domingo, 18 de abril de 2021

PRIMÓRDIOS DA CIÊNCIA MODERNA EM PORTUGAL

 


Meu artigo que tem sido publicado em vários órgãos da imprensa regional, num projecto coordenado por António Piedade (na imagem a Casa das Necessidades dos Oratorianos).

O atraso com que a ciência moderna – a ciência inaugurada por grandes nomes da Revolução Científica como Copérnico, Galileu, Descartes e Newton – chegou a Portugal pode ser ilustrado pelo edital afixado à porta do Colégio das Artes em Coimbra em 1746, assinado pelo reitor dessa escola jesuíta: “Nos exames, ou Lições, Conclusões públicas, ou particulares, se não ensine defesas ou opiniões novas pouco recebidas, ou inúteis para o estudo das Ciências maiores como são as de Renato Descartes, Gassendi, Newton, e outros, e nomeadamente qualquer Ciência, que defenda os átomos de Epicuro, ou negue as realidades dos acidentes Eucarísticos, ou outras quaisquer conclusões opostos ao sistema de Aristóteles, o qual nestas escolas se deve seguir.”

Esta é apenas uma das peças de um conflito, que ficou famoso, entre os Antigos – os seguidores de Aristóteles, e os Modernos, os seguidores do método científico, baseado na observação, na experiência e na razão matemática, que marca a dita Revolução. A meio do século XVIII, quando os franceses Descartes e Gassendi, os dois contemporâneos de Galileu, e o inglês Newton, da geração seguinte, já tinham falecido há muito tempo, as suas ideias permaneciam interditas entre nós. De nada valia o facto de Gassendi ter sido padre católico, pois ele tinha ousado recuperar as ideias atomísticas dos gregos, que para a teologia oficial colidiam com a fé.

O domínio da Igreja não ajudou. O Index de Livros Proibidos, surgido entre nós em 1551 ainda antes do seu equivalente romano, baniu Copérnico, Galileu e Descartes (e só a 31 de Março de 1821, há 200 anos, a Inquisição, que zelava pela aplicação do Index, foi extinta!). A persistência da reacção ao sistema heliocêntrico de Copérnico, defendido sem sucesso por Galileu em 1633 na Inquisição de Roma, é também elucidativa do atraso nacional. Em 1753, numa obra de autor anónimo (provavelmente um beneditino) diz-se: “Se é o mesmo opôr-se à Fé que ser falso, como se não envergonham de dizer que no sistema de Copérnico se explicam melhor os fenómenos da natureza?”.

Para o triunfo dos Modernos foram obras decisivas a Lógica Racional, Verdadeira e Analítica (1754), de Manuel de Azevedo Fortes, e o Verdadeiro Método de Estudar (1756), de Luís António Verney (reeditado nas Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, Círculo de Leitores, 2018). Tanto uma como outra se inspiram em Descartes.

Foram os Oratorianos, a Ordem fundada em 1565 por S. Felipe de Nery, que, em Portugal, mais impulsionou a Ciência moderna. Em 1751 saíram os primeiros dois volumes da Recreação Filosófica, do oratoriano Teodoro de Almeida. Este primeiro tratado de Física em português (reeditado nas referidas Obras Pioneiras, 2017) já segue uma orientação marcadamente moderna. No colégio lisboeta dos Oratorianos – onde hoje é o Ministério dos Negócios Estrangeiros – davam-se desde 1752 aulas de Física com demonstrações experimentais, às quais o rei D. José assistiu. Essa actividade pedagógica, na qual o Padre Almeida participou, precedeu de duas décadas a Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, de 1772, que instituiu o ensino experimental das ciências na então única universidade portuguesa.

A Academia das Ciências de Lisboa só ter surgido em 1779, mais de um século após a sua congénere britânica, a Sociedade Real de Londres, à qual o Padre Almeida pertenceu. Foi este autor que, que após um exílio de uma década em Espanha e França devido ao fecho pelo marquês de Pombal do colégio oratoriano, fez a primeira oração de sapiência na nova academia, na qual equiparou Portugal a Marrocos, originando protestos dos apaniguados do marquês.

É injusto, como fez a máquina de propaganda pombalina, acusar os jesuítas de extremo atraso. Alguns deles deram grandes exemplos de modernidade. Foram os jesuítas italianos Paolo Lembo e Christophoro Borri que trouxeram para Portugal o telescópio de Galileu menos de quatro anos depois de ele ter sido, em 1609, usado pela primeira vez em Itália. E foi daqui que ele foi para o Oriente. A Aula da Esfera, que funcionou no colégio jesuíta de Santo Antão, onde hoje é o Hospital de S. José, foi uma fértil escola internacional de Matemática desde a sua fundação em 1590, até ao seu inglório encerramento pelo marquês em 1759. O jesuíta Manuel Dias, em 1615, foi o primeiro a referir na China as descobertas de Galileu, no seu livro em mandarim Sumário de Questões Celestiais. A Revolução Científica entrou na China por mão portuguesa!

Mas impõe-se uma nota ainda mais importante: a Revolução Científica não teria sido possível sem os Descobrimentos portugueses, que valorizaram a experiência como a “madre das coisas”. De facto, as bases do método científico encontram-se já na obra de sábios portugueses quinhentistas como os médicos Amato Lusitano e Garcia de Orta, o matemático Pedro Nunes, e o geofísico D. João de Castro. Eles foram, por isso, pioneiros da ciência moderna. Atraso? Não, nestes casos houve adiantamento…

Carlos Fiolhais*
*Professor de Física da Universidade de Coimbra


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