sábado, 20 de abril de 2024

50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL: UM DEPOIMENTO PESSOAL

Meu artigo no último As Artes entre as Letras (no foto minha no Verão de 1975 quando participei no Youth Science Fortnight em Londres, estou de óculos atrás):

Em 25 de Abril de 1974, eu era caloiro do curso de Física da Universidade de Coimbra (UC). Fui para Física por ter lido vários livros de divulgação científica, alguns deles de Rómulo de Carvalho. Também contribuiu a visita que fiz, no 7.º ano do Liceu D. João III, ao Laboratório de Física da UC. Escrevi sobre essa visita no jornal O Estudante, dos alunos daquela escola, elogiando o ministro da Educação José Veiga Simão, professor de Física da UC, a quem «cravei» sete contos para o jornal. O facto de ele ter acedido logo revelou-me que os tempos estavam a mudar. A Revolução chegou-me a meio da manhã: foi-me cancelada uma aula de Cálculo Infinitesimal, no edifício da Matemática. Voltei para casa para ouvir a rádio e, à noite, ver a televisão.

O PREC não afectou o meu curso, que só tinha quatro alunos (todos eles se doutoraram). Beneficiei de excelentes professores que, como Veiga Simão, se tinham formado em Inglaterra e me transmitiram a física moderna. Assim, passados cinco anos, terminei o curso, na especialidade de Física Teórica. O meu primeiro congresso foi em 1978, na Fundação Gulbenkian, o 1.º Encontro da Sociedade Portuguesa de Física (SPF), fundada em 1974. Logo que acabei o curso fui convidado para dar aulas como assistente. 

Nessa altura passou pela UC uma delegação alemã que queria reforçar a cooperação académica e fui aliciado a fazer um doutoramento na Alemanha: fi-lo na Universidade Goethe, em Frankfurt am Main, entre 1979 e 1982. Nesse tempo, os doutoramentos em Portugal eram raros e demorados, ao contrário do que sucedia lá fora. No ano em que defendi a minha tese, só houve 130 novos doutores portugueses, a maior parte deles no estrangeiro. Para verificar a transformação que o país realizou na ciência, basta olhar para a PORDATA e ver que, em 2022, foram concluídos 2317 doutoramentos, a maioria em Portugal: nos 40 anos entre 1982 e 2022, o número de novos doutorados aumentou quase 20 vezes. Destaco o facto de hoje haver mais doutoramentos de mulheres do que de homens, reflectindo a ascensão social das mulheres que Abril proporcionou. Se em 1982 os investigadores em Portugal publicaram 388 artigos científicos, em 2022 publicaram 30.078, quase 80 vezes mais. Tal crescimento só foi possível graças a um grande salto no financiamento da ciência. Em 1982 só se investiu 0,3% do PIB, mas em 2022 o valor já foi de 1,7%, quase seis vezes mais (aquém, contudo, da média europeia de 2,2%).

Regressado a Portugal aos 26 anos participei, como professor da UC e investigador do Centro de Física Teórica, apoiado pelo Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), antecessora da Fundação para a Ciência e Tecnologia, em lutas pelo aumento do financiamento para ciência. Estive de estada sabática na Universidade Tulane, em Nova Orleães, nos Estados Unidos, em 1990, onde trabalhei com John Perdew, com quem escrevi um artigo com um número record de citações. Tinha conhecido, em 1984, José Mariano Gago numa Conferência de Física em Évora da SPF. Demo-nos muito bem: partilhávamos os mesmos ideais. Foi, por isso, com júbilo que o vi encabeçar o primeiro Ministério da Ciência e Tecnologia, em 1995. Em 1998 contribuí para a criação do Centro de Física Computacional, na UC, onde promovi a criação do Laboratório de Computação Avançada, que tem albergado alguns dos maiores supercomputadores nacionais (o laboratório foi inaugurado pelo ministro em 1999). Dirigi o novo Centro, hoje integrado no Centro de Física de Coimbra. Mariano Gago, ministro em dois governos de Guterres e dois de Sócrates, foi, sem dúvida, a figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos.

Interessei-me desde cedo pela difusão da cultura científica: participei nos primeiros projectos do Ciência Viva (num tempo em que essa agência era inovadora: hoje, paralisada na rotina, é uma pálida sombra do que foi). Interessei-me pela produção e experimentação de software educativo, pois havia que aproveitar a enorme transformação digital em curso (o IBM-PC é de 1981 e a World Wide Web é de 1989). Em 2008 criei, com a ajuda de Mariano Gago, o Rómulo - Centro Ciência Viva da UC, um moderno centro de recursos educativos, que entretanto a Ciência Viva, sem qualquer razão, extinguiu. Participei no esforço de difusão da ciência com livros (o meu primeiro livro, Física Divertida, saído na Gradiva, a editora de Guilherme Valente, em 1991, foi um best-seller; escrevi depois mais 70, sem o mesmo êxito), artigos em jornais e revistas (hoje escrevo no Correio da Manhã), sites, podcasts e programas de rádio e TV. 

Desde há dez anos dirijo a colecção Ciência Aberta da Gradiva. Um ano marcante da Física em Portugal foi 2005 - Ano Internacional da Física, que celebrou o centenário do annus mirabilis de Einstein: nesse ano recebi a Ordem do Infante D. Henrique. Ajudei na criação do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, inaugurado em 2006 e premiado internacionalmente (nos últimos anos tem estado meio inerte).

Fui director da Biblioteca Geral da UC de 2004 a 2011. Empenhei-me na sua modernização, ajudando a concretizar repositórios digitais. Publiquei numerosos manuais escolares, de Física e Química, para todos os graus de ensino, na Texto Editora. Na Fundação Francisco Manuel dos Santos, dirigi o programa de conhecimento. Ajudei a fundar em 2013 uma startup, a Coimbra Genomics, no Biocant, Cantanhede, apercebendo-me do caminho que ainda falta percorrer para aliar a ciência à economia.

Aposentei-me em 2021, para dar o meu lugar aos mais novos e ter mais tempo para desafios da sociedade. Infelizmente, não vejo que os jovens estejam a beneficiar das oportunidades semelhantes às que tive. A ciência, embora tendo crescido muito desde 1974, conheceu períodos de retrocesso, designadamente após a intervenção da troika. Hoje, a ciência portuguesa podia e devia estar melhor. O seu desenvolvimento é uma das marcas de Abril. Continuar esse caminho é cumprir uma das esperanças que se abriram há 50 anos.

50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL

Meu artigo no último JL:

O 25 de Abril de 1974 fez florescer a ciência em Portugal. De facto, o Estado Novo não foi «amigo» da ciência, como mostra não apenas o reduzido investimento nessa área, mas também o afastamento de numerosos cientistas pela sua oposição ao regime. A moderna indústria baseia-se na ciência, mas António de Oliveira Salazar ansiava que Portugal fosse «o magnífico pomar e a esplêndida horta da Europa» e defendia que «se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à indústria». Não admira, por isso, que a nossa industrialização tenha sido tardia: só em 1963, depois dos outros países industriais europeus, o valor do produto industrial ultrapassou o da agricultura. Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, afirmou em 1969: «A ciência e a técnica (…) são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvidos». Quanto muito, a investigação teria relevância no «Ultramar», onde haveria que explorar os recursos locais, conforme defendeu Marcello Caetano, que foi ministro das Colónias.

Apesar de tudo, houve no regime deposto em 1974, alguns esforços em prol da ciência, mais da aplicada do que da fundamental. Assim, por exemplo, em 1946, foi inaugurado o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e, em 1961, foi inaugurado o Laboratório de Física e Engenharia Nucleares, em Sacavém, prevendo-se a construção de centrais nucleares, que nunca se concretizaram. Na medicina, área na qual houve incrivelmente em 1949 um solitário Nobel português nas ciências (o neurologista António Egas Moniz), o Estado procurava acompanhar os grandes progressos que se desenrolaram ao longo do século XX.

Um forte condicionante do desenvolvimento da ciência era o défice de educação. De facto, a educação era apenas acessível a uma reduzida fatia da população. Este estado de coisas só começou a mudar significativamente no início dos anos de 1970 com a reforma  do ministro da Educação José Veiga Simão, o professor de Física da Universidade de Coimbra que tinha sido o primeiro Reitor da Universidade de Lourenço Marques. Ele pugnou pela democratização do ensino, incluindo o superior.

Mas Abril foi uma explosão, não só com a criação de um clima de liberdade, indispensável à criação intelectual (em particular nas ciências sociais e humanas), mas também pelo alargamento da escolaridade (o ensino superior aumentou com a criação de novas escolas) e pelo maior investimento na investigação. Este último foi particularmente impulsionado pela entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, antecessora da actual União Europeia, em 1986, quando Mário Soares era primeiro-ministro. Parte dos fundos europeus foi aproveitada para formação de pessoas e criação de infraestruturas científicas e técnicas. 

Um ano decisivo foi o de 1995, quando foi criado, no primeiro governo de António Guterres, o Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta atribuída a José Mariano Gago, professor de Física da Universidade Técnica de Lisboa. Mariano Gago, que foi ministro em dois governos de Guterres e dois de José Sócrates (nestes, juntando o Ensino Superior), foi, sem dúvida, a figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos. Ele pôs em prática com sucesso um plano de modernização e internacionalização da ciência portuguesa, anunciado no seu Manifesto para a Ciência em Portugal (Gradiva, 1990). 

Criou em 1996 a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), herdeira de organismos como a Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica (JNICT) e o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), que tem apoiado a formação académica, projectos de investigação e laboratórios. Montou um sistema de ciência e tecnologia, com uma rede de centros de investigação em todas as áreas, não esquecendo a cultura científica (criou a Agência Ciência Viva, ultimamente muito apagada). Em 2000 surgiram os primeiros Laboratórios Associados. Portugal, que tinha entrado para a Organização Europeia de Investigação Nuclear (CERN) em 1985, entrou para a Agência Espacial Europeia (ESA) em 2000 e para o Observatório Europeu do Sul (ESO) em 2001. No lado privado, juntando-se à Fundação Gulbenkian, que desde 1961 detinha o Instituto Gulbenkian de Ciência, um laboratório de biomedicina, apareceu em 2004 a Fundação Champalimaud, na mesma área.

Para verificar a transformação que o país realizou na ciência, basta olhar para a PORDATA e ver que, em 2022 (último ano para o qual há dados), havia quase 60 000 investigadores, ao passo que em 1982 (quando acabou o Conselho da Revolução) não chegavam a 5000, um aumento de mais de dez vezes. Medidas inequívocas de produtividade científica são a formação de novos doutores, a publicação de artigos científicos e o registo de patentes. Em 2022 foram concluídos 2317 doutoramentos: nos 40 anos entre 1982 e 2022 o número de novos doutorados aumentou quase 20 vezes. Destaco o facto de hoje haver mais graus de mulheres do que de homens, reflectindo a ascensão social das mulheres que Abril proporcionou. Se em 1982 os investigadores em Portugal publicaram 388 artigos, em 2022 publicaram 30 078, quase 80 vezes mais. Nas patentes houve um crescimento: se, no início dos anos de 1980, não havia pedidos na Via Europeia, em 2022 foram 312, das quais foram concedidas 67. Tal crescimento só foi possível graças a um crescimento da escolaridade da população e, claro, a um grande salto no financiamento. Em 1982 só se investiu na ciência 0,3% do PIB (dos quais 0,1% do lado das empresas), mas em 2022 o valor já foi de 1,7% (dos quais 1,1% do lado das empresas), quase seis vezes mais.

Abril proporcionou, portanto, um big bang da ciência em Portugal. Mas não nos podemos impressionar pelo crescimento relativamente ao passado (estávamos muito atrasados!), antes devendo ver os números portugueses à luz de comparações internacionais, em particular a europeia. O referido investimento de 1,7% está aquém da média europeia de 2,2% (a Bélgica, a Suécia, a Áustria, a Alemanha e a Dinamarca lideram, com índices acima dos 3%). Mas há pior: os fundos do Orçamento de Estado para a ciência são só cerca de 0,4% do PIB, um número comparável com o do início dos anos 1990, em nítido contraste com a média europeia de 0,7%. No número de investigadores comparamos bem com a média europeia, se dividirmos pelo número de pessoas activas, estando, na participação feminina, bem acima da média europeia. No número de novos doutores, apesar do esforço realizado, estamos abaixo dessa média. No número total de doutores de pessoas em idade activa (18 aos 24 anos) ainda estamos abaixo da média europeia (não há, portanto, doutores a mais!). E, no número de artigos por habitante, conseguimos estar um pouco acima da média europeia, o que já não acontece se considerarmos os artigos que estão no top 10% dos mais citados, índice em que estamos um pouco abaixo: mesmo assim, estes dados mostram que os investigadores em Portugal conseguem fazer omeletes com poucos ovos. Onde a porca torce o rabo nas comparações internacionais é nas patentes: a nossa posição ainda é na cauda da Europa. E o mesmo se aplica a outros índices que traduzem o impacto da ciência na economia, como o capital de risco aplicado relativamente ao PIB e a exportação e produtos de alta tecnologia relativa ao total de exportações. O Global Innovation Index de 2021, que aglomera vários índices de inovação, dá a Portugal o 31.º lugar no mundo, que corresponde ao 18.º lugar da União Europeia. Há muito caminho para percorrer.

A ciência, embora tendo crescido bastante desde 1974, conheceu períodos de retrocesso, designadamente na última década (a intervenção da troika em 2011 foi um duro golpe do qual tem custado recuperar). Gostaria de dizer que a ciência portuguesa está bem e se recomenda, mas só posso dizer que se recomenda. Não está bem: podia e devia estar melhor. Não é só a ligação às empresas que tem de melhorar (não descurando evidentemente a ciência fundamental), é também a ligação ao ensino superior, que está subfinanciado, designadamente através da contratação de doutores, que têm vivido em situação precária, vendo-se alguns obrigados a emigrar, e o reforço dos Laboratórios de Estado, que têm sido preteridos em favor dos Laboratórios Associados. O desenvolvimento da ciência é uma das marcas maiores de Abril. Continuar esse caminho é cumprir uma das esperanças que se abriram há 50 anos.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

A ARTE DE INSISTIR

Quando se pensa nisso o tempo todo,
alguma descoberta se consegue.
Que uma ideia venha ao engodo
e o espírito desassossegue,

nela se concentrando, sem parar,
e talvez um dia se faça luz,
permitindo, enfim, iluminar
um mistério debaixo de um capuz.

Uma ou duas ideias, numa vida,
desde que sejam ideias das boas,
valem bem uma vida investida

numa ideia que, certeira, arpoa!
Mesmo não acertando, insistir
é o melhor modo de conseguir.
                                                                Eugénio Lisboa
O grande físico Isaac Newton, tendo-se-lhe perguntado como se descobre a lei da gravitação, respondeu: “Pensando nisso o tempo todo.”

25 de ABRIL SEMPRE, DE MANUEL FONSECA, COM BONECOS DE NUNO SARAIVA


 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

DIREITOS E DEVER(ES)

Texto gentilmente oferecido por Carlos Fernandes Maia, professor de Ética.
 
O tema dos direitos e deveres desperta uma série de interrogações quanto ao alcance ou delimitação das perspetivas a encarar. 
 
Desde o que podemos ou somos obrigados a fazer até à comparação histórica, sociológica ou ontogenética, passando pela associação a regimes políticos ou mesmo ao âmbito ético-moral, os direitos e os deveres têm formulação objetiva antiquíssima, como a presente no código de Hamurabi ou nos mandamentos moisaicos.

Nota-se nessas proclamações uma dominância dos deveres sobre os direitos, ao contrário das formulações atuais, que se perspetivam mais como garantia de direitos
 
Há dois reparos, no entanto, que merecem ser feitos: em nenhuma das proclamações, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, até às mais recentes se dá como adquirido o que é outorgado.

A declaração é nitidamente um ideal a que se procura vincular a crença e a prática dos homens numa perspetiva de dignificação da singularidade e da comunidade. Se essa crença e essa prática fossem efetivas, a declaração era redundante. Disto é bem exemplo o primeiro período do artigo primeiro da declaração pós-revolução francesa: «os homens nascem e são livres e iguais em direitos». 
 
O outro reparo tem a ver com o risco de sectarismo que uma boa intenção e profunda necessidade podem conter aquando de uma declaração de direitos. No mesmo caso da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o segundo período é deveras problemático: «as distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum». Primeiro, porque as distinções não devem ser sociais, mas operacionais; e, segundo, porque a ‘utilidade comum’ permite os regimes corporativos e sociocráticos ou mesmo ditatoriais, nega a dignidade primordial da pessoa e obstaculiza a iniciativa individual na construção do bem comum. Mas o próprio título, ao distinguir homem e cidadão, é sectário, na medida em que com o termo cidadão se quer selecionar a dimensão laica do homem, o que implica, a contrario, a desvalorização dos crentes.

A abordagem dos deveres suscita hoje uma recusa primária por associação direta com a sujeição a ordens ou interesses de outrem e, por isso, com a falta de liberdade ou mesmo ofensa à dignidade da pessoa.

Historicamente, o acontecimento marcante dessa nova perspetiva foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – possível de se ver na sequência da Declaração de Direitos de 1689 ou até da Magna Carta, de 1215 – saída da revolução francesa. Na prática, seguiu-se o regime de terror, em que ninguém tinha garantida sequer a ligação da cabeça ao tronco.

Mas, recuando vinte e seis séculos, podemos constatar que nos atenienses se inverteu a relação entre direitos e deveres aquando da invasão persa: antes, o cidadão usufruía de direitos conforme o que fazia e pelo bem da polis; depois, se os invasores se consideravam senhores de direitos, os atenienses passaram para eles o dever de cuidar do bem público e exigiram direitos para si.

É bem conhecida a posição de Kant, segundo a qual as coisas têm preço e só o homem tem dignidade. O tema dos direitos e dos deveres pode ser reduzido, em termos práticos e de fundamentação, a esta perspetiva. Ou seja: a exigência de direitos e a imposição de deveres tanto remetem para a justificação do que o homem faz ou evita, como manifesta o grau de dignidade atingido.

É nesta perspetiva que o título tem o termo dever no singular e no plural
 
Com o plural identificam-se não só as práticas operativas de responsabilização quanto aos outros – e aos direitos destes – como o respeito pela normativa moral atitudinalmente bondosa. Com o singular afirma-se o dever de ser homem e fundamenta-se o cumprimento dos deveres parciais quanto ao próprio e quanto ao contributo para a satisfação dos direitos dos outros.

Não tem, portanto, sentido, considerar o homem como um sujeito de direitos sem mais. Esta perspetiva existencialista foi importante para superar uma visão essencialista apoiada na religião e na monarquia absoluta – ou nas ditaduras modernas –, mas não é exequível por si mesma. E a confirmá-lo está a infeliz afirmação do existencialista ateu Sartre, segundo o qual ‘o inferno são os outros’. A afirmação só teria sentido sob a forma de lamento quanto à impossibilidade – por deficiência, circunstância ou falha de vontade – de muitos homens conseguirem afirmar a sua dignidade no saber, na solidariedade, no aperfeiçoamento ético, etc.

De facto, como reconhece Santabárbara (2019, 47), o que a experiência nos mostra é desigualdades não provocadas intencionalmente, contingências determinantes, barreiras intransponíveis, etc. De modo que os outros, agindo consciente e voluntariamente na procura do aperfeiçoamento, isto é, com liberdade e responsabilidade, são antes um apoio na construção da humanidade – de que cada um participa e de cuja qualidade beneficia.

Associar a dignidade do homem à igualdade de direitos pode exigir que se fundamente essa dignidade. O autor citado remete para uma fonte transcendente – uma divindade – a mesma que fundamenta a igualdade entre os homens baseada na criação idêntica ou mesmo na filiação divina. 
 
Todas as fundamentações filosófico-ontológicas têm tendência para se refugiarem no absoluto, por natureza exterior ao homem. Isso representa a submissão a uma visão pessimista do ser humano, apoiada com a razão na fenomenologia da violência, da prepotência, do crime, etc. Mas o facto de pessoas ‘bem colocadas na vida’ se disporem a legislar sobre direitos dos mais desfavorecidos é um sinal evidente do sentido de dignificação humana. Se ainda hoje a humanidade sobrevive e até melhora as condições de vida e as exigências éticas – apesar das ameaças por culpa própria direta ou indireta – é porque há uma grande maioria a cumprir os seus deveres operacionais e circunstanciais e o seu dever de ser pessoa inteligente e aberta: inteligente porque adaptada às situações diversas e aberta porque quer aperfeiçoar-se.

O mais que uma fundamentação transcendente poderia justificar é o que se pode chamar dignidade constituída, ou seja, aquela a que se refere Kant, isto é, que cada homem, por ser homem, deve ser tomado como fim e não como simples meio. 
 
Mas… – e aqui poderiam aparecer muitos ‘mas’ – é muito difícil reconhecer dignidade a um ditador sanguinário, a um assassino em série, a um governante corrupto – como até a qualquer profissional sem escrúpulos quanto aos direitos dos usuários. E, ao invés, admiramos quem cuida e promove o aperfeiçoamento pessoal e coletivo. A esta orientação mais ou menos esforçada e bondosa chamaríamos dignidade constituinte. E foi esta que justificou a outorga de direitos aos que são menos dotados, bafejados pela sorte ou capazes de reivindicações.

Não se nega de forma alguma o papel das lutas sociais e pessoais de reivindicação de direitos. Mas assim como não é justificável que, depois de adquiridos, não tenham como correspondência o dever pessoal e social de melhoria, no que depende dos ‘beneficiados’, também qualquer direito atribuído não poderá ser objetivamente satisfeito se não houver quem cumpra o dever correspondente. 
 
Referência: Santabárbara, Luis G-.C. (2019). Entre la utopia y la realidad. Santander: Sal Terrae.
 
Carlos Fernandes Maia
[O texto tem continuação] 

segunda-feira, 15 de abril de 2024

OS HABITANTES DA ESCURIDÃO

Os canalhas não gostam do ar puro,
por isso gostam sempre de o sujar.
Buscam o escuso e o escuro.
para aí poderem chapinhar.

As suas mordidelas são medalhas,
ao peito dos a quem eles perseguem.
Não são vistos em esbeltas batalhas,
não havendo honra que não reneguem.

Quem vive no escuro, escuro fica
e toda a claridade lhe faz ferida!
E quem, da claridade, cedo abdica

verá que a sua vida é avenida
que o leva a seguro inferno,
onde nada mais há do que inverno.
                                                                    Eugénio Lisboa

A ALMEDINA CELEBRA O 25 DE ABRIL COM TRÊS CONVERSAS EM COIMBRA


 As Conversas Almedina são uma iniciativa de difusão cultural, organizada por Carlos Fiolhais, na Livraria Almedina Estádio de Coimbra, desde há mais de um ano. Por lá têm passado, em sessões informais, numerosas figuras nacionais como Lídia Jorge, João Luís Barreto Guimarães, Maria de Lurdes Rodrigues, David Justino, Álvaro Garrido, Manuel Antunes, José Jorge Letria, Carlos Vaz Marques, José António Saraiva, José Gardezaabal, Maria do Rosário Pedreira, Luís Quintais, etc.

Na semana que antecede o 25 de Abril haverá três apresentações em dias sucessivos, que servirão para celebrar aquela data:

1-  A 17 de Abril, 18 horas, o escritor Miguel Real, que verá o seu romance O Último Minuto na Vida de José Saramago ser apresentado por António José Borges, fará um panorama do romance pos-25 de Abril, onde obviamente entra Saramago.

2- A 18 de Abril, o editor Manuel Fonseca, da Guerra & Paz, verá o seu livro 25 de Abril. No Início Era o Verbo, em coautoria com o desenhador Nuno Saraiva,  ser apresentado por Carlos Fiolhais; o livro regista as frases do 25 de Abril, incluindo algumas de humor anarquista.

3- A 19 de Abril, o historiador francês Yves Léonard verá o seu livro Breve História do 25 de Abril ser apresentado por Cristina Robalo Cordeiro e por Carlos Fiolhais; a obra é um resumo por um observador independente da mudança que ocorreu em Portugal há 50 anos.

Combinando a literatura, a arte,  a história e a política, a Revolução Portuguesa  será assinalada na maior livraria da editora sedeada em Coimbra.

Convidam-se todos os interessados: a entrada é livre, havendo oportunidade de diálogo com os autores e apresentadores, para além de autógrafos das obras em causa

Para mais informações sobre estes eventos contactar a editora ( Bruno Mano <bmano@grupoalmedina.net> ) ou o organizador  (<cfiolhais@gmail.com>).

Manuel Alegre, e as suas (e nossas) memórias

Por João Boavida 
 
Em três dias li as quatrocentas páginas deste livro de Manuel Alegre, tal é o interesse que despertam. Não é propriamente uma autobiografia, mas um livro de memórias que acompanha a sua vida, para trás, até onde a sua lembrança é capaz de recuar, e por onde passam antepassados, de que ouviu falar, vítimas do absolutismo, gente descendente de outros com memórias ainda das Lutas liberais, ou participação nelas, republicanos, monárquicos, uns aristocratas, outros plebeus, outros nem uma coisa nem outra.

O que talvez explique nele essa mistura, hoje difícil de entender por muitos, da liberdade e intervenção política de esquerda com patriotismo e orgulho pela história de Portugal e sua epopeia. É por isso quase uma biografia de um certo Portugal que lutou contra o Estado Novo, mas através da visão lírica sofrida de um poeta interventivo, com gosto pela peripécia aventurosa e simultaneamente com propensão para a evocação sentimental da nossa história e da sua lírica inigualável.

Há uma linha temporal que vai estruturando a evocação, um filme dos acontecimentos por ele vividos e relatados à luz duma perspetiva pessoal, frequentemente poética, mas entretecidos com acontecimentos políticos, uns maiores, outros menores, de cuja amplitude temos agora a noção verdadeira mas que não se tinha no tempo em que foram vividos. Voltamos a sentir o Portugal dos últimos anos do salazarismo, vividos entre o desânimo de que a asfixia política nunca mais acabaria e a esperança de que um dia havia de ser. 
 
E as memórias de Manuel Alegre são uma imagem quase perfeita dessa oscilação entre altos e baixos, entre sombra e luz, esse itinerário tortuoso e difícil em que o País foi tomando consciência da sua situação política e social, até à libertação de 74. É pois uma longa evocação com muito de lírico, e o seu tanto de dramático, mas por onde passa o Portugal que conhecemos, meio visível, meio invisível desde os anos cinquenta do século passado até hoje.

Sobre a sequência mais ou menos linear dos acontecimentos, mas com recuos e desvios frequentes para evocações preferenciais, há uma linha, uma estrutura de base onde vão sendo inseridos, através de pequenos capítulos, com título e tudo, memórias particulares de pessoas, reuniões, debates, fugas, projetos, conspirações, disputas, leituras, através das quais os acontecimentos em Portugal e fora dele vão evoluindo.

É uma espécie de lançadeira que entra e sai, em que os acontecimentos vão sendo evocados, às vezes repetindo-se, numa sequência que é simultaneamente temporal e sentimental, e que têm, por isso, a dupla missão de falar do poeta, da sua vida e, a partir do que vai evocando, acabar por contar grande parte da história recente de Portugal. É por isso também um roteiro sentimental, em que se sente o seu afeto pelo país e por aquilo a que se costuma chamar de portugalidade, O livro tem ainda, para todos os que viveram por esse tempos, ou depois, em Coimbra, um interesse particular. Manuel Alegre dá, da vida estudantil coimbrã, dessas duas ou três décadas, uma ideia viva e rica, que é ocultada por todos os que, vindos depois, e de fora, gostam de realçar o conservadorismo da academia.

Coimbra tinha (com tem ainda) um poder encantatório que a todos envolvia, e uma grande dinâmica cultural, e mesmo política, embora esta em registos mais restritos. Tertúlias, representações teatrais, reuniões, conferências, ciclos de teatro e cinema, jogos de futebol, assembleias magnas, lutas e lutos académicos constituíam um caso único em Portugal, até pela concentração geográfica e estudantil que multiplicava os seus efeitos.

Sobre este ponto de vista Manuel Alegre está muito bem posicionado, porque teve a sorte de encontrar em Coimbra alguns grandes cantores e guitarristas das últimas gerações, como António Portugal e António Brojo, colaborar na renovação da música ligeira de Portugal, que saiu do fado de Coimbra através da inspiração de José Afonso e depois Adriano Correia de Oliveira e de outros, e que depois foi dominante no período pós revolucionário. E é a ele que, quer se queira quer não, se ficou a dever alguma da poesia mais interventiva e dinamizadora contra a ditadura e a guerra colonial. Como todos sabem, de alguns dos seus poemas se fizeram entusiasmados cânticos de luta e de liberdade.

Dir-se-á, ao ler estas memórias, que acentuam a ideia de um certo romantismo fora de época, mas que se coaduna bem não só com Coimbra e o seu tempo, mas que vai muito para além disso, porque se inscreve numa tradição poética e aventurosa, à moda de Camões, e de luta política e também vida poética, à moda de um Garrett, por exemplo. Sente-se-lhe a vontade de ser inserido nessa tradição, mas não se vê razão para o não fazer, porque a vida dele tem essas diversas dimensões.

A vida de militar no norte de Angola, o desterro nos Açores, a fuga à prisão, o exílio em Argel, a “Voz da Liberdade”, as conspirações, os tempos de Paris e, por fim, o 25 de Abril, constituem um itinerário invejável e de que muitos outros gostariam de se orgulhar. E mesmo as suas atividades políticas posteriores – como as candidaturas à Presidência da República - devem ser vistas como uma necessidade de intervenção, talvez até de protagonismo, não só político mas ainda literário (Teixeira Gomes, Teófilo Braga) e sempre, tudo o indica, com algumas linhas de estruturação moral e cívica que são de assinalar porque não se encontram em todos.

Há ainda outros aspetos muito interessantes relativos aos acontecimentos pós 25 de Abril, ao chamado Verão Quente, e ao 25 de Novembro, que alguns agora tentam apagar, esquecidos que há muitos que ainda disso se lembram muito bem. Manuel Alegre, sem pretender fazer uma história dos acontecimentos, dá-nos uma visão das forças em jogo e da seriedade e gravidade do que se viveu. E de como ficamos a dever a alguns a liberdade de que hoje podemos usufruir.

Nem todos gostam dele, os mais retrógrados e politicamente saudosistas, verão sempre nele o desertor, outros o militante comunista que se desvinculou do PCP. Ora, sabemos como nem uns nem outros esquecem, e muito menos perdoam coisas destas, por muito justificadas e forçadas pelas circunstâncias que tenham sido. Mas a história é feita também pelos outros, e os acontecimentos não desaparecem só porque alguns os rejeitam ou não os sabem acompanhar. E como a poesia de Manuel Alegre é daquelas que dá gosto ler, e nos diz muito, e não das que, como dizia Eugénio Lisboa, têm como supremo ideal o não dizerem nada, é bom saber o muito que está por detrás dela e a motivou.
João Boavida

"Um professor é um professor..."

Apontamento na sequência do comentário de um leitor sobre o que é ser professor e sobre o que o professor faz num momento (mais um) em que a sua identidade se vê distorcida e a sua função se vê dispensada. 
 
O autor do texto abaixo é Jorge Larrosa, licenciado em Pedagogia e Filosofia, doutorado em Pedagogia e professor de Filosofia da Educação na Universidade de Barcelona. No livro, ainda recente, Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício do professor insiste na ideia de que o professor ensina e o ensino é uma tarefa artesanal. Vale a pena lê-lo pelas razões que um outro professor de Educação aqui explica.
 
Um professor não é um guru...
Um professor não é um iniciador...
Um professor não é um mediador...
Um professor não é um autor...
Um professor não é um treinador...
Um professor não é um produtor...
Um professor não é um gestor...
Um professor não é um prestador de serviços...
Um professor não é um pai (nem uma mãe)...
Um professor não é um companheiro...
Um professor não é um amigo...
Um professor não é um líder...
Um professor não é um ativista...
Um professor não é um conselheiro espiritual...
Um professor não é um conselheiro emocional...
Um professor não é um sedutor...
Um professor não é um motorista...
Um professor não é um guia...
Um professor não é um comunicador...
Um professor não é um moderador...  

Um professor é um professor...

Jorge Larrosa, 2019, p. 329

sábado, 13 de abril de 2024

À GUISA DE INTRODUÇÃO

Por A. Galopim de Carvalho

Se tivesse que escolher uma actividade extraprofissional, a condizer com a minha maneira de ser e estar na sociedade, relativamente ao conhecimento, seja o científico, em que fui profissional a tempo inteiro, seja qualquer outro, do erudito ao mais iletrado, escolhia, sem a menor hesitação, “divulgar”, elocução que, só muito depois de a praticar, aprendi que radica no latim divulgare, cujo significado é espalhar entre o vulgo, ou seja, entre o povo.
 
Começo por dizer que o meu interesse por saber coisas começou cedo, em criança, não na escola, que recordo como um lugar e um tempo de aflição e de algum sofrimento, mas sim, na rua e em tudo o que nela se passava, em todas as lojas, oficinas e artesanias de portas abertas e, também, nos campos agrícolas, em redor da cidade. Associado a este que se tornou num prazer, surgiu, mais tarde, o gosto de partilhar com os outros os saberes que ia adquirindo. 
 
Nasceu assim este meu pendor pela divulgação de saberes, um gosto, quase um vício, que me acompanhou ao longo da vida. Com o tempo, fui descobrindo ou criando formas de comunicação acessíveis ao público a que me dirigia, fazendo uso de uma linguagem falada, e escrita simples, sem perda de rigor, apelativa e agradável. Devo dizer que, em minha arreigada convicção, receber e facultar conhecimento são actos de prazer, mas também de cidadania.

Sem me ter dado conta de que o estava a fazer, iniciei praticar divulgação de conhecimentos durante a adolescência, no mundo rural, um mundo que conheci razoavelmente bem como praticante, activo e interessado, de um campismo selvagem nos campos do Alentejo, o longo dos anos de 1940. Foi no convívio com os camponeses que, em trocas de saberes, surgiu e se consolidou este meu interesse por partilhar muitos dos meus então pouco consolidados saberes. 
 
Algumas noções de Ciências Naturais, que aprendia no Liceu, eram tema das nossas conversas. Eu procurava ensinar-lhes as diferenças entre angiospérmicas e gimnospérmicas ou entre monocotiledóneas e dicotiledóneas, tal como vinha no meu livro de Ciências, mas eles sabiam-no e diziam-no por outras palavras, além de que davam nomes a todas as ervas, arbustos e árvores do seu pequeno-grande mundo. Com eles aprendi a distinguir os cogumelos venenosos dos comestíveis e a conhecer os pássaros pelos seus modos de piar e de cantar. 
 
Mais do que na escola, aprendi com eles os ritmos fisiológicos das plantas e animais, determinados pela sazonalidade, e a relacioná-los com as práticas agrícolas das diferentes estações do ano. Eu descrevia-lhes a fermentação e eles abriram-me os sentidos ao odor e ao calor exalados pelos montes de estrume. Falava-lhes da composição do ar e do papel do oxigénio na combustão e na vida dos animais e eles levavam-me a ver os fornos de carvão e a conhecer-lhes o cheiro característico. Foi no contacto com os camponeses que vi, na prática, a transformação da rocha em solo. A terra solta, as raízes que se lhe arrancavam, os restos das folhas mortas, apodrecidas, e a microfauna desse admirável e complexo ecossistema, estavam ao dispor de quem quisesse observá-lo, cheirá-lo, esfregá-lo entre os dedos e sentir e ver os grãos de areia e o pó fino, barrento, associado. Do pó da terra e da lama, ao barro e à argila ia um passo e, com mais outro, chegávamos à cerâmica das telhas, tijolos e loiça rústica, vermelha que ainda se usava. Falar de penicilina, das milagrosas qualidades germicidas deste então novíssimo antibiótico, explicando o significado deste e de outros termos do indecifrável jargão da classe médica, era o resultado de uma conversa a propósito do bolor do pão, de todos conhecido. 
 
Com esta convivência, interiorizei uma saudável ruralidade que sempre me acompanhou, ao longo da vida, e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico, no qual me movimentei durante cerca de quarenta anos. Com eles, sobretudo com eles, adquiri uma consciência social e política impossível de obter na escola e no dia-a-dia de uma cidade dominada, vigiada e censurada pelo regime político de então.
 
Anos mais tarde, na primeira metade dos anos de 1950, repeti esta experiência com os soldados do meu pelotão de instrução, em Artilharia 3, em Évora, a minha cidade. Com estes ainda adolescentes, a quem tinha de dar instrução militar, foram muitas as oportunidades em que, em vez de lhes falar de canhões, munições, espingardas, e outras noções próprias da guerra, partilhei conceitos simples de ciência que iam ao encontro das suas profissões na vida civil. A propósito do que quer que fosse, havia sempre uma noção de química ou de física a explorar. Falei-lhe de sexualidade tema de que apenas conheciam a obscenidade e o palavrão. Entre letrados com apenas a instrução primária e analfabetos, rapazes da cidade e do campo, os recrutas eram esponjas de ouvidos e olhos escancarados. 
 
Durante quatro décadas na Universidade de Lisboa (entre 1961 e 2001, na Faculdade de Ciências, e entre 1965 e 1981, na Faculdade de Letras, em Geografia), mantive estreita ligação com as escolas, quer como orientador dos estágios exigidos nas licenciaturas do ramo educacional, quer a seu convite, do pré-primário ao secundário, divulgando conhecimentos, adequados aos respectivos níveis de escolaridade, em torno de temas das Ciências da Terra, falados no mesmo tom e estilo, simples mas rigoroso e sempre alegre, que usei nas muitas palestras que fui fazendo em sociedades recreativas, centros culturais, bibliotecas municipais e outros estabelecimentos. Aconteceu que, num passa-palavra entre os professores, no caso das escolas, e entre outros interessados, fez com que me chegassem convites de todo o lado e a todo o tempo. 
 
Foi assim que me desdobrei em dezenas e dezenas de acções este tipo. Era e é do conhecimento geral que não cobrava nem cobro honorários e que apenas precisava e preciso de ter o transporte assegurado. Esta actividade de palestrante foi-se intensificado com o passar do tempo, tendo-se alargado a todo o território, quer no continente quer nas ilhas. A par destas conversas, lições ou palestras como se lhes quiser chamar, aceitei, com o mesmo empenho, a mesma simplicidade e a mesma alegria, os convites que me chegaram de quase todas as Universidades nacionais. Divulgar conhecimento científico ou qualquer outro entre os meus concidadãos de todas as idades e das mais variadas condições sócioculturais, foi a melhor forma que encontrei para concretizar a minha maneira de estar, ao mesmo tempo, na Ciência e na Sociedade.

“Velhos são os trapos” diz muito boa gente, preferindo usar o termo idoso que, assim, se generalizou. Mas pior do que ser velho ou idoso é ser pensionista contra vontade, como no meu caso, estupidamente afastado do serviço activo e colocado na “prateleira” por imposição do “limite de idade”. Foi o que me aconteceu. Ser descartado é um sentimento que magoa os velhos, em especial aqueles a quem a Natureza, embora os tenha diminuído fisicamente, deixou intacta a lucidez. Velhos que gostam de ser tratados, não pelos muitos anos que a tradição rotula de velhos, mas pelo que conservam de vigor, energia e entusiasmo.

Divulgar a ciência que cultivei como geólogo e professor de geologia, e tudo o mais que aprendi como curioso de muitas “artes”, foi a opção que tomei no sentido de tornar útil e agradável o meu tempo de pensionista. Desde então que reparto as horas a meu belo prazer, e dele fazem parte, entre outras ocupações, transmitir, pela palavra escrita e falada, o que a vida em sociedade e a profissão me ensinaram, a par de uma intervenção cívica que entendo dever ter como cidadão atento que nunca deixei de ser. Os vinte e dois anos de aposentação permitiram-me ler, com o empenho de quem estuda, temas que a absorvência da vida profissional sempre colocou fora do alcance da minha mão. Assim, “embalado” no ofício de professor, de estudar para ensinar, dei por mim a escrever sobre temas de arte, história, filosofia e outros e, ainda, sobre tudo o que a vida me ensinou.

Os textos que, com propósitos científicos e pedagógicos, de há muito venho divulgando, em livros e em textos avulsos nas redes sociais, têm como destinatários preferenciais os professores que, nas nossas escolas básicas e secundárias, se debatem com falta de elementos que complementem os tradicionais e repetidamente estereotipados manuais de ensino. Visam, ainda, o cidadão comum, interessado em conhecer o chão que pisa e lhe dá o pão. Continuo a escrever muitas horas por dia, indiferente a sábados, domingos, períodos de férias ou dias feriados. Isto porque os reformados estão sempre em férias e porque as férias servem para se fazer aquilo de que se gosta. A verdade é que, quando estou frente ao monitor, seguindo as palavras que, letra a letra, os dois indicadores vão dedilhando, num esforço de acompanhar e não deixar perder as ideias que fluem velozes, a verdade é que, dizia eu, não tenho idade nem as mazelas próprias dos gerontes. E, assim, o tempo se foi transformando em palavras sem que o tivesse visto passar.

Não sei quantos anos mais poderei desfrutar desta bela condição de poder sentir a vida. Serão certamente muito poucos, mas isso não me incomoda. Estou perfeitamente consciente das limitações físicas que os anos me impuseram, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo. Já o disse várias vezes e volto a dizer que conservo comigo a criança irrequieta, curiosa de tudo e alegre que fui, o adolescente, inconformado, contestatário, audacioso e irreverente, próprio desses anos. Conservo também o adulto na força da vida, lutador que não dá tréguas e o velho que, a tudo isso, acrescenta a sabedoria, a paciência, a ponderação e a tolerância que os muitos anos ensinaram.

Quando, em 1977, o saudoso Prof. Rocha Trindade me convidou para integrar o grupo de professores do igualmente saudoso Ano Propedêutico, confrontei-me com a necessidade de escrever, semana a semana, capítulo a capítulo, os textos de apoio (os ap) que marcaram uma geração de portugueses agora a raiarem os 60 anos. Foi uma magnífica e saborosa experiência. Foi mais como divulgador do que como académico, usando de toda a liberdade que o sistema consentiu, que redigi as mais de quatro centenas de páginas desses textos, um êxito editorial com muitos milhares de exemplares vendidos.

Nos 20 anos que exerci funções de direcção no Museu Nacional de História Natural (1983 a 2003), o meu gosto e empenho em divulgar conhecimento teve plena realização nas muitas exposições que ali tiveram lugar, com destaque para as organizadas em torno do tema dinossáurios. Devo dizer que, no conjunto com os funcionários deste Museu, todos nós sem qualquer formação teórica na área da museologia e aprendendo uns com os outros, concebemos e realizámos, entre elas, “Dinossáurios Regressam em Lisboa”, em 1992, uma das mais espectaculares e concorridas exposições de que temos memória em Portugal, com mais de 360 000 visitantes em apenas onze semanas.

A “Feira de Minerais Gemas e Fósseis”, Museu Nacional de História Natural, Iniciada em 1989, completou este ano de 2023, a sua 36ª edição. Também nelas me envolvi empenhadamente, usando-as como uma esplêndida via para divulgar conhecimentos em domínios da mineralogia e da paleontologia. A aceitação do público, das crianças aos adultos foi, desde a primeira, muito grande, testemunhada todos os anos por milhares de visitantes, tendo-se alargado ao Porto e a Coimbra, com regularidade anual, e a outras cidades com realizações esporádicas.

O gosto pessoal que sempre tive pela divulgação, actividade que sinto como uma forma feliz de conviver e confraternizar com gente de todas as idades e condições sócioculturais, fez com que. nos vinte e dois anos que se seguiram à minha jubilação, intensificasse a escrita, quer em livros (uma vintena) quer em textos avulsos (alguns milhares) nas redes sociais, a par da de conferencista que trazia da chamada “vida activa”. A pandemia, que nos últimos tempos nos atingiu, levou-me a recorrer à modalidade de videoconferências via “zoom”, prática que continuo a utilizar nos casos em que os convites me chegam de localidades suficientemente afastadas da minha residência.

Mesmo antes da jubilação acontecia muitas vezes acordar a meio da noite a pensar neste ou naquele problema de entre as matérias em que investigava ou ensinava. Sentia então uma irresistível vontade de me levantar, sentar-me à secretaria e trabalhar nele, ao mesmo tempo que, para lá dos vidros da janela do escritório, assistia ao clarear da manhã. Este hábito transformou-se num prazer e, respondendo ao desafio formulado por alguns dos meus mais de 33 500 leitores, de passar a livro muitos dos textos que diariamente, desde 2015, venho publicando no Facebook, eis-me a dar-lhes satisfação. “Ao Romper da Aurora” nasceu neste contexto e como resposta ao dito desafio.


ELOGIO DA TRANSMISSÃO

Sou frequentemente interpelada acerca da necessidade e, sobretudo da pertinência, de o professor transmitir informação aos seus alunos, sobretudo neste tempo em que toda (?) a informação está disponível, ao alcance dos alunos a qualquer hora e momento. Vejo confundir-se a "transmissão", que o professor faculta aos alunos, com memorização mecânica, entendendo-se que isso perturba o desenvolvimento de capacidades como a compreensão e a criatividade, a iniciativa e a autonomia. 

Não vou discutir a ideia porque Tania Alonso Sáinz, jovem professora de Ciências da Educação, mais concretamente de Teoria da Educação, da Universidade Complutense de Madrid, por certo, tão interpelada quanto eu sou, fê-lo primorosamente, num texto acabado de publicar na imprensa espanhola (aqui). 

Nota: Permito-me colocar ligações para obras e textos que menciona.

"O acto de transmissão não é simples e requer muito amor genuíno, no caso dos professores, para com os estudantes e para com o mundo. Por um lado, compreenderem que querem bem aos jovens é exigir deles, tomá-los a sério, dar-lhe mais do que aquilo que já têm. E, por outro lado, professar uma paixão pelo conhecimento, até ao ponto de o erotizar, de o fazer atractivo, ou – nas palavras de Recalcati – convertê-lo em objecto de desejo para aqueles que não o conhecem.

Numa tendência ‘MrWonderfulista’, o amor às crianças traduz-se em cuidado emocional que os proteja, no presente, de toda a frustração, no mal entendido bem-estar, comprometendo a sua capacidade para enfrentar, no futuro, frustrações. 
 
Por isso, o primeiro gesto de respeito face aos mais jovens têm a ver (…), não os enganarmos nem nos enganarmos; não há atalhos pouco cansativos para crescer e nada progride com a condescendência mas com a sã exigência de quem vê o actuar futuro dos mais jovens a partir da sua potência do presente. 
 
Como nos ensinou Hannah Arendt, o acto de transmitir é esperançoso pois supõe que alguém ama o mundo, ou um pedaço dele, o suficiente para dedicar a vida a transmiti-lo, fazendo da cultura outro nome para a esperança. Daí o importante desígnio docente de ter tempo para estudar, para preparar as aulas, para desenvolver a relação com o objecto de estudo, pois, todo o amor, perde força se não se lhes presta uma cuidadosa atenção (…).
 
São múltiplas as manifestações [da crise que se materializa na ideia de que é possível educar sem transmitir]. Na obra ‘Os deserdados´, o professor Bellamy conta-nos que um antigo inspector do Ministério da Educação francês mostrou particular entusiasmado com a ideia de libertar os jovens da penosa tarefa de receber um legado cultural, pois eles, nativos digitais, têm um melhor acesso à informação do que os seus pais e professores. Esta tendência, como se sabe, não se reduz a França nem aos políticos. Libertar os alunos da transmissão, ou de acções que com ela se relacionam, como memorizar, conhecer ou aprender sintaxe, faz parte do 'mantra' supranacional, que contrasta com a defesa a recuperação da memória histórica (sem memória) (…).

[A] crise da transmissão tem a ver com muitos factores, mas principalmente com a falta de amor ao mundo herdado que reflecte no desprestígio do saber em favor do entusiasmo pela informação à distância de um 'click'; e com o consequente esboroamento da missão da escola e dos professores, e também do que era a sua fonte mais legítima de autoridade: serem representantes da cultura e do saber. O que, há mais de um ano, ouvimos dizer à nossa ministra da Educação, que «na era da inteligência artificial» já não é preciso acumular conteúdos» é uma boa síntese da desconfiança social do poder transformador do saber no desenvolvimento da pessoa (…). 
 
Ler fluentemente e sem medo textos difíceis ou comover-se com uma peça de música clássica não deve estar reservado à elite intelectual, ou não deveria estar. Faz parte da compreensão a si mesmo, dos outros e do mundo. Saber que não se é o primeiro nem o único, que o mundo não nasceu connosco, que pertencemos – e não só participamos – numa estrutura da qual somos juízes e partes, renovadores e responsáveis. Sem transmissão abandonamos os alunos àquilo que eles trazem do berço num gesto de profunda injustiça.

Este é o argumento de Cécile Ladjali, professora de Literatura numa escola secundária de um bairro parisiense pobre, mesmo que os seus colegas lhe sugerissem que, para ser inovadora e motivadora, deveria proporcionar mais ´hip-hop´ e menos Shakespeare. Este é o mesmo grito do professor de música Alberto Royo quando, num acalorado debate televisivo, perguntava de que maneira inovadora poderia ensinar uma sonata aos seus alunos sem os enganar, isto é, não buscando
diversão mas, sobretudo, a aprendizagem para poderem passar para um outro nível de fruição.

Assim, não é de estranhar o mal-estar docente a que assistimos (…), professores obrigados a educar sem transmitir (…). Diz-se que são imprescindíveis para salvar as trajectórias dos estudantes, ainda que sejam responsabilizados pelo seu baixo rendimento. Salvadores mas culpados. Além disso, são instados, a partir dos organismos internacionais a aumentar o grau de autonomia do seu exercício e juízo profissional ao mesmo tempo que se obrigam a prestar mais contas, num 'tsunami' burocrático que os sufoca. Autónomos, mas burocratizados. Diz-se que são as pedras angulares do sistema educativo, mas espera-se que sejam facilitadores, sem intervir na construção autónoma da aprendizagem dos alunos, numa espécie de apagamento da sua função de transmissores da cultura e do saber. Pedras angulares mas prescindíveis.

A autoridade docente residia na sua tarefa clássica de transmitir. Num contexto de multiplicação de tarefas, a sua missão descentra-se, polarizando o debate entre a educação tradicional e progressista, entre inovar e conservar, entre ‘professáurios’ e ‘eduinovadores’, e entre conteúdos e competências. Discussão mentirosa porque é impossível educar, do mesmo modo que é impossível inovar no vazio, ou ser competente sem tem nada na cabeça.

Um docente que passa oito horas por dia com crianças e jovens quer que o deixem exercer a sua função, que não é a de psicólogo nem terapeuta, ainda que o seu trabalho tenha um efeito sanador. 
 
Desejemos que os professores transmitam, elogiemos a sua tarefa, permitamos, promovamos e possibilitemos, desde a política e desde a sociedade, que a sua milenária tarefa siga o seu curso."
 
Tania Alonso Sáin

Eugénio Lisboa, e para sermos justos

Por João Boavida 

Neste momento da sua morte três ideias me parece justo realçar. A primeira é a de lealdade para com os seus amigos. Admirador de José Régio desde os tempos do seu serviço militar em Portalegre, e da tertúlia à qual também pertenceu, nunca deixou de estudar e valorizar a sua obra nem correu atrás de outras quando os ventos poéticos começaram a soprar noutras direções.

Devemos-lhe uma constante atenção à obra de Régio, publicando artigos, organizando antologias, coordenando a publicação das suas obras completas, participando em congressos e, sobretudo, chamando continuamente a atenção para a variedade, a complexidade e a riqueza dessa obra. A propósito, veja-se o livro coordenado por Filipe Delfim Santos, José Régio, correspondência com Eugénio Lisboa, editado em 2016 pela Imprensa Nacional. Pelas cartas, pelo prólogo do próprio Eugénio Lisboa, pelas riquíssimas e variadíssimas notas de rodapé e o índice onomástico com suas inúmeras referências, o livro tem grande interesse para o conhecimento do Portugal literário, cultural e até político da segunda metade do século XX.

Mas não só como crítico e estudioso da obra de Régio que Eugénio Lisboa nos deve interessar. As suas memórias - Acta est fabula (Lisboa, Opera Omnia) em cinco volumes - é um belíssimo “filme” da sua vida, sempre com a realidade cultural, social e política em pano de fundo, o que muito contribui para a compreensão do seu (e nosso) tempo. 

Era um homem do mundo, viveu em vários países, tinha grande formação tanto científica como literária, o que lhe permitiu desempenhar com competência e brilho funções de relevo em áreas muito diferentes. Além disso era um poeta (A matéria intensa, O ilimitável oceano, Poemas em tempo da peste, etc., são alguns dos seus títulos). 

Atento e interventivo, com grande facilidade escrevia sonetos e outros géneros, frequentemente críticos, muitas vezes ácidos e até cáusticos sobre os desmandos do mundo e os que, nele, tudo mandam. Veja-se, a este propósito, o livro forte, de dor, de indignação e até furor Poemas em tempo de guerra suja (Lisboa, Guerra & Paz, 2022) sobre os horrores da invasão da Ucrânia e Putin, destruidor de vidas e de cidades.

A outra justiça a fazer-lhe é a de que sempre foi fiel aos seus grandes autores. Sendo desde jovem um leitor voraz, pôde adquirir, com o incomparável prazer da leitura, uma escala de valorização literária que o orientou com segurança toda a vida. Os seus quadros de referência eram vastíssimos e o seu cânone sólido e bem estruturado. Aberto à novidade e a reconhecer valores novos, não corria, porém, atrás de modas, e toda a vida preservou os seus autores de referência e as respetivas obras, lendo e relendo com entusiasmo e paixão os seus enredos, conflitos e dramas. Não se coibia por isso de atacar com frontalidade os que desvalorizam o conteúdo, apagam o enredo e com experimentalismos exagerados e inovações a todo o custo frequentemente afastam os leitores e acabam por tirar-lhes o prazer de ler. 

Não tínhamos em Portugal outro com esta capacidade, com referências tão seguras e simultaneamente com tal poder de luta e de intervenção. Um dos seus últimos livros – Vamos ler, um cânone para o leitor relutante (Guerra & Paz, 2021) – é uma viva e sentida iniciação à leitura, que muito útil poderá ser para os que agora passam os dias (e as noites) com o nariz metido nos telemóvel e perdem o melhor da vida.

João Boavida 

(Artigo saído hoje no Diário de Coimbra).

sexta-feira, 12 de abril de 2024

DE UM NADA A OUTRO NADA

Uma vida é um curto percurso,
que vai de um nada a outro nada.
Para esses nadas não há recurso,
mas a vida pode ser bem alada!

Entre nada e nada, cabe tudo,
que nenhum nada consegue calar:
saber viver pode ser um escudo,
para, com ele, o nada burlar.

É só o que metemos no percurso
que lhe dá aura de eternidade,
do mesmo modo que o discurso

melhora, se construído com jade.
De nada a nada, pode pôr-se um mundo,
rico, prodigioso e sem fundo!
                                                                            Eugénio Lisboa

quarta-feira, 10 de abril de 2024

A ÍSIS, COM POUCOS DIAS DE VIDA

A todos os meus gatos, os vivos e os mortos.
Tinhas o tamanho da minha mão,
um trôpego tigrinho de salão
e já com muito charme de felino,
que pisava só, com pé muito fino!

Não eras ainda dona da casa,
mas olhavas já, como quem a apraza!
Há de ser só uma questão de dias,
e logo, dela, tu te aproprias.

Mesmo tropeçando, eras elegante,
com teu pelo, macio, cativante.
Teu lindo miar era de veludo,

quase entre o pedir e o ficar mudo!
O teu ar gauche prometia a beleza,
que, depois, se tornou uma certeza!
                                                                        Eugénio Lisboa,
                                                                        (director de recursos humanos da Ísis)

RIP PETER HIGGS (1929-2024)


Minhas declarações ao Público a propósito da morte de Peter Higgs:

Deixou-nos Peter Higgs, físico teórico emérito da Universidade de Edimburgo. O seu nome é famoso porque há uma partícula essencial para a arquitectura do mundo que tem o seu nome, a partícula de Higgs. Ela é a responsável pelas massas das partículas elementares. Depois de intensa busca foi encontrada no acelerador LHC do CERN, em Genebra, na Suíça, a Organização Europeia de Investigação Nuclear a que Portugal pertence desde 1985 (vários físicos portugueses participaram na descoberta). Quando o anúncio foi feito, a 4 de Julho de 2012, Higgs estava lá e não pôde conter algumas lágrimas. 

Decorreu quase meio século desde que ele, em 1964, tinha previsto a partícula em dois artigos (um deles rejeitado pela revista a que foi submetido e publicado noutra). Prever partículas não é tão simples como prever eclipses… A partícula permaneceu incógnita porque não existia a energia suficiente para a produzir. Foi preciso acelerar protões quase à velocidade da luz num anel subterrâneo de 30 km de diâmetro para que ela se dignasse aparecer. Foi um alvoroço na Física. Logo no ano seguinte Higgs recebeu o Prémio Nobel da Física juntamente com o belga François Englert (um sobrevivente do Holocausto, ainda vivo), que tinha feito uma previsão semelhante num trabalho independente em colaboração com o  seu colega belga de origem norte-americana Robert Brout na Universidade Livre de Bruxelas (Brout não recebeu o Nobel por, entretanto, ter falecido). 

Em geral é assim que funciona a Física: os teóricos imaginam e os experimentalistas com os seus instrumentos verificam se a “imaginação” da Natureza está de acordo com a nossa (a Natureza “imagina” melhor do que nós, mas alguns génios têm uma imaginação prodigiosa). Depois da descoberta do Higgs ainda não houve nenhuma outra grande descoberta no CERN. Estamos à espera que a Natureza nos surpreenda, uma vez que a imaginação dos físicos não tem dado resultados. Temos de prosseguir pacientemente. Há uma controvérsia sobre se três outros físicos, os americanos Gerald Guralnik e C. R. Hagen e o o britânico Tom Kibble (só o primeiro está vivo), não  teriam merecido o Nobel pela partícula de Higgs, por terem chegado a semelhante conclusão pela mesma altura, mas o prémio só pode ser dado no máximo a três cientistas.

O físico experimental norte-americano Leon Lederman, também Nobel e também já falecido (visitou um dia Portugal para participar num congresso da Sociedade Portuguesa de Física realizado na Figueira da Foz) chamou-lhe “partícula de Deus” no título de um seu livro. De facto, chamou-lhe originalmente “partícula maldita” por ela se recusar a aparecer, mas o editor mudou o nome para aquele que ficou famoso. O nome não é apropriado pois ciência é uma coisa e religião é outra. As outras partículas também serão “filhas de Deus”, se é que Este existe. Higgs era ateu e protestou contra o nome de "partícula de Deus". Mas não era ateu fundamentalista como Richard Dawkins, achando que ciência e religião são incompatíveis. O nome de Deus tem muita força e faz levantar as orelhas a muita gente. Colou tanto que temos de falar de “partícula de Deus” agora que Higgs faleceu. Um cartoon divulgado num jornal aquando do anúncio da descoberta mostrava os reis magos a quererem entrar no CERN para levarem presentes… O guarda fitava-os atónito!

Peter Higgs era uma pessoa modesta, apesar de ter vários prémios e distinções para além do Nobel. Falava pouco à imprensa. Não usava telemóvel, pelo que soube do Nobel porque um vizinho lhe disse. Teve a paciência de esperar décadas, sem praticamente qualquer publicidade, para saber que a sua teoria estava certa, que a sua imaginação estava de acordo com a da Natureza. Ele não está mais entre nós, mas a “sua” partícula está por todo o lado do cosmos e é imortal. Isto é, aparecerá sempre que houver energia suficiente.

EUGÉNIO LISBOA: COMENTÁRIO DE JOÃO BOAVIDA

Homem corajoso, frontal e clarividente, capaz de atacar as muitas vacas sagradas que inundam a literatura.

Defensor de um cânone literário assente em grandes obras, e não nas desconstruções transformadas em arquétipos que tanto mal têm feito à literatura num tempo de ferozes concorrentes.

Grande especialista de José Régio, quando já as modas se afastavam dele, teve, até ao fim, uma capacidade de trabalho notável com artigos, por vezes polémicos mas desafrontados, e sonetos de circunstância sobre o estado do mundo e suas loucuras.

Tive o privilégio de o ler quase diariamente no De Rerum Natura, onde mostrava a sua extraordinária cultura e a sua coragem intelectual e cívica. 

João Boavida

(Em comentário ao artigo de Joana Amaral Cardoso sobre o falecimento de Eugénio Lisboa, saído ontem no jornal Público: https://www.publico.pt/2024/04/09/culturaipsilon/noticia/morreu-poeta-eugenio-lisboa-2086377)

terça-feira, 9 de abril de 2024

LÀ BAS…

Na minha outra pátria africana,
não trincávamos maçã nem morango.
O que trincávamos mesmo com gana,
manga verde, encarilado frango,

maçaroca e ácida tcintchiva,
ensinava-nos a descobrir mundo,
naquela terra quente e lasciva,
onde tudo ficava mais fecundo.

Com tostões, comprava-se um mata-fome
e o caju arrancava-se do ramo.
Os esfomeados unhas-de-fome

inebriavam-se, comendo cânhamo.
Era uma pátria cheia de mistério,
que foi pra mim fecundo magistério.
                                                                                    Eugénio Lisboa

(Eugénio Lisboa confiou-nos sonetos que iremos publicando. Julgamos que, de entre eles, este é o mais próximo da vontade que manifestaria no dia de hoje por revisitar a sua "outra pátria", a sua pátria... Acaba de sair um livro de sonetos seu na editora Guerra & Paz).

AS PALAVRAS ETERNAS DE EUGÉNIO LISBOA

Teve o De Rerum Natura o grato privilégio de publicar ensaios e poemas de um homem cultíssimo que foi, igualmente, tão vertical quão generoso. O seu nome é – continua a ser – Eugénio Lisboa.

Faz anos que, pela mão de Rui Baptista, amigo comum e membro deste blogue, aqui chegaram textos admiráveis de Eugénio Lisboa. Admiráveis pela coragem e clarividência que mostram, pelo conhecimento que os ancora e significado que transmitem, pela transparência e estilo elegante que são aliados do entendimento; enfim, pela inteligência maravilhosa que neles percebemos ao passearmos por cada linha.

Como se sabe, Eugénio Lisboa faleceu hoje.

Ficamos com as suas palavras porque palavras como as que deixou são eternas.
De Rerum Natura

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Andreia Guerra - História Cultural das Ciências

APRESENTAÇÃO DO MEU NOVO LIVRO EM LISBOA NO DIA 13 DE ABRIL:


 

MINHA ENTREVISTA SOBRE CAMŌES

Minha entrevista à Radio Nacional do Egipto sobre os 500 anos de Camōes:

P-  Seja bem vindo, temos a maior honra de manter esta entrevista consigo por ocasião do meio milénio de Camões. Gostaríamos de saber mais sobre a importância do evento para a comunidade lusófona.


R- O dia 10 de junho, dia da morte de Luís de Camões,  é não só o Dia de Portugal como o dia das comunidades portuguesas: celebra o que podemos chamar portugalidade.  Poucos países do mundo, se é que há algum, tem o seu dia nacional associado ao dia da morte de um poeta. Camões é um símbolo da língua portuguesa, a sétima mais falada do mundo e a mais falada do hemisfério sul. A língua de Camões é afinal uma dos elos mais fortes que une as comunidades portugueses espalhadas pelo mundo. Portugal tem cerca de dez milhões de habitantes no país e estima se que tenha mais  de dois milhões de emigrantes espalhados pelo mundo, para já não falar dos lusodescendentes. No Dia de Portugal recorda-se a sua profunda unidade cultural. Estamos a celebrar os 500 anos do nascimento de Camões embora não haja a certeza sobre a sua data de nascimento. É uma boa oportunidade para reforçar a língua e a cultura portuguesa. E para reforçar a unidade das comunidades portuguesas. Lembro que Camões também esteve longe da pátria muitos anos, na Índia, na China e na África.


P-  Camões é o pai da língua portuguesa e o ícone da cultura lusófona durante 500 anos, Gostaríamos de saber mais sobre a influencia que Camões deixou na língua portuguesa e a cultura lusófona até hoje.


R- Camões tem uma obra literária muito variada.  É o autor do famoso poema épico “Os Lusíadas”, que descreve a viagem de Vasco da Gama a Índia em 1498, mas também de uma obra lírica notável, e de algumas peças teatrais. Não sendo o primeiro autor literário em Portugal ele mostrou que o português era uma língua literária. Curiosamente, o primeiro poema publicado por Camões não foi num livro de poesia, mas sim num livro de ciência, o “Colóquio dos Simples”, do médico Garcia de Orta; publicado em Goa em 1563, um dos primeiros livros de ciência escritos de raiz em português. Camões num prefácio poético elogia os feitos de Orta. O português também é uma língua de ciência: não há nada que não possa ser dito em português…


P- A influência de Camões não se limitou a poesi,a mas se estendeu para outros ramos da língua e literatura e  gostaríamos de saber mais sobre isso.


R- Muitos escritores portugueses escreveram sobre Camões. Por exemplo, no século XIX Almeida Garrett, o grande escritor romântico, escreveu o poema «Camões». A sua obra foi analisado por muitos críticos literários, Também inspirou muitas obras de arte, em vários domínios, incluindo as artes plásticas e o cinema - já falei da ligação a ciência; mas acrescento que na obra de Camões encontramos inúmeras referências de ciência - astronomia, geofísica, botânica, química, etc. Camões é um homem da modernidade, pois nele se encontra já uma antevisão do que vai ser a ciência moderna - ele sobreleva os valores da observação e da experiência. E é um homem da globalização: sobre a ligação ao mundo lusófono, gostaria o instituto de difusão da língua e da cultura portuguesa se denomina  precisamente Camões.


P- Muitos ilustres nomes se destacaram na língua e literatura portuguesa moderna. Quais entre eles ou elas podemos considerar o ou a novo ou nova Camões e porquê?


R- Costuma-se chamar a Fernando Pessoa o «super Camões». No seculo XX, ele é, de facto,  o grande nome da  da literatura portuguesa. Em todos os tempos será o segundo,  para alguns mesmo o primeiro, dada a inovação da sua obra. Pessoa também saiu de Portugal como Camões; viveu na infância e juventude na África do Sul, mas depois voltou a Lisboa, de onde não mais voltou a sair. É, como Camões, um escritor multifacetado, será até  mais multifacetado do que Camões, com os seus abundantes heterónimos. Escreveu um pequeno livro de poesia épica -  «Mensagem» e foi, também como Camões, um bom observador da história e realidade portuguesa. Um escritor português também muito conhecido e José Saramago, por causa do prémio Nobel da Literatura, em 1998, mas há outros bons escritores portugueses. A literatura portuguesa é muito rica. 


P- Gostaríamos de saber mais sobre a celebração oficial do evento do estado em Portugal e as atividades que serão lançadas.


R- Foi criada uma comissão mas há algum atraso na execução do programa. O facto de o governo ter mudado não ajudou. Mas está a haver um conjunto diversificado de iniciativas. Eu próprio dei uma conferência em Coimbra sobre Camões e a ciência do seu tempo, promovida pelo Centro de Estudos Camonianos da Universidade de Coimbra,


P- Gostaríamos de saber mais sobre as obras de Camões que foram apresentadas no teatro, cinema, telenovelas em Portugal e os monumentos de Camões que incluem os museus.


R- No teatro tem havido algumas peças sobre Camões, mas não são muito conhecidas. No cinema, destaco os filmes de Leitão de Barros em 1946 e de Paulo Rocha em 1998. Telenovelas não há, que eu saiba, mas é uma boa ideia. Nos museus há muita pouca coisa de Camões pois a sua vida está envolta em mistério: de resto, não foi famoso em vida. Os exemplares originais d' «Os Lusíadas» são muito poucos e estão guardados em bibliotecas, mas há reproduções digitais em acesso aberto. A biblioteca da universidade de Coimbra tem uma primeira edição, que eu já guardei. Existem vários monumentos a Camões. No Chiado no centro de Lisboa há uma estátua do escritor no largo Luís de Camões. Os estudantes de Coimbra também ergueram um monumento a Camões.


P- Que é a mensagem que gostaria de transmitir sobre  Camões nesta celebração especial? Qual é a mensagem para as gerações modernas sobre a importância da homenagem dos ícones culturais?


R- Camões e um clássico da cultura portuguesa tal como Cervantes e Shakespeare são para as línguas espanhola e inglesa, respectivamente. Todos eles são dos séculos XVI e XVII: Camões antecedeu um pouco Cervantes e Shakespeare. Os clássicos são eternos, podemos e devemos reinterpretá-los, pois eles estão sempre abertos a novas interpretações. Há sempre novidades em todos eles.


P- No fim desta entrevista pode concluir com uma frase ou algo das obras de Camões?


R- Eu estudei «Os Lusíadas» e outros poemas de Camões na escola e confesso que na altura não percebi muito bem os seus sentidos e significado. Mas ficaram-me no ouvido as palavras da sua poesia, que é muito musical. Amália Rodrigues cantou versos de Camões. Sei alguns poemas de cor. Destaco os versos: «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Muda-se o ser, muda-se a confiança...».  Significa que Camões entrou em mim e não saiu, essa é uma marca característica dos grandes escritores.

50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL: UM DEPOIMENTO PESSOAL

Meu artigo no último As Artes entre as Letras (no foto minha no Verão de 1975 quando participei no Youth Science Fortnight em Londres, estou...