) recorrendo à razão ou a qualquer outro meio. A primeira alternativa do dilema é circular, a segunda arbitrária. Logo, conclui o argumento, não se pode defender a razão (nem levantar objecções à desrazão) de forma apropriada.

Habitualmente o argumento fica-se por aqui. Mas com certeza que temos de considerar a alternativa: como poderemos defender a desrazão ou a tradição, autoridade e revelação religiosa? Uma vez mais, temos um dilema: ou o fazemos racionalmente ou não. Não podemos defender a desrazão usando a razão porque isso é auto-refutante. Se há boas razões a favor da tradição, autoridade e experiência religiosa, então estas não são formas a-racionais de procurar a verdade. Nesse caso, limitámo-nos a alargar o domínio da razão. Se, por outro lado, defendermos a desrazão usando a desrazão, estaremos a usar o mesmo modo circular de raciocinar que usámos para defender a razão. Assim, qual das alternativas é melhor? Defender a razão circularmente ou defender a desrazão circularmente?

Defender a desrazão circularmente é pior porque não é apenas circular: é também arbitrário. Defender a razão circularmente não é arbitrário. A circularidade aqui envolvida é muito geral e é informativa. Qualquer estudante de lógica sabe como se faz para avaliar criticamente as próprias regras de inferência que usamos para raciocinar. Temos de usar um conjunto de regras para avaliar criticamente outro conjunto, mas qualquer conjunto pode ser e tem de facto sido criticamente avaliado pelos lógicos e filósofos (e não pelos defensores da desrazão). Só não podemos avaliar todas as regras de inferência ao mesmo tempo usando nenhumas regras de inferência. Mas o mesmo acontece com qualquer análise da desrazão: também aí teremos de usar regras de inferência, o que é auto-refutante se estamos a tentar argumentar contra todas as regras de inferência (isto não funciona nem mesmo por reductio, pois os próprios argumentos por reductio são apenas um tipo de regra).

A escolha não é, então, entre dois «jogos» igualmente sem fundamento e arbitrários, a razão e a desrazão. A escolha é entre a arbitrariedade circular (a desrazão) e a não arbitrariedade circular ou circularidade crítica (a razão). Claro que sempre que alguém apresenta uma razão a favor de algo, incluindo uma razão para preferir a não arbitrariedade à arbitrariedade, podemos — e devemos — colocar essa razão em causa. Mas isso é apenas o pensamento crítico em acção e, portanto, em si, uma refutação do pensamento acrítico e da desrazão.

UM CARTUNISTA COM HABILITAÇÕES A MAIS


Larry Gonick não é um cartunista qualquer. É detentor de uma licenciatura e de um mestrado em Matemática concedidos pela Universidade de Harvard, em Boston, nos Estados Unidos, e foi investigador e professor de matemática. O seu sítio na Internet informa-nos que é um “overeducated cartoonist”, isto é, um desenhador de banda desenhada com habilitações a mais...

Entre os livros de banda desenhada de que é autor contam-se vários livros de ciência bem informados: há guias de genética, de estatística, de computadores, etc. (é também autor de um guia de sexo em banda desenhada!). Em português saíram um Guia de Física e um Guia de Química em banda desenhada. Além disso publicou, num formato maior, um “Cartoon History of the Universe” que conta, em três volumes, a história do mundo e da humanidade desde o “Big Bang” até à Idade Média. O primeiro volume vai do "Big Bang" até Alexandre o Grande. Tal como os livros de ciência estes livros de história têm sido recomendados por várias escolas, incluindo universidades (Harvard, claro, mas também o vizinho MIT e muitas outras devidamente listadas no sítio). O primeiro volume do “Cartoon History of the Universe” exibe na contracapa uma recomendação entusiástica do saudoso astrofísico Carl Sagan, o que mostra que os cientistas também lêem e gostam de banda desenhada. E o terceiro volume desta obra ganhou há dois anos um prémio a nível mundial, o “Harvey”, para o melhor livro de cartoons.

Pois foi este primeiro volume do "Cartoon History of the Universe" que acaba de sair em português, na Gradiva... Intitula-se "História do Universo em Banda Desenhada". Enquanto o Gary Larson não chega a Portugal, o Larry Gonick é único e obrigatório...

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Evolução

OS MORCEGOS DE NOVO

VALE A PENA LER


"Uma Ilha na Lua", escrito em 1784-1785, é uma curiosíssima sátira do inglês poeta, pintor e visionário William Blake (Edições Antígona, Lisboa, 1996, tradução, prefácio e notas de Manuel Portela). Comemoram-se este ano os 250 anos do nascimento de Blake.

Blake satiriza neste livro a ciência com um grande espírito de humor. Transcrevo o Capítulo X, que descreve uma demonstração de química mal sucedido (Gás Inflamável é o químico inglês Joseph Priestley, um dos descobridores do oxigénio). A ciência sempre teve os inimigos. Mas nenhum dos modernos inimigos da ciência tem tanto humor como este Blake...



Assim passavam estes ditosos Ilhéus o tempo. Mas a felicidade nunca dura muito, pois estando reunidos em casa de Gás Inflamável, o Catavento, deram-se os seguintes acontecimentos.

“Anda daí, Flamável,” disse Lenga Longa, “& vamos divertir-nos. Traz-nos a Bonecada.”

“Calma aí,” disse ele, “tu-devi-ora-tu, tu. Como é que podes ser tão tonta? Ah! Ah! Ah! Ela chama bonecos aos experimentos.”

Subiu depois as escadas & carregou a criada com lentes, & tubos de latão, & imagens mágicas.

“Venham, senhoras & senhores,” disse ele, “Vou mostrar-vos um piolho, ou uma mosca, ou uma borboleta, ou um escaravelho, a omoplata de uma espinhela. Não, não. Aqui está uma garrafa de gás que apanhei na latrina e, ó meu Deus, ó meu Deus, a água entornou-se sobre as lamelas! Olha para isto, Lenga Longa! Empresta-nos o teu lenço, Tiro Léria.”

Tiro Léria puxou do lenço, o que ainda foi borrar mais a lente. Em seguida Gás Inflamável aparafusou. Retirou as lamelas, & focou as lentes para as senhoras verem as imagens. Assim esteve ocupado & ofegante por um bocado. Enquanto Tiro Léria & Ardebardo bombeavam com a bomba do ar – nisto, Craque, a lente estalou.

“Olha que diabo!”, disse Tiro Léria.

Gás Inflamável voltou-se de repente para trás & atirou com a mesa ao chão – lá foram as Lentes & as Imagens, partiram-se os frascos de gás, & espalhou-se a Pestilência. Ao ver a Pestilência sair do frasco, desatou a correr para fora da sala & a gritar:

“Saiam! Saiam! Estamos putrificados! Corrompidos! Temos os pulmões consumidos com o Flogisto. Depressa se vai espalhar uma peste por toda a Ilha!”

Foi o primeiro a chegar ao fundo das escadas. Atrás deles vieram todos os outros a monte.

Assim não é preciso dizer-lhes para se porem a andar.


Lactobacillus casei

Hoje de manhã recebi um email de assunto "Actimel prejudica organismo". Normalmente não leio o (demasiado) spam que chega a minha caixa de correio electrónico. Mas este vinha da minha mãe. O seguinte também e perguntava "isto é mesmo verdade?". Na qualidade de filha cientista, li, com alguma atenção, o dito email que passo a comentar.

Logo no primeiro parágrafo pode ler-se esta maravilha de pseudociência. Informando sobre a bactéria Lactobacillus casei começam por dizer: "Esta substância é gerada normalmente por 98% dos organismos, mas quando é administrada externamente por um tempo prolongado, o organismo deixa de produzi-la e paulatinamente "esquece" que deve fazê-lo e como fazê-lo, sobretudo em pessoas menores de 14 anos.". Uma frase campeã em número de disparates por caracter. Passo a clarificar: L. casei é uma bactéria, um organismo vivo, não uma substância. Por ser uma bactéria, não é "gerada" pelo nosso (nem nenhum outro) organismo. Por ser uma bactéria, nenhum organismo se esquece de fazê-la nem como fazê-la. Afinal os nossos intestinos não são uma enorme sopa primordial, nem vive lá o Dr. Miller.

Os disparates seguem-se ao mesmo ritmo. Um email para assustar, mas que nem para tal serve, devido aos erros, má ciência e mau português utilizado. No entanto, consegue assustar, pois já foram várias as pessoas a contactar-me para perguntar se a informação passada (rapidamente) pelas caixas de correio era mesmo verdade. Para clarificar um pouco o assunto, deixo aqui um bocadinho de ciência, para que fique claro o que é realmente o Lactobacillus casei.

Do ponto de vista dos microrganismos, os nossos corpos são locais ideais para a sua vida e reprodução. Por esta razão estamos "cheios" de microrganismos e no nosso corpo há mais células bacterianas que células nossas. A maioria destas associações são benignas e mesmo benéficas para o nosso organismo. L. casei não é mais do que um deste microrganismos benéficos. É uma bactéria que vive normalmente no nosso intestino e boca produzindo ácido láctico e assim ajudando outras bactérias benéficas a sobreviver. L. casei não é uma invenção da Danone, nem da Yakult, nem de todas as outras empresas que comercializam iogurtes probióticos. Os Lactobacillus estão presentes no nosso organismo e na maioria dos productos lácteos. São bactérias beneficiais, ou seja, em doses normais, podem não trazer benefícios (ou pelo menos tantos quantos a Danone quer que acreditemos), mas não fazem mal.

McGinn sobre a fé e a razão

A Hipótese de ferro

A Nature de hoje tem um artigo muito interessante, «Effect of natural iron fertilization on carbon sequestration in the Southern Ocean» - comentado também por Quirin Schiermeier - sobre o tema que tem inflamado as nossas caixas de comentários, as alterações climáticas.

O artigo pode ser considerado um tributo póstumo ao pai da «Hipótese do Ferro», o oceanógrafo John Martin, já que os os autores sugerem que «alterações no suprimento de ferro por parte das águas profundas - como invocado em alguns cenários paleoclimáticos e de alteração climática no futuro -, pode ter um papel mais significativo que o pensado previamente».

Induzindo mistura vertical nas águas próximo de Kerguelen, um arquipélago entre a Austrália e a África do Sul, os cientistas descobriram que o fitoplâncton criado pode remover dez vezes mais dióxido de carbono, CO2, que o que se supunha, isto é, cada átomo de ferro fornecido permite remover cem mil moléculas de CO2.

O fitoplâncton é constituído por organismos unicelulares que povoam as camadas superficiais (até cerca de 100 metros) de todos os corpos de água. Estes organismos vegetais constituem o primeiro elo do complexo sistema alimentar aquático já que (foto)metabolizam o dióxido de carbono, libertando oxigénio e consumindo outros nutrientes, como nitratos, fosfatos, silicatos e oligoelementos (ferro, molibdénio, cobalto, vanádio, cobre, manganês e zinco). Toda a fauna aquática deve a sua subsistência, de forma directa ou indirecta, à multiplicação celular destas plantas microscópicas (diatomáceas, flagelados, dinoflagelados, etc.). Mas nem todo o fitoplâncton é consumido por outras formas de vida e quando morre acumula-se no fundo do mar, sequestrando carbono. Assim, os oceanos são o maior tanque de carbono da Terra, armazenando-o via uma bomba de solubilidade mas também via uma bomba biológica.

Nos mares temperados, em que as mudanças de estação são muito marcadas, produzem-se períodos de crescimento e declínio rápidos das populações. Na Primavera, a maior luminosidade permite um crescimento exponencial do número de células de fitoplâncton (florescimento ou bloom primaveril). No Inverno, não obstante a forte mistura vertical no oceano que liberta nutrientes do solo do oceano, a baixa luminosidade limita o crescimento. Mas existem grandes regiões dos oceanos, as zonas HNLC (high-nutrient, low-chlorophyll) onde o ferro não se encontra em quantidades suficientes para que o fitoplâncton se desenvolva, qualquer que seja a estação do ano.

A estimativa da biomassa (clorofila-a) através de sensores remotos, do SeaWiFS e MODIS, pode ser complicada porque a luz é reflectida nas carapaças de carbonato de cálcio de algumas formas de fitoplâncton, por exemplo diatomáceas e cocolitoforídeos. Existem alguns projectos, como o PATEX (PATagonian EXperiment) que contribuem com dados que ajudam a calibrar o mapeamento da biomassa fitoplanctónica através de satélites, permitindo assim esclarecer detalhes do ciclo de carbono e libertação de DMS (sulfureto de dimetilo) na região referida. O que por sua vez possibilita o desenvolvimento de modelos climáticos mais fiáveis.

Este estudo - e restantes «sementeiras de ferro», todas experiências muito bem delimitadas e controladas - fornece informações inestimáveis na compreensão das sinergias com efeito climático que operam na biosfera marinha. De facto, pelo seu papel no sequestro de carbono e na produção dos componentes dos aerossois de sulfato, que afectam o albedo terrestre e a nucleação de nuvens, é fundamental a compreensão da dinâmica destas algas.

Os resultados hoje apresentados constituem assim informação muito valiosa no estudo de alterações climáticas passadas, presentes e futuras, nomeadamente suportam a hipótese de que a diminuição do CO2 atmosférico em idades glaciares se deve ao depósito nos oceanos de poeiras ricas em ferro. Não constituem uma possível panaceia para o aquecimento global! Pessoalmente considero fundamental que todos nos apercebamos que somos um contributor não despiciendo para as alterações climáticas e que é necessário mudar (maus) hábitos, nomeadamente é necessário fazer algo para salvar os nossos oceanos. A National Geographic de Abril é elucidativa sobre o tema.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Mutantes

Os ciclopes são das criaturas mais terríveis da cosmologia grega. Ulisses lutou e venceu, com grande astúcia, Polifemo, o gigante de um só olho, que se alimentava de carne humana dos companheiros de Ulisses, na Odisseia de Homero. De criaturas mitológicas, os ciclopes passaram a ser considerados uma raça de seres com estatuto ontológico. Santo Agostinho perguntou-se se estas poderiam ser criaturas de Deus. O padre Thomas de Cantimpré define a sua genealogia, ao atribuir-lhes o estatuto de descendentes deformados de Caim e Ham.

Contudo, os ciclopes não são apenas criaturas do imaginário universal: têm uma existência real. A colecção anatómica do holandês William Vrolik (1775-1859), em Amsterdão, apresenta vários casos de crianças ciclópicas. A deformidade - a presença de uma única cavidade ocular bem no centro do rosto, no local onde deveria encontrar-se o nariz - revela-se muito profunda: os indivíduos mais afectados apresentam um cérebro não dividido em dois hemisférios. Em vez de dois hemisférios, dois lobos ópticos e dois lobos olfactivos toda a parte superior do cérebro está fundida num único conjunto. Este tipo de deformidade é designada por holoprosencefalia e, na sua variedade, é a mais frequente deformidade cerebral nos humanos, afectando 1 em cada 16-53 mil nascimentos.

A ciclopia pode originar-se de forma assustadoramente fácil. Embriões de peixes podem desenvolver ciclopia se forem aquecidos, arrefecidos ou irradiados, privados de oxigénio, expostos a éter, fenol, cloreto de lítio, ácido retinóico, ou sal. Grávidas diabéticas ou alcoólicas têm uma probabilidade 200 vezes superior de ter fetos com alguma forma de holoprosencefalia. A maior parte dos casos é, contudo, resultante de mutações genéticas em, pelo menos, quatro genes humanos. Um desses genes codifica uma proteína sinalizadora chamada ‘sonic hedgehog’. Esta proteína é um morfogene, isto é, uma substância que sinaliza a formação e localização dos tecidos durante o processo de desenvolvimento; ao formar um gradiente de concentração ao longo do embrião, vai influir na activação inibição dos genes-alvo decisivos em cada etapa do processo e desenvolvimento. Durante o processo de formação do sistema nervoso central, o cérebro começa por ser um tecido unitário. A intervenção da proteína sonic hedgehog vai induzir a sua divisão em duas partes. Este processo é bastante óbvio na formação dos olhos: uma banda inicial vai diferenciar-se em duas pequenas regiões, uma de cada lado da cabeça. A ocorrência de mutações ou a presença de substâncias químicas que inibam a sonic impedem que tal ocorra, originando crianças ciclópicas.

Não sabemos se Homero se inspirou em casos observados ou se em descrições de outros, mas não será difícil imaginar quão impressionante terá sido para a imaginação das pessoas a observação de um caso semelhante.

Se hoje temos uma explicação – ainda incompleta – para o processo de formação de ciclopes em vertebrados, é porque a ciência, num passo regular, tem vindo a revelar o código da vida.

Há algum tempo terminei um post com a referência: somos todos mutantes. A César o que é de César: tomei a expressão emprestada a Armand Marie Leroi, do seu extraordinário livro, Mutants. O Livro foi muito bem acolhido pela crítica e deu origem a uma série no channel 4 britânico. É nele que se pode ler parte desta história sobre ciclopes. E está a ser traduzido. Leitura recomendada.

Dianthus caryophyllus

O craveiro, Dianthus caryophyllus, pertence ao grupo das dicotiledóneas. Cravo de seu nome comum, o nome do seu género (Dianthus) provém do grego “flores de Zeus” e o da família (caryophyllacea) de um nome antigo da árvore do cravinho, uma vez que as suas flores possuem um cheiro semelhante a esta erva aromática. A distribuição natural dos D. caryophyllus, é restricta às regiões mediterrânicas.
Os craveiros são geralmente diploides (dois cromossomas de cada, tal como nós) e são maioritariamente utilizados como plantas ornamentais. No entanto, as flores do craveiro são também utilizadas na culinária desde a civilização romana e, assim como o cravinho, na Inglaterra medieval davam um gosto especial ao vinho. O óleo essencial do cravo está presente em alguns perfumes como por exemplo: Yves Saint Laurent Opium, Lauren by Ralph Lauren e Gucci No.1.

Em Portugal, os cravos ficarão para sempre ligados à revolução de Abril de 1974, que hoje faz 33 anos.

Literacia científica

O projecto PISA, lançado em 1997 pela OCDE, visa monitorizar os resultados dos sistemas educativos, avaliando as competências e conhecimentos de alunos de 15 anos, nomeadamente as literacias matemática, científica e de leitura.

O primeiro ciclo do PISA decorreu em 2000 e envolveu 43 países, o PISA 2003 contou com a participação de 41 países, incluindo a totalidade dos membros da OCDE e o PISA 2006, cujos resultados serão conhecidos no final do ano, analisou estudantes de 57 países.

Os resultados nacionais foram desastrosos, verificando-se pouca ou nenhuma evolução no desempenho dos estudantes portugueses entre as duas edições. Corroborando o que tem escrito sobre o tema o Desidério, no relatório de 2000 (ficheiro pdf) é indicado que «O ambiente familiar aparece também como relevante para as aprendizagens dos alunos», situação que não se altera em 2003. Muito preocupante é o facto de que em 2003 Portugal ocupava o 27º lugar no que respeita às literacias científica e matemática . Diria que o ranking não se deve alterar significativamente em 2006, aliás diria que a alterar-se será para pior tendo em conta que o foco do novo PISA é a literacia científica e a ciência não foi exactamente bem tratada pelas últimas reformas no secundário.

Agravado cá no burgo pelas experiências educativas das últimas décadas, o panorama internacional no que respeita às literacias matemática e científica não é animador. Embora os números divirjam com os critérios utilizados, parece existir consenso que a literacia científica não é o forte dos americanos. De acordo com um estudo muito recente de Jon Miller da Michigan State University, que indica que neste capítulo os americanos vão à frente dos europeus por requererem que todos os estudantes universitários tenham disciplinas de ciências, quase três quartos dos americanos não consegue ler ou perceber a secção de ciência do New York Times, situando em 28% a fracção de literatos científicos neste país. Outros autores indicavam, em 2002, que esta percentagem não atingia 8% dos adultos, valor análogo ao que propunham para o Reino Unido.

De facto, embora hoje em dia ciência e tecnologia estejam de tal forma entrosadas que até se arranjou a sigla C&T para designar conjuntamente ambas, apenas a tecnologia conquistou o público em geral, a ciência e o pensamento científico não permearam a sociedade, mesmo nos países mais desenvolvidos. Não é assim de espantar que nas tecnologicamente avançadas sociedades ocidentais proliferem as pseudociências, a superstição, as crendices e o charlatanismo.

Para colmatar o défice de ciência, a Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAS) lançou um projecto ambicioso em 1985, o Projecto 2061, que visa educar cientificamente todos os cidadãos americanos, objectivo partilhado com, por exemplo, a Fundação para a Literacia Científica. Por cá, o Ciência Viva, com muito menos recursos, tenta a mesma proeza.

Assim, um dos grandes desafios actuais que todos os países enfrentam - porque os monstros que o sono da razão pode produzir são muitos e mais aterradores que os que assombravam Goya - é a divulgação e a compreensão pública da ciência. Algo que diz respeito aos próprios cientistas, mas passa, também, pelo jornalismo científico.

Mas considero igualmente importante reflectir porque razão se encontra a sociedade em geral tão divorciada da ciência. Porque razão o papel fulcral que a ciência desempenha no quotidiano é tão negligenciado e porque razão a ciência só mobiliza a opinião pública quando a investigação ou novas aplicações de ciência colidem com a religião (p.e., fertilização in vitro ou investigação em células estaminais) ou geram alarmismo. Por exemplo, o evolucionismo tem quase 150 anos. É a pedra basilar de todas as ciências da vida mas continua a não ser aceite por demasiadas pessoas, que contrapõem absurdos criacionismos sortidos à evolução.

GRANDES ERROS 5


Em 1991, a editora Eurosigno de Ponta Delgada publicou um livro intitulado "O Ordenamento Maravilhoso do Cosmos" e subintitulado "O homem entre o quark e a galáxia". O seu autor era Dinis Pimentel da Silva, licenciado duas vezes (em Ciências Matemáticas e em Engenharia Geográfica) e técnico do Instituto Geográfico e Cadastral. Eis algumas das pérolas do livro no que toca à relatividade. Dizer que se trata de uma caricatura da relatividade é dizer pouco.

"Admitamos que no dia 27 de Fevereiro do ano 2000 se dava uma explosão na estrela de Orion. Este facto só seria registado na Terra 300 anos depois ou seja no dia 27 de Fevereiro de 2300 e para um observador situado em Touro a mesma explosão só seria vista em 27 de Fevereiro de 2250. Se do Touro comunicassem para a Terra esse sinal só o saberíamos a 27 de Fevereiro de 2303.

Vê-se assim claramente que o mesmo acontecimento não é simultaneamente registado nos três lugares e, portanto, daqui se infere da influência da luz nos nossos registos de medição do tempo e das distâncias desde que estas sejam muito grandes. Isto é a relatividade, esta interdependência Espaço – Tempo."


"Suponhamos agora que o comboio se desloca a uma velocidade de 300 000 Km/s – velocidade da luz, da esquerda para a direita do observador em Terra.
Disparado o automático que acende os dois focos [nos extremos do comboio], o que registarão os dois observadores, considerando que as luzes se acenderam no segundo imediato à partida?

O observador parado na linha registará que a luz à sua direita se acende 3 segundos depois e que a luz à sua esquerda se acendera ao fim de 2 segundos. Daqui concluirá que o acender das luzes não foi simultâneo, ou então que não eram rigorosamente iguais os dois troços do comboio. O que sucede é que em virtude da alta velocidade do comboio a luz da direita que deveria levar 2 segundos a percorrer a distância do meio comboio, devido à velocidade deste, igual à velocidade da luz, tinha mais um segundo a vencer que é o do atraso inicial no acender um segundo depois da partida. Entretanto para o observador no comboio dar-se-ia o seguinte: nunca veria a luz à sua direita e receberia a da sua esquerda ao fim de 2 segundos."


"Referir-me-ei a duas das principais [dificuldades a vencer pela ciência] que são a da medição da velocidade da luz e a prova da existência do chamado ÉTER (“fluido cósmico”) (...) Só Einstein com a formulação dos seus postulados da Teoria da Relatividade daria a explicação das razões por que o Éter, existindo, não podia ser detectado."


Mas há mais, muito mais e muito melhor. Lê-se no final da p. 55:


"Se conseguíssemos viajar à 'velocidade do pensamento', tudo nos estaria acessível, mas o pensamento é um Dom de Deus Criador e, a esta velocidade, só viajará o homem ao Seu encontro para o objectivo da Eternidade".


Está explicado: não conseguimos viajar à velocidade do pensamento...


(Agradeço a Daniel Sá a indicação deste livro; se outros leitores quiserem contribuir para esta antologia do erro...)




RECORDANDO CARL SAGAN


Trancrevo anúncio de um evento do Observatório Astronómico de Lisboa (OAL)/ Centro de Astronomia e Astrofísica da Universidade de Lisboa


PALESTRA PÚBLICA - 27 de Abril


O OAL retomou as suas Palestras públicas mensais, que como habitualmente têm lugar no Edifício Central, pelas 21h30 da última sexta-feira de cada mês. A próxima sessão decorrerá no dia 27 de Abril e terá como tema:

Recordando Carl Sagan e a série Cosmos

Esta sessão terá um formato um pouco diferente do habitual. A vida e a obra de Carl Sagan servirão como ponto de partida para um debate, orientado pelo Prof. Paulo Crawford e com a participação do Dr. Guilherme Valente, editor da Gradiva e do Prof. Rui Agostinho, director do OAL, sobre a divulgação científica em Portugal.

A palestra terá videodifusão ao vivo na Internet em http://live.fccn.pt/oal/

A entrada na Tapada da Ajuda faz-se pelo portão da Calçada da Tapada, em frente ao Instituto Superior de Agronomia.

No final de cada palestra, e caso o estado do tempo o permita, fazem-se observações dos corpos celestes com telescópio. Nesta noite o corpo celeste alvo será o planeta Saturno. Convida-se o público a trazer os seus binóculos ou mesmo pequenos telescópios caso queiram realizar as suas próprias observações ou ser ajudados com o seu funcionamento.

Para mais informações use o telefone 21361673

Vale a pena ler

Título: Memórias de Adriano
Autor: Marguerite Yourcenar
Editor: Ulisseia, 2006

"Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano."

Marguerite Yourcenar, 1951

terça-feira, 24 de abril de 2007

Ciência a brincar na SIC

A autoridade do erro

Os seres humanos erram. Pior do que isso, ficam cegos ao erro por causa da autoridade. Uma afirmação dita por quem detém autoridade num dado assunto é mais facilmente aceite do que a mesma afirmação dita por um desconhecido. Ora, isto levanta um problema: as pessoas, pelo facto de deterem mais autoridade, poderão abusar dela e impedir o progresso. Até porque podem usar a sua autoridade de forma deslocada, para falar do que realmente não sabem nem se deram ao trabalho de estudar cuidadosamente, limitando-se a dar largas aos seus preconceitos favoritos. Além disso, as melhores ideias muitas vezes vêm de pessoas que não detêm autoridade na área — mas que ganham autoridade precisamente por terem tido ideias muito boas.

Logo, qualquer actividade intelectual séria tem de ter mecanismos que façam duas coisas: corrijam erros e neutralizem ou enfraqueçam a autoridade deslocada. Encontre-se uma prática intelectual que desconheça estes dois mecanismos e será sinal seguro de que é uma fraude.

Estes mecanismos materializam-se, por exemplo, no modo como as revistas académicas estão concebidas. Estas não são como jornais, ao contrário do que por vezes se pensa. Os artigos são submetidos às revistas anonimamente, sem que quem avalia o artigo saiba quem é o seu autor. Isso permite contrariar a tendência natural para se aceitar cegamente o que as autoridades dizem — uma autoridade pode ver assim o seu artigo recusado, e um investigador desconhecido pode ver o seu trabalho publicado. Por outro lado, o avaliador do artigo tem por missão encontrar e corrigir erros no artigo. E se o artigo é de ciência experimental, se anuncia um resultado experimental, a experiência tem de ser reprodutível e tem evidentemente de dar o mesmo resultado — caso contrário, é uma fraude ou algo de errado aconteceu.

Os avaliadores rejeitam muitas vezes os artigos. As melhores revistas académicas de qualquer área têm índices elevadíssimos de rejeição de artigos — mais de 90%, em casos como a Analysis, uma das mais importantes revistas de filosofia. A qualidade de uma revista académica mede-se por dois factores principais: a quantidade de artigos dessa revista que são citados noutras revistas e em livros académicos; e a percentagem de rejeições.

Mesmo depois de publicado um artigo, isso não representa o fim da atitude crítica. Pelo contrário, muitos investigadores irão considerar que as ideias ou resultados apresentados estão errados, ainda que parcialmente, e tentarão demonstrar isso escrevendo outros artigos, que tentarão publicar.

Estes sistemas de controlo de erros são ainda complementados com a existência de várias revistas, que competem entre si pela qualidade dos artigos publicados. O resultado é um sistema aberto à inovação e à crítica e que se protege tanto quanto possível dos argumentos falaciosos de autoridade.

Claro que nenhum sistema é perfeito, mas a ausência destes sistemas é ainda pior. Quando estes sistemas existem, não importa muito se algumas pessoas que pertencem à comunidade em causa sejam dogmáticas, porque é o sistema que permite a heterodoxia e a inovação. Quando não existem tais sistemas, não importa muito se algumas pessoas que pertencem à comunidade em causa não sejam dogmáticas, porque é o sistema que não permite a heterodoxia e a inovação.
Quando uma prática intelectual ou académica não usa os sistemas descritos de correcção de erros, é fraudulenta. Baseia-se na autoridade cega, no preconceito, e tem de se proteger da crítica. Dado o sucesso da investigação séria, muitas actividades procuram simular estes sistemas, mas são apenas simulações. Quando uma dada prática intelectual tem medo de debater ideias contraditórias em público, quando exclui do seu seio quem o deseja fazer, é porque quer proteger-se da crítica aberta — mas, ao fazê-lo, está simultaneamente a excluir-se da categoria de prática intelectual séria, ainda que invoque muitas razões sofísticas para o fazer. Se não há realmente a possibilidade de quem discorda publicar os seus resultados no seio da instituição em causa, sem ser liminarmente afastado; se não há sistemas anónimos de submissão; se há uma ortodoxia que é decidida por maiorias ou autoridades e não pela força das provas e da argumentação anonimamente avaliadas — então, não estamos perante ciência, no sentido latino abrangente de scientia (conhecimento), mas perante leite estragado.

O Palimpsesto mais famoso do Mundo

No século X um escriba de Constantinopla (actual Istambul) copiou textos de Arquimedes para um livro que é hoje a mais importante fonte das obras do sábio de Siracusa, o Palimpsesto de Arquimedes.

Cerca de duzentos anos depois, durante a quarta cruzada, Constantinopla foi invadida e saqueada. O papel era escasso na época e o manuscrito de Arquimedes foi reciclado num livro de orações, o Euchologion. Para isso, a encadernação inicial foi destruída, o texto original raspado das folhas de pergaminho, estas rodadas 90º e reescritas (palimpsesto significa livro «raspado» no sentido de reutilizado).

O documento foi mantido pela Igreja até ser doado a uma biblioteca de Constantinopla, onde foi encontrado em 1906 pelo filólogo Johan Ludvig Heiberg. Com uma lupa, Heiberg conseguiu identificar os textos de Arquimedes sob as orações. Heiberg fotografou as páginas e publicou uns anos depois o que conseguiu decifrar. Na época, a descoberta mereceu honras de primeira página no The New York Times, em 16 de Julho de 1907, com o título «Importante descoberta literária em Constantinopla.»

O Palimpsesto contém 7 tratados de Arquimedes, entre os quais a única fonte original em grego de «Dos corpos flutuantes» e a única cópia integral de «Do método relativo aos teoremas mecânicos», obra da qual apenas alguns trechos eram conhecidos. Este tratado parece indicar que Arquimedes já intuía alguns princípios do cálculo diferencial e integral, cuja invenção é atribuída a Newton e Leibniz na segunda metade do século XVII. Nesta obra Arquimedes apresenta ainda uma concepção do infinito mais avançada do que se esperaria - especialmente se pensarmos que os seus contemporâneos inventaram o termo apeirofobia (fobia do infinito), horror infiniti que continuou durante a Renascença e mesmo até nos tempos modernos. Um dos textos divulgados por Heiberg era um excerto de um tratado intitulado Stomachion que intrigou os matemáticos que o analisaram, já que parecia apenas um quebra-cabeças pueril.

Mas o quebra-cabeças Stomachion, de que não existem mais fontes, demorou quase um século a ser decifrado já que pouco tempo após descoberto o manuscrito desapareceu. Reapareceu nos anos 1930 numa colecção privada em Paris e só a partir de 1998, data em que foi vendido por 2 milhões de dólares a um coleccionador privado, que o cedeu ao Museu de Arte Walters, em Baltimore - pode ser novamente estudado.

O palimpsesto encontrava-se à época em muito mau estado, com alguns trechos praticamente ilegíveis. Uma equipa multidisciplinar dedicou-se à tarefa complicada de recuperar o texto grego original, escrito há mil anos nas páginas de um livro que ao longo da sua história foi bastante maltratado. Tarefa complicada utilizada na recuperação de outros documentos milenares, em que a química tem um papel não despiciendo.

A cargo de Reviel Netz, da Universidade de Stanford, e Nigel Wilson, da Universidade de Oxford, ficou a tarefa de ler, analisar e traduzir o texto recuperado. A maior surpresa do palimpsesto foi certamente o Stomachion, que se revelou um tratado de análise combinatória, um campo que muitos pensariam ter a idade das ciências da computação.

O livro de Reviel Netz e William Noel «The Archimedes Codex: Revealing The Secrets Of The World's Greatest Palimpsest», pode ser encomendado (sai já para o mês que vem) na Amazon.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

RÓMULO NO PORTO



Recensão, ligeiramente editada, de um livro que foi publicada hoje no suplemento "Das Artes e das Letras" do jornal "O Primeiro de Janeiro", onde escrevo sobre livros quinzenalmente (rubrica "Os Meus Livros"):

Acaba de sair, do prelo da Editora da Universidade do Porto, um belo livro de grande formato dedicado a esse extraordinário personagem da nossa cultura científica que foi Rómulo de Carvalho. Intitula-se “Rómulo de Carvalho na Universidade do Porto 1928-1931” e é seu autor (embora a indicação esteja demasiado discreta) o Professor de Física da Universidade do Porto José Moreira de Araújo. O design e a fotografia, que são componentes essenciais do livro (o que os ingleses chamam um “coffee table book”), são de Rui Mendonça.

O livro, apesar de lançado há poucas semanas, tem data de 2006, o ano em que se comemoraram os cem anos do nascimento do professor e poeta. Este ano comemoram-se os dez anos do seu falecimento, estando previsto para breve a publicação do seu volume de “Memórias”, que é dedicado aos seus tetranetos (bisnetos já ele tem, mas tetranetos ainda não!).

Rómulo de Carvalho apesar de ter nascido em Lisboa e de ter aí iniciado o seu curso superior estudou na Universidade do Porto durante os quatro anos que estão indicados no título desta obra. Mais tarde foi professor do ensino secundário no Liceu Nacional de D. João III, hoje Escola Secundária José Falcão, em Coimbra (o liceu onde, “in illo tempore”, estudou Antero de Quental). Mais tarde haveria de se mudar para a sua terra natal, onde foi durante muitos anos professor no Liceu Pedro Nunes.

Carvalho (que só nos seus tempos de Coimbra se estreou como poeta António Gedeão) iniciou os seus estudos superiores na Escola Politécnica de Lisboa em Outubro de 1925, nas vésperas da revolução de 28 de Maio de 1926 que conduziu ao Estado Novo. Frequentou aí o curso preparatório para Engenharia Militar, profissão para a qual nunca mostrou a menor vocação. Filho de uma família que não era rica, a carreira militar era, na época, a possibilidade de mais cedo aceder a uma situação de independência económica. Mas Carvalho não simpatizou com os seus professores militares, que davam aulas numa pose bélica ainda que não envergassem as suas fardas… Escreveu ele nas suas “Memórias” ainda inéditas:

Primeiro os generais e os coronéis a ensinarem-me as leis da gravitação universal, as fórmulas das vitaminas, as equações do 4º grau e os triângulos esféricos, de espada dirigida ao peito; depois o general Fomes da Costa a cavalo, acampado em Sacavém, preparando a sua entrada gloriosa em Lisboa”.

E foi por uma certa aversão aos militares que, em 1928, se mudou para o Porto, para um curso bem diferente, a licenciatura em Ciências Físico-Químicas. Escolheu ser professor:

“Iria para o ensino. Igualmente me interessavam as Letras e as Ciências, e em qualquer desses sectores ensinaria com prazer. Mas não valeria a pena voltar atrás, ao Liceu, para frequentar o Curso Complementar de Letras, podendo aproveitar o de Ciências, de que já tinha diploma. Seria por aí o caminho. Das Ciências, todas me agradavam, mas preferi a Física e a Química porque implicavam trabalhos de mãos e recurso às Matemáticas, concretamente utilizadas. Foi esse o meu destino (…)”.

Mais tarde haveria de declarar, ena Universidade de Évora, numa cerimónia de entrega do grau de doutor “honoris causa”, que não quis ser um qualquer professor, mas sim um professor do ensino secundário. Chegou a receber um convite para ser assistente na Universidade do Porto, mas declinou-o. Ainda das “Memórias”:

“Não me inclinava a trocar o convívio dos adolescentes pelo dos barbados. Nunca me arrependi da decisão”.

Logo no início do livro, numa nota introdutória, o autor explica que foi encontrado no espólio do Departamento de Física da referida Universidade um trabalho escolar de Rómulo de Carvalho, escrito na sua muito certinha caligrafia. Esse trabalho, que servou de ”leit motiv” ao presente livro, era um estudo de matérias não dadas nas aulas da disciplina de “Acústica, Óptica e Calor”. O trabalho sobre calores específicos (calor que um dado material pode absorver por unidade de massa), que se encontra reproduzido em “fac simile” no Apêndice 4, aborda vários conceitos e teorias de Física Moderna, nomeadamente da paradoxal teoria quântica, que na altura eram bem recentes. Escreveu a certo passo:

“A teoria dos quanta obriga-nos a combater ao seu lado pela veracidade dos resultados que com ela se obtêm, embora os princípios em que está assente, tão estranhos às concepções seculares, nos repugnem um pouco”.

Mas esse trabalho foi apenas um pretexto para uma obra muito interessante que o ultrapassa largamente. Ela conta-nos, mais em geral, como foi o percurso académico do jovem estudante no Porto e, mais em geral, como era a vida nessa época da que é hoje a maior academia portuguesa. José Moreira Araújo, cujos saber e rigor são bem conhecidos da comunidade científica portuguesa, aproveita o ensejo para descrever de forma sábia e rigorosa a instituição na época, nomeadamente os professores das várias disciplinas, os programas, as instalações, a atmosfera, etc.

Nesses anos de aprendizagem, o jovem Rómulo de Carvalho leu muito, principalmente obras de ciência e de divulgação científica estrangeiras. E também escreveu: além de trabalhos escolares como o que foi citado, escreveu “prosas e versos”, incluindo dois interessantes artigos no jornal académico do Porto intitulados “A decadência do raciocínio” e “A igualdade dos sexos”. Este último artigo foi algo polémico, por contrariar algumas posições conservadoras sobre a mulher, tendo valido uma resposta do chefe de redacção. Os trabalhos de Rómulo, na altura em que estudava no Porto, estão publicados na obra em apreço em apêndice para uma fácil memória futura. Só é pena não haver um índice do livro, com indicação dos apêndices.

A cidade do Porto deixou uma marca indelével em Rómulo de Carvalho pela vida fora. No final da sua vida, ainda nas “Memórias” que esperamos em breve poder ler na sua totalidade, o grande mestre refere-se à “mui nobre e invicta cidade” do seguinte modo:

“Gostei de viver no Porto. Era então uma cidade de sabor antigo, fiel às litografias do século XIX que me deslumbravam com as imagens da Ribeira do Douro, das casas de Miragaia, da rua de S. João, dos Clérigos e da Cordoaria, com o edifício da Relação onde Camilo curtiu as suas penas, com a Foz de António Nobre, o passeio das Cardosas e as pontes sobre o rio. Cidade burguesa, na azáfama das suas ruas sentia-se a preocupação de viver, o ânimo de lutar, a vontade de chegar até determinado ponto. As mulheres e os homens, gente do povo, não eram os que eu via em Lisboa. Tinham um cariz mais bravo, um menear mais decidido, uma voz com mais ressonância, um conjunto de caracteres que poderiam definir um outro Portugal, talvez até mais genuíno.”

Felizmente que, passados quase oitenta anos, o Porto ainda é assim!

- José Moreira Araújo, “Rómulo de Carvalho na Universidade do Porto 1928-1931”, Editora da Universidade do Porto, Porto, 2006.

Vale a pena ler

La educación está enferma: informe pedagógico sobre la educación actual.
J. A. Quintana Cabanas.
Valencia: Nau Llibres, 2004.

José Maria Quintana Cabanas é um professor catedrático de Pedagogia da Universidade Nacional de Educação a Distância (U.N.E.D.), Madrid, que já teve a amabilidade de visitar a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Nesta Escola proferiu uma palestra brilhante, reveladora de uma erudição construída ao longo de muitos anos de trabalho aturado e de uma reflexão crítica bem alicerçada e ponderada. Não se pense, no entanto, que a forma de comunicar deste autor, de vasta e substancial obra, se carregou de um cinzento obscuro, como é comum atribuir-se aos académicos; bem pelo contrário, revestiu-se de um tom claro, exacto, honesto.

É precisamente este estilo de abordagem das questões educativas que transparece no livro La educación está enferma: informe pedagógico sobre la educación actual recentemente dado à estampa. Trata-se de um livro que urgia ser escrito. E urgia ser escrito por alguém de dentro da Pedagogia que se movimentasse com à-vontade nos domínios histórico, ideológico, político e científico. Passamos a explicar esta dupla afirmação.

A concepção actual de educação escolar está longe de ser unívoca e pacífica. Esta circunstância, apesar de ser tão antiga quanto a própria educação, tem vindo a materializar-se em tópicos de intensa polémica que, em geral, se apresentam segundo a forma de antinomias, aspecto a que Quintana Cabanas dedicou atenção especial num outro livro que, em boa hora, foi traduzido para a nossa língua (Teoria da educação: uma concepção antinómica da educação, Porto: Asa, 2002). Nesse livro, socorrendo-se das palavras O. Reboul, explica que antinomia “não significa simplesmente contradição, mas também oposição de duas leis, quer dizer, de duas regras, cada uma das quais pode reivindicar com justiça a nossa adesão”, analisando, de seguida, algumas das antinomias que se têm estruturado em torno da educação e que têm sido assumidas, convicta e afirmativamente, por intelectuais de diversas formações.
No trabalho em apreço, o autor retoma esta problemática mas torna-a mais específica, ao centrar-se no sistema educativo espanhol, e mais pessoal, ao explicitar a sua opinião em relação à qualidade do mesmo.
À semelhança de autores que se movimentam em áreas distintas da Pedagogia e que, em tempo recente, empreenderam o mesmo exercício em relação a outros sistemas de ensino ocidentais, nomeadamente o norte-americano, o inglês e o alemão (v.g., Barzun, 2003; Bloom, 2001; Levitt, 1999; Hirsch, 1999; Schwanitz, 2004; Steiner, 2004), Quintana Cabanas declara, de modo inequívoco, que a educação “está doente” e que essa situação se deve à prevalência acrítica de certos princípios educativos que se situam no pólo antinómico conotado com a Educação Nova. Contudo, vai além deles, quando, depois de apresentar inequivocamente cada um desses princípios, explica, de modo rigoroso e fundamentado, a sua origem e percurso, bem como as suas potencialidades e perigos. E, ao contrário do que eventualmente se esperaria, faz este exercício distanciando-se também do pólo antinómico conotado com a Educação Tradicional. Entendemos que esta lucidez é fundamental para ultrapassar ambos os pólos enunciados, que pouco ou nada têm de actual e de científico.
Ora, quando um prestigiado teórico que fez carreira na Pedagogia declara, em jeito de síntese, que “as reformas educativas não se inspiram em critérios estritamente pedagógicos, mas sim em critérios políticos e em ideias pedagógicas que estão na moda, mas que, por vezes, possuem uma base errada” (página 200) devemos reconhecer-lhe o mérito e dar-lhe atenção redobrada. Primeiro, porque desmistifica a ideia corrente de que os especialistas em Pedagogia pensam todos do mesmo modo e falam a uma só voz que se faz ouvir num tom alto e dogmático, veiculando ideias peregrinas e inconsistentes sobre a aprendizagem e o ensino, tornando-se, deste modo, os principais responsáveis pelo lastimável estado que os sistemas educativos denotam. Segundo, porque demonstra que há pedagogos, mais do que provavelmente se supõe do exterior, que se orientam por princípios de objectividade e de responsabilidade que prestigiam as áreas disciplinares e que as fazem avançar em direcção a conhecimentos mais adequados.

Em concreto, o livro em questão organiza-se em cinco capítulos com carácter sequencial, cujos títulos, inovadores e algo irónicos, são retirados da terminologia médica.
No primeiro capítulo (Sintomatologia), o autor afirma inequivocamente a existência de problemas que afectam, de modo muito sério, o sistema educativo do seu país, apresentando, de seguida, as razões que os precipitaram e delineando a sua real expressão.
No segundo capítulo (Diagnóstico), debate nove desses problemas, os quais não podemos deixar de enunciar, uma vez que constituem o cerne do dito trabalho: confiança ingénua no espontâneo e harmonioso desenvolvimento do aprendiz; diminuição da autoridade educativa e da atitude de respeito; diminuição da coerção educativa, ambiente de facilitismo e de dispersão; menor exigência no estudo, tanto no que respeita à amplitude dos conhecimentos a adquirir como ao rendimento esperado dos alunos; desprestígio dos meios didácticos tradicionais, acompanhado de propaganda dos métodos activos e globais; disfunções do sistema educativo (indisciplina e violência, tecnicismo didáctico, desmotivação dos professores); politização do debate sobre a educação e a reforma do sistema educativo; e falta de ideais.
No terceiro capítulo (Etiologia), conjectura sobre as origens dos ditos problemas, destacando, entre outras, o ambiente rousseauniano e pós-moderno em que se movem certos pretensos teóricos da educação que influenciam as políticas educativas.
No quarto capítulo (Prognóstico), disserta sobre a evolução dos problemas, alertando para que a sua resolução depende da revisão de certos princípios educativos que se têm por correctos e inquestionáveis, mas que, uma vez implementados, podem tornar-se particularmente perigosos. Entre esses princípios inclui o naturalismo, a educação activa, a educação global, a multiculturalidade, a educação compreensiva, a auto-orientação axiológica, e a atenuação ou exclusão do esforço.
No quarto capítulo (Terapia), aponta medidas concretas para superar os problemas aflorados, as quais passam pela assunção de princípios educativos distintos dos acima referidos, reorganização da dinâmica das escolas, bem como da criação de uma cultura de ensino estruturante e, não menos importante, pela formação inicial e contínua de professores.

Pelo exposto e porque estamos em crer que Quintana Cabanas constitui um dos maiores pensadores da educação escolar da actualidade, ousamos sugerir a publicação em português da obra que se apresenta. Na verdade, não se nos afigurando as fragilidades do nosso sistema educativo substancialmente diferentes das do sistema educativo espanhol, consideramos que a divulgação deste texto ajudaria especialistas, políticos, estudantes e outras pessoas interessadas pela educação a repensar os fundamentos da mesma e as práticas que deles derivam.


Obras referidas no texto:

Barzun, J. (2003). Da alvorada à decadência. Lisboa: Gradiva.
Bloom, A. (2001). A cultura inculta. Lisboa: Europa-América.
Hirsch, E. D. (1999). The schools we need and why we don`t have them. New York: Anchor Books.
Levitt, N. (1999). Prometheus bedeviled: science and the contradictions of contemporary culture. Rutgers: University Press.
Savater, F. (1997). O valor de educar. Lisboa: Presença.
Schwanitz, D. (2004). Cultura: tudo o que é preciso saber. Lisboa: Dom Quixote.
Steiner, G. (2004). As lições dos mestres. Lisboa: Gradiva.


Maria Helena Damião

Vale a pena ler

Como se Faz um Filósofo
Autor: Colin McGinn
Tradutor: Célia Teixeira
Editor: Bizâncio, 2007

"A ciência é sem dúvida uma tarefa importante e nobre, mas não é a única forma de investigação intelectual com valor. Não devemos abraçar a ideia de que uma pergunta ou é científica ou coisa nenhuma." (Colin McGinn)

"Escrito de forma brilhante, profundamente honesto, frequentemente divertido este livro revela a história pessoal de McGinn, tão fascinante quanto a sua carreira do filósofo." (Oliver Sacks)

EM QUE ACREDITA O SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E INOVAÇÃO E A SUA EQUIPA?

No passado Ano Darwin, numa conferência que fez no Museu da Ciência, em Coimbra, o Professor Alexandre Quintanilha, começou por declarar o s...