segunda-feira, 26 de abril de 2021

A ASCENSÃO DA CURIOSIDADE

Texto da minha intervenção no TEDXUniversidade de Coimbra:

Proponho-vos uma breve reflexão sobre a relevância da curiosidade... Como é o mundo? Onde estamos no mundo? Quem somos nós no mundo? Será que estamos no centro ou não passamos de poeira insignificante num mundo infinito?

É famosa a frase do físico inglês Isaac Newton: “Se consegui ver mais longe é porque estava aos ombros de gigantes” (fig. 1). A frase foi escrita numa carta a Robert Hooke, seu rival, apesar de ser colega na Royal Society de Londres, em 1676. A frase inspirava-se num famoso dito em latim atribuído ao filósofo medieval Bernardo de Chartres “somos anões sobre os ombros de gigantes”. A interpretação que tem sido dada por muitos historiadores de ciência é que Newton considerava que o seu trabalho resultava do trabalho anterior de cientistas notáveis, como o italiano Galileu Galilei, na geração logo anterior à dele, que por sua vez estava aos ombros de outros, como o polaco Nicolau Copérnico, mais de um século antes.

A frase, lida de um modo lato, significa que a ciência é uma construção, que o saber é uma acumulação: cada cientista eleva-se por cima dos outros, precisando deles para se apoiar em bases sólidas. De 1543, ano da publicação em Nuremberga do controverso livro de Copérnico Sobre a Revolução dos Orbes Celestes (fig. 2) até 1687, ano de publicação em Londres dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural do “incomparável cavalheiro” Newton (fig. 3), passando por 1632, ano em que saiu em Florença o Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas do Mundo, de Galileu (fig. 4), também os livros se foram acumulando nas bibliotecas, cada um dando lugar a outros, mas não perdendo o seu lugar, até porque o seu conteúdo passava pelo menos em parte para as obras vindouras.

Cada uma dessas obras resultou da inquietação, do desassossego, da insatisfação do seu autor, em tentativas de resposta a grandes perguntas da humanidade: Como é o mundo? Onde estamos no mundo? Quem somos nós no mundo? Qual é a nossa relevância à escala cósmica?

Se com Copérnico surge a hipótese de o centro do sistema do mundo não ser a Terra, mas sim o Sol, com Galileu essa hipótese ganhou ampla publicitação e com Newton ela deixou de suscitar qualquer dúvida.

As sucessivas subidas aos ombros de gigantes, resultado de inquietudes individuais, não se fizeram sem inquietudes colectivas: Copérnico (fig.5) faleceu no ano em que o seu livro saiu não tendo podido conhecer a violenta polémica que desencadeou entre cristãos, tanto católicos como os então muito recentes protestantes, e Galileu  (fig. 6) foi condenado a prisão domiciliária pela Inquisição romana, depois de conveniente abjuração, por sustentar posições que alegadamente contrariavam a Bíblia. Só Newton (fig. 7) pôde gozar de uma vida de maior reconhecimento e glória. Quando ele morre em 1727, o Século das Luzes já ia adiantado: as Luzes tinham em boa parte sido acendidas por ele. Como epitáfio o poeta Alexander Pope escreveu:

A natureza e as suas leis jaziam na noite escondidas.

Disse Deus “Faça-se Newton” e houve luz nas jazidas.

Foi preciso esperar muito tempo, até 1905, para vermos alguém subir mais alto na pirâmide humana. Foi o sábio suíço e norte-americano, nascido na Alemanha (nunca quis ser alemão!), Albert Einstein (fig. 8) quem, em dois momentos de epifania, o da relatividade restrita, de 1905, e o da relatividade geral, de 1915, se conseguiu alcandorar acima de Newton, vislumbrando uma paisagem que os outros nunca tinham visto. A geometria, que já antes tinha iluminado Newton nos seus Principia, foi o seu guia. Mas, se a geometria o orientou, a inquietude foi, tal como nos cientistas que o precederam, o princípio motor. Mais uma vez voltavam as grandes perguntas: Onde estamos no mundo? Como é o mundo? Quem somos nós no mundo?

O astrofísico norte-americano e divulgador de ciência Carl Sagan (fig. 9), no final de Cosmos, livro e série de televisão de 1982, depois de ter procurado condensar o que sabemos sobre as duas primeiras perguntas, respondeu à terceira: Nós somos a consciência do mundo. Somos, tanto quanto sabemos, os únicos seres capazes de compreender o mundo e, portanto, sem nós o mundo permaneceria incompreendido. A nossa obrigação – a nossa ambição – deve ser o conhecimento.

A pergunta impõe-se: Será que o ser humano já atingiu o máximo desta pirâmide humana que faz crescer a ciência? A resposta não é do âmbito da ciência, mas está fundamentada em toda a história da ciência. Estamos convencidos de que não, isto é, que a ciência é um empreendimento sem fim e que um dia alguém subirá aos ombros de Einstein conseguindo ver mais longe. Mas o certo é que já passaram mais de cem anos desde a elevação de Einstein aos ombros de Newton e ainda ninguém conseguiu subir aos ombros do autor da relatividade, vendo uma paisagem nunca vista. Muitos têm tentado, ensaiando o que por vezes se chama uma “teoria de tudo”, mas não é fácil subir acima de Einstein. Não nascem génios como ele todos os dias. Ele foi um novo “incomparável cavalheiro”, ou pelo menos ainda ninguém conseguiu merecer uma comparação com ele. Mas aquilo que Jacob Bronowski, um matemático, poeta e divulgador científico britânico de origem polaca, a cujos ombros Sagan subiu, chamou a ascensão do homem” prossegue. A “ascensão do homem” é a “ascensão da curiosidade”.

Porque subiram estes sábios? Porque é que hoje sem dia não falte quem tente subir ainda mais acima? Porque procura o homem ascender? Talvez a palavra “inquietação”, que já usei, seja a chave da resposta. O homem é um ser inquieto. Não se contenta com o que sabe, mas quer saber mais. Um sábio português do tempo de Copérnico, Garcia da Orta (fig.10), resumiu bem essa ânsia de saber que é ao mesmo tempo uma ânsia de futuro. Escreveu: “O que não sabemos hoje amanhã saberemos”. Copérnico, Galileu e Newton foram mentes inquietas, desassossegadas, insatisfeitas. Quiseram ver mais, saber mais, e conseguiram. Ambicionaram ver mais e tiveram a recompensa da sua ambição. Todos eles nos deixaram a sua visão inquieta, para que sobre ela pudéssemos deixar crescer a nossa inquietação. É bom lembrar que a ciência não é dos cientistas, mas é de todos nós: eles apenas representam a humanidade na sua continuada inquietação da descoberta. Convém lembrar que hoje somos filhos de Copérnico, Galileu, Newton e Einstein.

O que significa ser inquieto? Significa ter a mente desperta para o mundo, alimentada pela chama viva da curiosidade. Uma mente desperta, porque é curiosa, não se contenta com as perguntas que outros colocaram e com as respostas que outros deram: dá outras respostas às mesmas perguntas ou coloca as suas próprias perguntas, procurando as respectivas respostas. Há sempre novas perguntas, há sempre novas respostas.

E vocês? Que perguntas se têm feito ultimamente? Como vai a vossa curiosidade? Já perguntaram, por exemplo, por que razão o mar tem marés, duas em cada dia? Foi Newton o primeiro a responder: a Lua exerce uma atracção sobre a Terra, movendo-se a água mais num certo sítio está mais perto da Lua (fig. 11). É maré alta. Passadas seis horas, a Terra rodou de 90º e a maré é baixa. Mas passadas mais seis horas, a Terra rodou de 180º e volta a haver maré alta. Por dia há duas marés altas e duas marés baixas. E, quem quiser ir ao surf, pode ver na Internet quando é a maré alta ou a maré baixa em cada sítio.

Na praia beneficiamos da luz do Sol. Aliás, estamos sempre a beneficiar do Sol, pois sem Sol não haveria seres vivos e nós não estaríamos aqui. Mas por que razão o Sol emite energia sob a forma de luz? (Fig. 12) Einstein explicou que a matéria se pode converter em energia: E=mc^2 Hoje sabemos que o Sol  é um central de fusão nuclear: transforma hidrogénio e hélio. Quatro protões, que são quatro núcleos do hidrogénio, têm menos mais massa do que o núcleo de hélio. A diferença é a energia emitida. O Sol vai continuar a brilhar, pelo menos mais cinco mil milhões de anos – está a meio da sua vida – porque tem muito hidrogénio para converter em hélio.

Fernando Pessoa chamou desassossego à inquietação humana (Fig.13). Pessoa podia ter-se encontrado com Einstein quando este, em 1925, numa viagem entre Hamburgo e o Rio de Janeiro, fez escala em Lisboa e passeou pela Baixa pombalina. Não fora o desconhecimento um da presença do outro e a timidez dos dois, talvez pudessem ter trocado algumas ideias sobre o mundo. Talvez pudessem ter partilhado a sua inquietação. 

E nós? Já nos encontrámos com Pessoa ou com Einstein? Quando é que nos encontramos com o desassossego, com a curiosidade? Quando é que nos encontramos com o conhecimento?

Vejamos o que Einstein nos revelou sobre a sua própria inquietação que o conduziu, em 1905, à teoria da relatividade, uma teoria sobre o espaço, o tempo, a matéria e a energia.. Na origem da teoria da relatividade restrita ele coloca o pensamento de perseguir um raio de luz (fig. 14):

“E se corrêssemos atrás de um raio de luz?... E se cavalgássemos no feixe luminoso?... Se conseguíssemos correr suficientemente depressa, será que ele deixaria de se mover por completo?» o que é a “velocidade da luz”? Se a velocidade da luz for relativa a alguma coisa, então o seu valor não se mantém relativamente a outra coisa que também esteja em movimento.”

Que homem é esse que pensava? O mesmo, afirmou o próprio, que o homem crente ou o homem apaixonado. Numa palestra sobre o motivo para a investigação, não teve peias em dizer: “O estado de espírito que permite a um homem realizar um trabalho deste tipo… é semelhante ao do crente religioso ou ao de um apaixonado; o esforço diário não vem de qualquer intenção ou esforço deliberado, mas directamente do coração.”

É por isso que Newton fala de “curiosidade apaixonada”. Curiosidade todos temos, mas em Einstein era uma verdadeira paixão.

Recuemos a Newton. É-lhe atribuída esta frase: Não sei como o mundo me vê, mas eu me sinto como uma rapazinho brincando na praia, contente em achar aqui e ali uma pedra mais lisa ou uma concha mais bonita, mas tendo sempre diante de mim, ainda por descobrir, o grande oceano da verdade.” Qual foi a maior pedra mais bonita que Newton encontrou na praia: foi a compreensão de que a lua e a maçã quando cai de uma arvore obedecem as duas à mesma força, a força da atracção universal, isto é, não há leis da física para o céu e leis da física para a terra, mas só há uma física.

Esta ideia que é verdadeiramente brilhante – só há um mundo com uma ordem unificada e não vários mundos com ordens arbitrárias, quer dizer, sem ordem nenhuma, estava já em Galileu. Em 1609 ele observou pela primeira vez o céu com o telescópio. E viu coisas extraordinárias: montanhas na Lua (fig. 15), manchas no Sol, fases em Vénus, e satélites de Júpiter. As sombras das montanhas na Lua permitiram-lhe intuir que as leis da óptica eram as mesmas na Lua e na Terra. E a existência de luas de Júpiter que havia outros corpos no vasto céu com que eram centro de outros. A Terra não podia ser o único centro.

Galileu escreveu no início do Dois Grandes Sistemas do Mundo: “Quem olha mais alto diferencia-se de modo mais elevado; e o voltar-se para o grande livro da Natureza, que é o próprio objeto da filosofia, é o modo de erguer os olhos; nesse livro aparece a obra e o artifício, ainda que tudo o que nela se leia, sendo obra do Artífice omnipotente, seja por isso proporcionadíssimo, o qual é, a nosso ver, o mais expedito, o mais digno, o maior.”

Falei de Fernando Pessoa, o autor do Livro do Desassossego. Num passo desse livro Pessoa fala do sonho, que normalmente opomos à razão e que costumamos associar à imaginação:

“A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção. Em melhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção.”

E que tem Einstein a dizer sobre o sonho? Sobre essa actividade em que a nossa imaginação voa livremente? Pois um dia perguntaram-lhe o que era mais importante? Seria o conhecimento ou a imaginação? Pois o grande sábio respondeu, sem hesitar, que era a imaginação. A imaginação é, de facto, um dos maiores meios para chegar ao conhecimento. O físico imagina como é a Natureza e só depois vê como ela é. O fito dele é ter a “imaginação da Natureza”. As seguintes palavras são do autor da teoria da relatividade (fig. 16):

"A imaginação é mais importante que o conhecimento. O conhecimento é limitado. A imaginação envolve o mundo, estimulando o progresso e dando origem à evolução. Ela é, de maneira rigorosa, um factor real na pesquisa científica."

A imaginação é também, como bem sabemos, um factor real nas vidas de todos nós. Não são apenas os cientistas que têm de combinar conhecimento e imaginação. Somos todos nós nas nossas vidas. A imaginação é fonte de conhecimento, mas de entre tudo o que sonhamos temos de reter o que mais e melhor se adequa ao mundo real.

Em 1925, Einstein e Pessoa não se encontraram na Baixa em Lisboa. Mas termino com um diálogo virtual entre os dois (fig. 17). Não houve diálogo, mas podemos imaginar um diálogo, a partir de textos dos dois: Os trechos de Pessoa são do Livro do Desassossego, e de Albert Einstein, usei um livro de citações devidamente verificadas.

Diz Pessoa: “A física sabe bem qual é o coeficiente de dilatação do ferro; não sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos saber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins supremos da verdade e da vida — essa nem é teoria científica, senão somente um monte de tijolos formando, nestas mãos ou naquelas, casas de nenhum feitio que nenhuma argamassa liga.”

Sabemos muito pouco, mas isso significa que podemos saber mais. Diz Einstein, nessa mesma linha, sobre a relação entre ciência e realidade:

"Uma coisa que aprendi nessa longa vida: toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil - mesmo assim é a coisa mais preciosa que nós temos."

Sim, “a ciência é primitiva e infantil”. Mas alguém, inquieto, virá decerto subir aos ombros de Einstein (fig. 18).

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Mais um texto pleno de sugestões e de informações, que nos interpela de várias perspectivas e nos faz pensar em várias direcções. Mas não gosto da ideia de ascensão, que sugere uma hierarquia ou escatologia, como se houvesse um carrocel e a nossa missão fosse andar nele até cairmos por algum motivo. De resto, perturba-me mais pensar no infinitamente infinitesimal do que no infinitamente grande, se é que assim se pode dizer.
O conhecimento é o que torna a realidade fascinante, sem embargo de a realidade do conhecimento ser o que nos fascina. Quando começamos a ver e a ouvir os abismos como se eles nos vissem e nos ouvissem, a imaginação e o sonho já estão a fazer o seu trabalho. Suspeito de que a importância da imaginação e do sonho, tão bem referidos por Einstein e Pessoa, tenham a ver com a curiosidade e a inquietação, ou o desassossego, sobretudo como modos de ser e de se manifestar do cérebro em determinados contextos problemáticos e de imersão muito controlada numa língua que se faz linguagem e veículo assumido de conhecimento.
A partir do momento em que as coisas deixam de ser o que são, porque não são o que parecem, não têm de ser o que parecem, nem têm de ser o que são, porque podem ser o que não parecem, nem são, deixamos de estar diante de um quadro de “realidades” e passamos a estar diante de um quadro de possibilidades. Deixamos de estar perante um puzzle em que só há uma forma de encaixar as peças umas nas outras e passamos a estar diante de peças de legos muito sofisticadas, como um vírus, ou mais ainda, que permitem imaginar e projectar e realizar construções à medida e ao gosto da imaginação e conhecimento de cada um.
O puzzle que foi a cultura, durante séculos, chegou e sobrou para quebrar as cabeças dos humanos. O próprio puzzle tinha feitiço e magia mais do que suficiente para atordoar e dobrar a espinha aos mais indomáveis dos sábios. Estes, por sua vez, não raro, incrementavam as dificuldades mais do que proporcionalmente aos méritos do que sabiam. A alquimia é um exemplo que se me impõe.
A era científica e tecnológica teve o efeito paulatino e discreto, mas eficiente e inelutável, de desfazer, de desmistificar o puzzle e de mostrar que, por trás do puzzle, há aglomerações dinâmicas e incessantes de legos e que as próprias palavras podem ser peças de legos com uma versatilidade e uma potencialidade praticamente sem limites.
Acredito que a imaginação e o sonho participam nos processos de revelação dos cenários cujos recursos, mecanismos e ferramentas precisam de uma curiosidade e de uma vontade para serem desenigmados, descobertos, e materializados.

João Afonso disse...

O autor não terá subido aos ombros de Einstein (nem a tal se propôs), mas conseguiu passear-se com ele e com Pessoa.
parabéns pelo belo texto.

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