domingo, 27 de dezembro de 2020

EDUARDO LOURENÇO, UM MESTRE DO PENSAMENTO


Meu texto no mais recente "As letras entre as Artes", dedicado a Eduardo Lourenço:

Eduardo Lourenço (São Pedro de Rio Seco, Almeida, Guarda, 1923 – Lisboa, 2020) é um dos nomes maiores do ensaísmo português do século XX. A sua longevidade permitiu-lhe deixar uma obra volumosa: na colecção “Obras de Eduardo Lourenço” na Gradiva, contam-se 25 volumes (um deles de entrevistas, da autoria de Ana Nascimento Piedade). A Fundação Calouste Gulbenkian está também a editar as “Obras Completas” de Eduardo Lourenço, organizadas de modo distinto, estando publicados sete volumes e aguardando-se outros. Basta pegar num deles para se verificar tanto a profundidade do seu pensamento sobre a literatura, arte, história, filosofia e, em geral, a cultura portuguesa e universal como a esmerada estética da sua escrita.  Ele foi, para todos nós, um “maître à penser”, para usar uma expressão muito adequada para quem, entre 1965 e 1988, foi professor na Universidade de Nice, em França.

Tendo conhecido através das suas obras, algumas das quais fui lendo logo após a sua saída (por exemplo O Labirinto da Saudade Psicanálise mítica do destino português, Dom Quixote, 1978), só em raras circunstâncias me encontrei com ele. Lembro-me de uma sessão de autógrafos na Feira do Livro, uma vez que éramos os dois autores da Gradiva (é um privilégio partilhar o editor com o grande mestre!). Quando soube que eu tinha estudado na Alemanha, comentou que tinha estado dois anos nas Universidades de Hamburgo e de Heidelberga, mas que tal estada não tinha sido suficiente para ficar a dominar a língua de Goethe. Encontrei-o também algumas vezes na sede da Fundação Gulbenkian, onde ele tinha sido administrador e desfrutava de um gabinete.

Fui em 2013 membro do júri do prémio com o nome dele atribuído pelo Centro de Estudos Ibéricos, na Guarda, uma coorganização da Universidade de Coimbra e da Universidade de Salamanca (a Guarda, o distrito natal de Lourenço, fica a meio caminho entre as duas antigas cidades universitárias). Demos o prémio ao tradutor e crítico colombiano Jerónimo Pizarro, um grande estudioso de Fernando Pessoa, um escritor por quem Eduardo Lourenço tanto se interessou (veja-se por exemplo, o livro Fernando, rei da nossa Baviera, Imprensa Nacional, 1986). O prémio, que merecia ser mais conhecido, já distinguiu personalidades como Maria Helena Rocha Pereira, Maria João Pires, César Antonio Molina, Mia Couto, Agustina Bessa-Luís e Luís Sepúlveda.

Não pude estar na atribuição do doutoramento honoris causa com que a Universidade de Coimbra o honrou (e se honrou) em 2006: essa distinção reconheceu um dos filhos mais bem-sucedidos da alma mater conimbricensis, pois Lourenço se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas em 1946 naquela universidade, tendo sido aí assistente na Faculdade de Letras entre 1947 e 1953, um tempo em que trabalhou com o professor de Filosofia Joaquim de Carvalho (1892-1958). Foi em Coimbra que Lourenço publicou o seu primeiro livro (Heterodoxia, 1949), que contém parte da sua tese de licenciatura, e foi aí que escreveu no Diário de Coimbra as suas “Crónicas Heterodoxas”. Daí haveria de rumar à Alemanha, donde transitou para a França, não sem antes ter passado um ano no Brasil.

Visitei já a Biblioteca Eduardo Lourenço na Guarda da responsabilidade da Câmara Municipal daquela cidade, que guarda uma parte da biblioteca de Eduardo Lourenço. Uma outra parte foi doada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e outra ainda à “Casa da Escrita”,  uma instituição gerida pela Câmara Municipal de Coimbra que funciona na moradia do poeta neorrealista João José Cochofel (1919-1982) com quem Lourenço conviveu.

Eduardo Lourença não era uma pessoa próxima da ciência, como foram Joaquim de Carvalho, muito interessado pela história das ciências, e António Sérgio (1883-1969), um racionalista que foi amigo de Paul Langevin, o físico francês que contribuiu para a teoria da relatividade. Mas um leitor preferencialmente das ciências como eu sou  tem a sensação de que ganha quando lê um texto da pena de Lourenço. Dou um exemplo que expõe o paralelismo entre ciência e arte, extraído do livro Crónicas Quase Marcianas (Gradiva, 2016), colecção das suas crónicas no JL: “Quando Einstein intuiu – imaginou, como ele dizia – a sua famosa ‘teoria´, ninguém se podia prevalecer de um conhecimento superior a esse. Mas também na sua ordem, quando Picasso pintava as Demoiselles d’Avignon, nada havia que fosse mais original, analogicamente mais verdadeiro, do que essa imagem, ícone do Homem, num certo tempo e para sempre”. Fiquei, porém, com a sensação de que o autor privilegiava a forma ao conteúdo, ficando este por vezes oculto sob o manto nem sempre diáfano da escrita. Este mesmo reparo foi feito no artigo “Somos o passado de amanhã”, pelo poeta e crítico literário Eugénio Lisboa (cujas iniciais, EL, curiosamente coincidem com as de Eduardo Lourenço) no JL de 16 de Dezembro passado, todo ele dedicado a Eduardo Lourenço (um número muito rico que inclui colaborações de José Carlos Vasconcelos, Miguel Real, Onésimo Teotónio Almeida, Jerónimo Pizarro, Lídia Jorge e Gonçalo M. Tavares, entre outros nomes notáveis). Lisboa, rompendo com uma certa unanimidade reinante, escreve que “Lourenço foi um homem muito inteligente, mas com óbvios limites, como toda a gente. Para começar, como já algures observei, o seu estilo de escrita não era nem de longe o mais adequado a um bom prosador de ideias”.  Na mesma linha, a socióloga e ensaísta Maria Filomena Mónica, numa entrevista ao Diário de Notícias publicada em 13 de Dezembro, estranhou a unanimidade em volta de Lourenço, lançando sobre ele o labéu da ambiguidade.

Percebo o que Eugénio Lisboa e Maria Filomena Mónica, dois autores por quem tenho grande apreço pela clareza da sua escrita, querem dizer. Mas julgo que Lourenço cultivou o seu estilo, muito próprio, que é bem diferente dos deles. A prosa lourenciana pode não ter a transparência que eles desejariam, mas é brilhante, literariamente muito rica: tem o grande mérito de nos enlear e de nos pôr a pensar o que antes ainda não tinha sido pensado.

Além da sedução do seu pensamento, há um outro tipo de sedução que apreciei em Eduardo Lourenço nos breves encontros que tive com ele: o seu calor humano, entrecortado por finíssimo humor. O humor é uma das maiores manifestações de inteligência humana. Só um grande espírito pode ser espirituoso como ele era. Repare-se na ironia que está patente em títulos como título Fernando, rei da nossa Baviera ou Crónicas Quase Marcianas…

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Um dos pontos fracos (do ponto de vista da criatividade e da originalidade e do aproveitamento do efeito notoriedade e da canonização de figuras, símbolos, estilos, épocas e mitos, entre outros recursos religiosos e artísticos disponíveis, que são imensos...) de muitos autores do nosso tempo, incluindo Saramago e Eduardo Lourenço, e podia referir milhares deles que são escritores, porque até têm obra publicada, mas não são autores, dizia eu, um dos pontos fracos, que me desgosta e faz desmerecer-lhes muito da admiração que lhes é devotada, é o "gene oportunista" que os faz colarem-se ao astro, como se diz no ciclismo, para não dizer que vão a reboque, por exemplo, de conventos de Mafra e de Fernando Pessoa, como satélites que devem o brilho às estrelas que os iluminam.

Se reflectem a luz dessas estrelas, não é porque lhes emprestem ou deem luz, que os satélites não têm e as estrelas não precisam, mas é porque buscam a luz e o brilho onde ele estiver e acabam fazendo seu o que é alheio.

Mas há autores, poetas, e dou o exemplo de Pessoa, a quem repugnaria construir a sua obra com a obra de outros e, menos ainda, com os seus escombros, porque têm ou tinham uma motivação bem diferente.
Diria que o "espírito jornalístico do mercado da atenção" se derramou sobre o nosso tempo como um pentecostes, desta vez, mais do tipo igreja universal.

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