quarta-feira, 27 de julho de 2011

Uma opinião de Nuno Crato: polémica ou nem por isso?


“O médico que só sabe de Medicina, nem de Medicina sabe” (Abel Salazar, médico e professor universitário, 1889-1946).

Um comentário de “asmoddeux” ao meu post aqui publicado ontem, “O diagnóstico da educação e a avaliação docente como terapia”, levantou uma polémica que tem raízes profundas nos quintais de quem defende aquilo que ensina como a coisa mais importante de todas. Entendo ter interesse público esta discussão que alguns podem até pensar ser sobre o sexo dos anjos, mas que eu considero urgente fazer quando os turcos se encontram às portas de Constantinopla. Ou, mesmo, quando já invadiram esta cidade, com os inúmeros disparates que se têm cometido nestas últimas décadas no sistema educativo nacional.

Transcrevo o início do respectivo comentário: “Tem tudo um fundo de verdade como tudo na vida, mas a última [citação] é bastante parcial”. Para que quem possa ler saiba daquilo que fala, refere-se ele a esta opinião do Prof. Nuno Crato: “É indesculpável que um professor – qualquer professor !- não saiba escrever, cometa erros de ortografia graves, tenha limitações sérias no vocabulário, não faça ideia do que é a lei da queda dos graves, não saiba somar fracções ou confesse ‘horror à matemática’ ”. Ou seja, Nuno Crato dá uma ênfase notória (e quanto a mim com carradas de razão) à necessidade de domínio escrito e falado do português pelos professores de qualquer disciplina. E entende também como reprovável que qualquer professor, de qualquer disciplina, não faça a mínima ideia sobre a lei da queda dos graves e não saiba somar simples fracções. São conhecimentos de cultura geral que se aprendiam no antigo liceu e se deviam aprender nas actuais escolas básicas e secundárias mesmo numa época em que a Filosofia ("não apenas a busca da sabedoria, mas também a sabedoria encontrada") sofre tratos de polé e em que há perguntas de exames de Português respondidas com uma simples cruz numa de quatro hipóteses. E numa época em que os alunos universitários (ou até mesmo depois de licenciados) cometem erros crassos de ortografia.

Mas nada de exageros! Não se pode exigir, por exemplo, que um professor de outra área que não seja de Física tenha conhecimentos profundos de mecânica quântica ou que um qualquer professor que não seja de Matemática saiba cálculo diferencial. Transportando-nos agora para o âmbito da Geografia seria também lamentável que um professor de Português desconhecesse o nome da capital da Polónia. Mas já se não pode exigir a esse professor que saiba o nome da capital do Bangladesh. Salvaguarde-se o caso dele se estar a preparar para entrar num concurso televisivo na esperança de ganhar uns euros numa altura em que sabe que o seu subsídio de Natal vai sofrer um corte para cerca de metade...

Aliás, esta questão tem sido dirimida, normalmente, entre os professores de Português e Matemática, marginalizando os professores das outras disciplinas, numa discussão longe de ter um fim à vista, dada a atitude bem portuguesa de defender o nosso ponto de vista sem atender ao ponto de vista do nosso semelhante. Certo é que todos os docentes têm a responsabilidade de preparar os alunos para uma vida futura em que os erros e omissões se pagam bem caros pelo aluno mal preparado e pela própria sociedade “imbecilizada” pelo abuso da consulta aos computadores para questões comezinhas! Com um certo exagero, e não menor ironia amarga, já tenho escrito que lá virá o tempo em que se pergunte a um aluno do ciclo preparatório quem foi o primeiro rei de Portugal ele nos responda: “Um momento que vou consultar o Magalhães!” Como é bem de ver, o Magalhães não é um seu parente, um explicador ou um colega mais sábio!

Infelizmente, por vezes, é um certo preconceito contra as outras disciplinas que vigora em mentes mal informadas. Dou o exemplo, da disciplina de Educação Física , pese o seu importante papel no dia de hoje, em que há cada vez mais jovens vítimas das já chamadas doenças hipocinéticas, de entre elas, a obesidade, meio caminho andado para doenças adultas bem mais graves. A propósito do papel da Educação Física dizia-me anos atrás um professor desta disciplina: "Ninguém morre por não saber Geometria, por exemplo, mas muita gente morre por não saber nadar”! Aliás, mesmo na Roma Antiga se lançava o opróbrio sobre a ignorância da sua juventude com o dito: “Não sabe ler, nem sabe nadar!” Ainda em dias contemporâneos o papel da Educação Física foi posto em destaque pelo congressista americano Woods Hutcinson ao afirmar, no encerramento de um Congresso das Associações Americanas, perante membros governamentais atónitos, “ser preferível um campo de jogos sem uma escola a uma escola sem campo de jogos”. Não compreenderam eles, pelos vistos, e de imediato, o alcance desta mensagem: um campo de jogos sem uma escola cumpre a sua função; uma escola sem campo de jogos fica completamente desvinculada de uma educação integral da juventude.

E aqui está como um comentário nos pode fazer recuar a tempos em que os alunos que tinham “horror à matemática”, depois de terminado o antigo 5.º ano dos liceus, enveredavam pelas alíneas do curso complementar dos liceus que davam acesso a Letras ou a Direito, onde se tornaram verdadeiros “crânios” nos cursos de Direito ou Letras e no exercício muito respeitado e respeitável dessas profissões.

Mas mesmo estes profissionais têm (ou pelo menos devem ter) a obrigação, como defende(u) Nuno Crato, para não se tornarem ignorantes chapados, de “fazer ideia do que é a lei dos graves e saberem somar fracções”. Assim como, por exemplo, os homens da ciência têm obrigação (como tem demonstrado Nuno Crato à saciedade, com os livros e artigos por si publicados, de natureza científica ou não) de saber escrever correctamente português.

E aqui encontro fundamento incontroverso, e que se aplica sem excepção a outras profissões, no pensamento de Abel Salazar que não é demais repetir: “O médico que só sabe de Medicina, nem Medicina sabe”. De igual modo, mutatis mutandis, um advogado que só sabe de Direito, sem conhecer operações com fracções a aplicar, por exemplo, em processos de herança, nem de Direito sabe. Ou sabe mal… e porcamente, como soe dizer-se!

15 comentários:

Cláudia disse...

Portanto: "eu que nada sei sobre medicina, tudo sei de medicina" e como receituário para sr. Rui Baptista alimentação a base de frutas e grãos, com muita água e otimismo!







Por onde andará o ilustríssimo JCN ?

joão boaventura disse...

Caro Rui

As frases de Nuno Crato e de Abel Salazar, são interpretações semióticas, portanto, não precisas.

O médico tem que saber do seu mister, actualizar-se, e dominar a sua área, indubitavelmente, como Nuno Crato terá, da matemática aplicada à economia, o conhecimento mais abrangente e preciso da área.

Portanto, Abel Salazar e Nuno Crato têm, como primeiro pensamento, o domínio e a domesticação das respectivas artes ou ofícios.

Veiga Simão dizia que o prestígio e o domínio estava em quem dominasse o conhecimento, e com isto, o conhecimento da área e o conhecimento fora da área, como complemento, para melhor entendermos a nossa pelos contributos aduzidos.

Exemplo similar bsereva-se em quem nunca sai do seu país. Conhece-o bem ou razoavelmente, tem uma visão parcelar outotal dos limites geográficos em que vive.

Mas, se ele for viajado, conhecer outros países, mesmo que parcelarmente, pela comparação com o seu, terá um conhecimento mais alargado da sua domus, porque expandindo o seu conhecimento passará a examiná-la com outros olhos, outras visões, outro entendimento.

O médico dominando o seu ofício, se aplicar o seu gosto pelo conhecimento humanístico, logístico ou técnico, terá um comportamento mais civilizado e compreensivo, o que o acto médico pode não permitir.

O economista ou matemático, se alargar o seu conhecimento por outras áreas, terá uma visão mais alargada do mundo em que vive, e não será um obcecado pela matemática, e poderá dialogar sobre outras áreas que não dominará mas lhe permite a troca de ideias.

O sociólogo Norbert Elias considera que a Alemanha é um país de "civilização" e a França,de "cultura".

Permite-me a ousadia de extrapolar a semiologia de Abel Salazar e Nuno Crato, substituindo, os termos de cada um, por "quem é culto deve ser civilizado".

Um abraço

Anónimo disse...

Por lei dos graves se entende
a que diz que os mais pesados,
como bem se compreende,
sobem menos, comparados
aos mais leves que, a partida,
sobem mais alto na vida!

JCN

Anónimo disse...

Acha, caro Dr. João Boaventura, que o sociólogo Norbrto Pires está no certo?! Que diferença existe, para si, entre ambos os conceitos? Qual deles se aplica a Portugal? Que tema mais aliciante, que Pessoa nunca foi capaz de abordar com a suficiente clarividência! Como na rosa, o perfume evola-se, mas as pétalas, ainda que murchas, permanecem: as ideias vão-se, mas as pedras ficam! JCN

joão boaventura disse...

As incómodas gralhas

4.º §
Veiga Simão dizia que o prestígio e o domínio "estava" em quem...
corrigir para "estavam"

5.º §
1.ª linha
Exemplo similar "bsereva-se" em quem nunca ...
corrigir para "observa-se"

2.ª linha
Conhece-o bem ou razoavelmente, tem uma visão parcelar "outotal"
corrigir para "ou total"

Com as minhas desculpas.

Rui Baptista disse...

Meu Caro João: A importância do pensamento de Abel Salazar, médico, professor catedrático de Medicina, pintor, filósofo (aliás, com o sabes, a sua tese de formatura na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, intitulava-se “Ensaio de Psicologia Filosófica”), em suma um homem da Cultura e da Ciência, ou vice-versa, foi (ou é tanta) que se encontra impresso o seu pensamento numa lápide no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto.

Isso mesmo o reconhece Veiga Simão quando escreves que este catedrático de Física dizia (e passo a citar-te) “que o prestígio e o domínio estava em quem dominasse o conhecimento, e com isto, o conhecimento da área e o conhecimento fora da área, como complemento, para melhor entendermos a nossa pelos contributos aduzidos”.

Por isso, cito “verbo pro verbo”,sempre a frase de Abel Salazar tal como ele a disse transmitindo o seu pensamento de uma forma lapidar.

Um abraço.

Maria disse...

«Se eu pudesse desenhar um currículo ideal para a formação dos últimos cinco anos na escola, desenhava-o com sete ou oito disciplinas, e único para todos. E, sem dúvida, juntava: Português, Filosofia, Matemática, História das Ciências e História das Artes. Isto seria para todos. Se for de Humanidades e eu lhe perguntar a que temperatura ferve a água, o que é um radiador ou o que é o genoma, não sabe. Se perguntar a alguém das Ciências Exactas quem escreveu o Só ou quem compôs o Rigoletto, não sabe. Esta separação é terrível.»
Entrevista de Maria João Alexandre a António Barreto in CX. A Revista da Caixa, N.º 3, Janeiro | Março 2011, Lisboa, p. 59.
http://www.cgd-publishing.com/revistacx/edicao3_teaser/pdf/RevistaCx03_Teaser.pdf

Rui Baptista disse...

Errata (meu comentário, 28 Julho;02:13):
2.ª linha, 1º §: "como o sabes", corrigir para como sabes.

Cláudia S. Tomazi disse...

Por que fostes lapidar tal túmulo
será vazado o vosso conhecimento?
provocaste um pendor deste cúmulo
esfarelando se o fora de cimento
somente por pedra sejais acúmulo
precisas é uma lima ao polimento
sejais humilde aceita tua condição
que saber se basta sem orientação?

Anónimo disse...

Ola,

Optimo texto, como sempre. Nunca sera demais bater nesta tecla, que julgo fundamental. Não ha saber verdadeiro, nem mesmo saber "especializado", que não assente no dominio da lingua, e numa solida cultura geral. Isto é que os estabelecimentos de ensino, do primario ao superior, deviam sempre ter em consideração.

Contrariamente ao que alguns docentes imaginam, esta verdade é evidente para quem esta na pratica ou no mundo do trabalho (sobretudo se qualificado). Quando recebo um advogado estagiario, não procuro saber se ele esta a par da ultima jursprudência (geralmente esta) ou se tem noções sobre esta ou aquela escola alemã esotérica. Procuro saber se ele sabe escrever. Vou imediatamente aferir se ele possui as competências que, em principio, devia ter adquirido no secundario. Se sabe ser preciso, claro, conciso. Se sabe mobilizar a sua cultura (técnica ou geral) para expressar uma ideia. Lembro-me dos meus patronos que recomendavam : escreveste os articulados, ora agora relê mais uma vez tendo sempre em mente a pergunta "o que é que eu estou a dizer ? o que é que o meu texto verdadeiramente diz ?".

Tantas paginas de sabios jurisconsultos que, quando se põe de parte o amontoado de citações e referências, não dizem rigorosamente nada...

Duvido muito que o Rui Baptista a ignore, mas ainda assim aqui vai uma citação para ele juntar às de Abel Salazar e a tantas outras parecidas (stude non ut plus aliis scias, sed melius, etc.). E' de Fernando Pessoa, salvo erro no livro do desassossego :

"Desconfio dos mestres que o não podem ser primarios".

Boa continuação

joão viegas

joão boaventura disse...

Caro Rui

Ninguém põe em questão o que Abel Salazar e Nuno Crtao disseram, mas interpretar o sentido que subjaz em cada frase, de um e de outro.

No fundo, interpretando sob outro ângulo, à cultura científica a que ambos se obrigaram, para domínio da arte médica e da arte matemática, respectivamente, cabe cultivar, paralelamente, a civilização.

Repara que o signo civilização é do tempo do enciclopedismo e usado como o oposto de barbárie. O século da Razão, das Luzes e do Progresso, levou a sociedade ocidental a um estado de harmonia e de bem-estar.

Leonel Franca é mais específico:

"Desenvolvimentos das ciências, das letras e das artes, prudência equilibrada das instituições políticas e sociais, mantenedoras da justiça e da paz, requinte de ademanes e delicadeza de maneiras corteses e refinadas, tudo isto entrava no conceito de Civilização" (A crise do mundo moderno, ed. Pro Domo, Lisboa, 1945, p.18).

Dito de outra maneira, não basta ser instruído, é necessário ser educado, ou seja ser culto na arte médica e na matemática, mas também civilizado, isto é humanizado.

A minha contribuição foi no sentido de interpretar os símbolos ínsitos nas duas frases, isto é, fora da literalidade, e consequentemente respeitando a redacção dos autores.

Um abraço

Rui Baptista disse...

Meu caro e bom amigo João:
Compreendi a intencionalidade (aliás, boa intencionalidade) do teu comentário. E com ele não podia estar mais de acordo.

Mas (há sempre um mas...), no receio de uma possível má interpretação que dele pudessem fazer (como eu, possivelmente o possa ter feito numa leitura em diagonal , "mea culpa") entendi salientar uma vez mais, passe a redundância, o conteúdo profundo da frase de Abel Salazar que em poucas e concisas palavras encerra o ecletismo de saberes que deve presidir às profissões, mesmo aquela que se distingue das outras, como a Medicina por lidar com a doença e ser as esperança da sua cura.

Talvez por isso, nesta profissão sempre em constante presença com o sofrimento e as asas da finitude que paira sobre a condição humana – há quem diga que o homem é o único animal que tem a noção da morte - se encontre razão muito forte e suporte valioso em Abel Salazar e em, por exemplo, Miguel Torga e João Lobo Antunes, em exercício simultâneo da prática médica e das Belas-Letras.

Nada mais pretendi com o meu comentário do que salientar esse facto e, agora, agradecer-te o exercício a que me obrigaste para justificar aquilo que, porventura, possa ter ficado menos claro num “post” em que exalto, não tanto como desejaria pela modéstia da minha pessoa, a figura de um Homem que, para além de tudo isto, soube fazer prevalecer os seus ideais políticos anti-situacionistas mesmo que isso lhe custasse, como custou, a expulsão da cátedra da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Anónimo disse...

Cara Senhora: por que não tenta a prosa?! JCN

Rui Baptista disse...

Meu Caro João Viegas: Começo por lhe agradecer o seu gentil comentário. Embora, um tanto ou quanto, despiciendo, "in dubio",comunico-lhe que respondi ao seu comentário com o post "Mais um postal” (29/Julho/2011).

Cordiais cumprimentos,

Cláudia S. Tomazi disse...

Ilustríssimo JCN para este caso fora o Teorema de Tales!
E que possa de vossa sabedoria ser irrefutado conselho, pois apenas vos sois Poeta!
De mais a mais, as possibilidades sempre trazem louvor à causa.

A panaceia da educação ou uma jornada em loop?

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