terça-feira, 24 de março de 2020

A CIÊNCIA, A PSEUDO-CIÊNCIA E A CULTURA CIENTÍFICA: MINHA ENTREVISTA A INÊS NAVALHAS

Continuação da minha entrevista à estudante de doutoramento Inês Navalhas (IN), da Universidade Nova de Lisboa, sobre a ciência nos tempos de hoje. A entrevista foi dada nos tempos a.V. (antes do vírus), mas não se desactualizou, julgo:

IN: Considera que a divulgação científica tem força para fazer frente às pseudociências? Como encara a facilidade que existe hoje em dia de as informações erradas se difundirem?

CF: A ciência está a ser vítima do seu próprio sucesso. A ciência inventou a Internet, que não existia quando eu acabei o curso. Qual foi a grande transformação provocada pela Internet? Antes havia um grupo de pessoas que emitia informação e havia muitas pessoas que a recebiam e hoje em dia qualquer receptor pode ser um emissor. Qualquer pessoa pode colocar o que me apetecer na Internet. Estando esta tão generalizada como está, existe uma Torre de Babel, em que não há escrutínio nenhum…

Acresce que a nossa atenção é atraída mais depressa por aquilo que é  estranho, bizarro, falso. Como regra pode-se dizer que  a maior parte das coisas bizarras são falsas. As pessoas clicam logo no bizarro. Quanto mais extraordinária for a coisa, mais as pessoas se interessarão por ela. As notícias falsas tendem a ser extraordinárias e propagam-se mais rapidamente do que as verdadeiras, alcançando audiências que são maiores. Esse fenómeno tem a ver com o funcionamento do nosso cérebro: é certo que somos racionais, duvidamos, mas às vezes somos crédulos, demasiado crédulos, imaginamos coisas com alguma ingenuidade. Vemos, por exemplo, “cavalos nas nuvens”, apesar de lá não haver cavalos nenhuns. Já em tempos remotos víamos figuras fantásticas em conjuntos de estrelas:  daí os nomes das constelações. Procuramos sentido em coisas que às vezes não têm sentido nenhum… E habituámo-nos a confiar nas primeiras impressões, que são muitas vezes enganadoras. Em ciência são precisas segundas e terceiras impressões. Hoje em dia não podemos confiar na Internet pois a maior parte do que lá está é falso. Quando me dizem que algo está na Web, desconfio logo...

Carl Sagan, o grande astrofísico e autor de divulgação científica, anteviu no século passado o que se está hoje a passar. Tem uma frase premonitória, num artigo dos anos 90, quando a Web estava apenas a começar, na revista Skeptical Inquirer, dedicada ao cepticismo, uma frase que retomou depois no seu livro O Mundo Infestado de Demónios. Escreveu, e cito de cor, que "vivemos num mundo em que praticamente tudo depende da ciência e tecnologia, mas ao mesmo tempo num mundo em que ninguém sabe praticamente nada de ciência e tecnologia". As pessoas olham a ciência e tecnologia como coisas distantes, ocultas, mágicas. Hoje a relação da maioria das pessoas com a ciência dá-se de modo indirecto, através da tecnologia. Compram telemóveis, onde está a física quântica, mas ninguém sabe de física quântica; usam o GPS, que recorre à teoria da relatividade geral de Einstein, mas não é preciso saber nada dessa teoria para usar o GPS. O truque dos tecnólogos está em fazer um design aliciante e colocar uns botões para a pessoa interagir facilmente. Sagan acrescentou, porém, que essa coexistência entre sabedoria e ignorância era uma “receita para o desastre”. Queria dizer que a mistura de grande poder (saber é poder, sempre foi, e grande saber é grande poder) e grande ignorância é explosiva. Há uma grande ignorância das populações em geral e dos seus representantes, que são os políticos…. Se olharmos para o mundo de hoje, se olharmos para a Casa Branca em Washington DC ou para o Palácio do Planalto em Brasília, assistimos a um desastre. A mistura de poder e ignorância está a explodir na cara do mundo, com consequências imprevisíveis. Prognósticos só depois do jogo.

Como podemos contrariar essa situação? É muito difícil, num mundo de “verdades alternativas”, num mundo em que a mentira é inseminada e disseminada de um modo profissional, num mundo em que há agências governamentais e grandes empresas multinacionais a colocar e a espalhar mentiras, num mundo onde reina a chamada “pós-verdade,” o que podemos fazer? Não quero ser pessimista porque podemos sempre fazer qualquer coisa. Mas há bastantes razões para estar pessimista. Temos de usar o optimismo da vontade contra o pessimismo do intelecto.

Recorro a uma metáfora para definir melhor a minha ideia. Há uma história sobre uns passarinhos chineses que, quando uma floresta estava toda a arder, resolveram ir buscar água a um lago e com os pequenos bicos despejavam-na sobre a floresta em chamas. Apareceu o génio da floresta e perguntou-lhes: “O que estão a fazer?”. “Estamos a tentar apagar o fogo”. “Mas vocês não vêem que não conseguem fazer nada” E o chefe dos passarinhos respondeu-lhe: “Claro que vemos, mas que mais   podemos fazer?” Foi uma resposta sábia, esta história traz muita água no bico…

Aquilo que podemos fazer é simples e ao mesmo tempo complicado: fazer mais e melhor o que temos vindo a fazer. É preciso mais e melhor comunicação de ciência. Deve começar pela escola, lugar por excelência da comunicação formal de ciência. Mas não podemos dizer que a escola esteja a cumprir o seu objectivo, no mundo em geral, não só em Portugal. Toda a gente passa pela escola, as crianças e os jovens passam cada vez mais tempo na escola, mas isso não está necessariamente a tornar as pessoas mais racionais, mais capazes de interagir com o desconhecido, mais capazes de efectuar escolhas bem informadas. Depois continua pelos média, que têm hoje um peso enorme na sociedade. Aliás as pessoas esqueceram a escola, aquilo que sabem ouviram dizer aqui e acolá, chega-lhes ou por contactos sociais directos ou através dos média, sejam estes  tradicionais ou novos. Ora esse conhecimento, que é informal, é também disperso, contraditório, incoerente. São bits que nem sempre conseguem colar.

 Nós, cientistas e professores, temos a obrigação de fornecer da melhor maneira a melhor informação de que dispomos, no quadro das nossas possibilidades, daquilo que a sociedade nos pede e também nos permite. De resto, a comunicação que não é desejada é inútil. Estou convencido que, neste mundo difícil e perigoso em que vivemos, num mundo que tem todos os meios para comunicar e que, no entanto, não sabe comunicar, muitas vezes não consegue comunicar, temos de continuar em busca da comunicação. Hoje como no passado fornece-se muita informação errada, em processos a que podemos chamar propaganda, manipulação, desinformação... Mas hoje a quantidade e a qualidade da mentira são muito maiores.

Não penso que a ciência e os cientistas tenham um segredo para derrotar  a mentira. Mas as pessoas formadas de modo a conhecer e praticar o método científico estão mais capazes de oferecer soluções  para aqueles que são os reais problemas do mundo, não para os problemas que são estritamente do poder ou do mercado. Hoje enfrentamos os problemas das doenças e longevidade, das alterações climáticas, da energia, da desigualdade... Temos que usar o método científico para tentar resolver esses problemas, embora eles tenham componentes que ultrapassam largamente a ciência. Temos sobretudo que ser racionais.

Qual é o papel da comunicação científica? Mais do que comunicar os conteúdos científicos, que vão evoluindo, importa comunicar o método científico. Veja-se o caso das dietas recomendadas, que vão mudando à medida que se sabe mais: o ovo já não tem o perigo do colesterol que tinha antigamente. A ciência avançou, sabemos hoje mais do que sabemos ontem. Temos de disseminar o método científico mais do que os resultados da ciência. Na área da comunicação de ciência um erro que estamos a cometer é passar demasiadas informações e poucas atitudes... Por exemplo, o Universo nasceu há 14 mil milhões de anos com o Big Bang, a dada altura formaram-se os átomos, depois as estrelas e galáxias, com os planetas em redor das estrelas. E pelo menos neste planeta surgiu a vida, etc. Ora as questões principais não são nenhumas das que essas questões dão resposta. As questões principais são: Como sabemos isso? Será que pode estar errado aquilo que sabemos? E como vamos saber mais? E é isso que nos torna pessoas mais capazes, pessoas que duvidam, que não acreditam em qualquer coisa, pessoas que sabem distinguir o verdadeiro do falso. A grande mensagem da ciência é que temos de estar disponíveis para admitir o erro e corrigi-lo! A pseudociência não tem quaisquer dúvidas, está sempre certa, mas a ciência é  precisamente ao contrário. Sabe que na maior parte do que diz está certa, mas que em muitas coisas pode estar errada.

Como funciona o método que Galileu e outros nos legaram? Baseia-se em coisas simples como a observação, a experimentação, que é a observação controlada, e o exercício da razão, que se apoio na lógica e na matemática. Com ele podemos chegar – temos chegado -  a conclusões sobre o mundo onde vivemos, no qual se inclui o próprio ser humano. O método científico é muito forte e não tem alternativa. A comunicação ocupa também um lugar no fim do seu processo: a ciência expõe-se à critica. Posso tirar conclusões, com base na observação, experiência e raciocínio, mas alguém me pode dizer que me enganei. Ou vi mal, ou experimentei sem cuidado, ou fiz um raciocínio errado. Os chamados “pares” criticam e é da discussão que nasce a luz. É da troca de dados e argumentos que na ciência emergem consensos. Por exemplo, no caso das alterações climáticas, houve uma altura em que não havia o grande consenso que há hoje. E o consenso estabeleceu-se através de um número enorme de comunicações, artigos, debates, congressos, etc. É hoje inequívoco que o planeta está a aquecer devido à acção humana. Esse consenso não significa unanimidade, não é preciso haver unanimidade na ciência.. Não é preciso uma votação esmagadora como na Coreia do Norte. Haverá sempre algum contestatário do consenso e é bom que isso aconteça.

 É preciso comunicar o método da ciência, mostrando a sua utilidade e eficácia. As pessoas que conhecem o método científico têm a chave para resolver muitas questões, as questões da organização do mundo natural, incluindo o homem, embora obviamente não todas, pois há questões da ordem da política, da religião, etc. Uma pessoa pode ignorar os problemas, ou pode olhar para eles e dar-lhes soluções erradas... Mas o método científico permite olhar bem para eles e procurar as melhores soluções de que somos capazes.

A ciência, usando o seu método, responde a questões que nos permitem viver melhor no mundo. E não há qualquer alternativa ao método científico. Começou há cerca de 300 anos com Galileu e hoje não conseguimos, do ponto de vista metodológico, fazer melhor do que ele. Falamos hoje dos átomos, cuja existência ele desconhecia, mas o método que usamos é o mesmo que ele usou. É um misto de observação, experimentação, raciocínio e, por fim, abertura à critica para obter validação.

Uma outra questão é a de saber se conseguimos levar o conhecimento do método para a sociedade em geral. Não sei, em parte sim, com certeza. Mas não na medida suficiente. Há possibilidades que a Internet tem, que porventura não estão suficientemente exploradas, mas que podem ser muito úteis na comunicação de ciência. Acho que a ciência não está a dar atenção suficiente às possibilidades que a Internet abre, portanto aos meios que ela própria criou. Por exemplo, a interacção directa das pessoas com os cientistas é algo que a Internet permite. Nas TED Talks por exemplo, indivíduos que sabem muito conseguem transmitir os seus conhecimentos ao globo todo em palestras de 18 minutos. Existem as redes sociais e podemos pensar em fazer mais coisas, usando-as. Temos um potencial que ainda não explorámos devidamente. A ciência inventou tudo isso e, porventura, não estar a tomar o devido partido. Hoje os jovens já não querem ser astronautas, querem ser influencers. E ganham dinheiro com isso, as marcas pagam a algumas dessas pessoas para publicitar os seus produtos. É uma maneira de usar a Internet, entre outras. A questão é se alguns de  nós, cientistas e professores, somos capazes de ser influencers.

O que seria Sagan nestes tempo da Internet? Ele usou a televisão, um meio muito poderoso naquela altura. Conseguiu transformar a televisão num grande meio ao serviço da ciência, tendo o livro sido mero subsidiário (o livro Cosmos, que a Gradiva publicou, é o guião da série).. Usou também os jornais, que têm nos EUA maiores tiragens ao domingo. Ele percebeu bem o poder dos média mais influentes. Agora, neste tempo em que a TV deu lugar à Netflix e ao HBO, e em que as redes sociais substituíram em parte em jornais, como é que a comunicação de ciência pode aproveitar os meios existentes? Se calhar são os próprios governos que têm que pensar na comunicação de ciência em formatos muito diferentes e apostar também em ligações adequadas aos privados. Por exemplo, pensar em grandes documentários ou filmes ficcionais com bons ingredientes de ciência. Já há coisas muito interessantes de ciência na Netflix, no Facebook, que as pessoas hoje usam além ou em vez da televisão ou dos jornais, mas pode haver mais. Julgo que os livros serão eternos, mas, para além dos livros, há outros formatos e a questão é se somos capazes de ser suficientemente criativos e arranjar grandes cientistas que sejam influencers. Sagan foi um influencer.  Hawking foi outro, cada um à sua maneira. Ele conseguiu comunicar sem sequer falar. O seu rosto transformou-se numa imagem da ciência, ainda que a sua voz natural não pudesse ser a voz da ciência.  São precisos novos Sagans e Hawkings.

IN- Que temas científicos lhe parecem mais relevantes actualmente na divulgação científica?

CF- Há temas que são sempre do interesse geral, como as questões da astronomia e as questões da biomedicina ligadas à saúde humana. Mas hoje há temas muito actuais. porque nos afectam a todos e provavelmente vão afectar ainda mais no futuro: a saúde e a longevidade, as alterações climáticas, a biotecnologia (incluindo a genética), a inteligência artificial. Em todos eles a ciência tem uma palavra... Alguns vêm mesmo da ciência. Na área do clima e do ambiente há muita gente a interrogar-se  sobre o que se pode fazer para as mitigar. Hoje, com base na ciência, podemos fazer alterações genéticas nos seres vivos, é possível mudar a nossa linha de descendência. Muitas pessoas não imaginam nem a utilidade nem os perigos que essas técnicas podem ter, não estão suficientemente informadas sobre essas possibilidades. As questões da inteligência artificial também começam a estar omnipresentes. É, por exemplo, uma tecnologia que a Netflix usa. O ecrã vai mostrando mais títulos associados ao que já vimos, porque, se mostrassem a oferta toda, estaríamos perdidos. A inteligência artificial já está em todo o lado, no Google, na Amazon... Também aqui as nossas possibilidades de escolha estão condicionadas por algoritmos. E não está ninguém do outro lado a condicionar, são as próprias máquinas que o fazem. A questão é: que podem as máquinas fazer sozinhas e que novas ajudas podemos nós obter delas? É um domínio novo que a ciência trouxe à nossa vida, está em curso uma revolução completa, avançando a grande ritmo... Vamos ver carros automáticos a circular e vamos ver nos hospitais máquinas a decifrarem sozinhas uma falha no interior do corpo humano… As pessoas não estão preparadas para lidar com a nova realidade. Portanto, a ciência e a tecnologia estão a avançar de um modo vertiginoso nas nossas vidas e nós  temos dificuldades em acompanhar ao mesmo ritmo.

O pior que nos pode acontecer é confiar cegamente nos produtos tecnológicos. Temos que ter uma percepção minimamente correcta do mundo e de nós próprios. Esse é um grande desafio da comunicação da ciência, proporcionar essa percepção. Não é apenas uma coisa para se fazer agora e já, mas sim um desafio continuado. A questão da comunicação de ciência não é um problema que possamos resolver agora de repente, é um problema com o qual estaremos sempre confrontados. Como os progressos científicos que referi são tão recentes, é natural que haja más decisões, que haja erros, às vezes tem de haver grandes erros para aprendermos colectivamente alguma coisa. Poderá haver grandes erros, tragédias até, não sei. E pode ser que, nesse caso, se aprenda alguma coisa.  Acho que, como sempre, vamos aprender com os erros que fizermos.

No passado houve erros e aprendizagens. Apesar dos grandes problemas que houve na história, das duas guerras mundiais, apesar das crises que nos afligem, vive hoje mais gente hoje e em média vive-se melhor do que alguma vez se viveu. Sei que persistem desigualdades, mas vive-se em média mais e melhor. Vamos continuar a viver aqui na Terra, de um modo que tem necessariamente de ser sustentado. A ciência ajudará a que vivamos mais tempo, num planeta que é finito e que, por isso, tem recursos limitados. O que não é limitado e que nos vai permitir viver mais tempo é a imaginação humana, a nossa capacidade de conhecer baseada na imaginação. Há uma frase de Einstein que eu gosto de citar: “A imaginação é mais importante do que o conhecimento. O conhecimento é limitado, a imaginação dá a volta ao mundo.”  De facto, a imaginação dá saltos enormes. Podemos com ela procurar resolver um problema. Hoje, por exemplo, não há falta de alimentos, como se receou no passado. O que há é uma economia e uma política que não asseguram uma bos distribuição de alimentos. Há um problema na economia e na política, e não na ciência e na tecnologia. 

IN- O conhecimento científico é fundamental para uma opinião pública bem fundamentada?

CF-  Sim, é. Sem a ciência a nossa cidadania ficaria bastante limitada. A ciência é uma fonte de conhecimento, que está hoje na base da riqueza das nações, mas também uma fonte de inspiração que nos serve para alicerçarmos o nosso espírito crítico. A ciência ensina a dúvida mais do que as certezas. A ciência ensina  a evitar os erros. No nosso dia a dia temos muitas vezes que distinguir entre o certo e o errado. Procuramos fazer o certo e não o errado. Para evitar o erro o método científico é um precioso auxiliar. Nem sempre o que parece é. Temos de procurar ver para além das aparências.

A ciência tem de ligar com a política e, numa democracia, esperamos que essa ligação seja fértil. É o conhecimento baseado na ciência que permite que os regimes democráticos proporcionem desenvolvimento à população, um desenvolvimento que deveria ser justamente  distribuído. Hoje em dia, para que haja desenvolvimento é preciso conhecimento, é preciso que os governos estejam bem informado sobre a ciência, é preciso que actuem racionalmente com base na melhor informação disponível, embora eu saiba que muitas as decisões são em última análise políticas e não científicas.  Um governo que tome más decisões pode pagar um preço por isso. A democracia tem um meio de evitar o “erro” – coloco entre aspas porque o sentido é  diferente do que lhe é dado na ciência – na medida em que as eleições permitem afastar os maus representantes dos cidadãos. Na ciência pode não se alcançar a verdade, mas evita-se a mentira. Na democracia pode-se não alcançar o bom governo, mas evita-se o mau.

IN- Como vê o futuro do  cientista como divulgador de ciência no mundo e em Portugal?

CF-  A divulgação científica não tem de ser feita apenas pelos cientistas, mas, mesmo quando há moderadores, tem de ser feita em colaboração com os cientistas, porque estes são,ao fim e ao cabo, os criadores de conhecimento. Os cientistas quando acrescentam conhecimento usando o método científico fazem-no em nome de todos, em nome da sociedade. Quer dizer, a ciência não é deles, mas de todos. É obrigação deles entregar à sociedade o resultado do seu trabalho. O cientista terá de estar sempre associado à divulgação da ciência, usando agora não apenas formatos tradicionais como o livro, mas novos formatos associados em novas tecnologias, as que existem e as que estão para vir.

Em Portugal este processo ocorrerá como no resto do mundo, uma vez que a ciência é um empreendimento global, um empreendimento que não conhece fronteiras. Em Portugal a ciência e a tecnologia progrediram muito nas últimas três décadas, graças à visão de José Mariano Gago. Ele teve a visão de considerar a cultura científica essencial para a mobilização para a ciência. Criou para isso em 1996 a Ciência Viva – Agência Nacional para a Promoção da Cultura Científica e Tecnológica, que soube de início com grande mérito envolver os cientistas na disseminação da cultura científica. Infelizmente, o crescimento do investimento em ciência e tecnologia foi interrompida com a intervenção da troika em Portugal em 2009 fez com que Portugal deixasse de convergir nesse índice para a média da União Europeia. Estamos a gastar 1,4% do PIB nessa área, um valor que se tem mantido aproximadamente constante nos últimos anos,  quando a média europeia é de 2,1% do PIB. Por seu lado a Ciência Viva não se soube renovar, mantendo as mesmas pessoas e procedimentos de há 20 anos. Há uma enorme assimetria na distribuição de recursos no território nacional. Não tem dado suficiente atenção, por exemplo, aos livros e bibliotecas – por exemplo, interrompeu inexplicavelmente o apoio ao Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, que é um dos poucos que funciona no interior de uma Universidade e o único centro da rede nacional que é uma biblioteca de cultura científica com uma densa agenda de eventos de elevada qualidade, com a presença de cientistas e humanistas das mais variadas áreas. O apoio à publicação, seja este em papel ou electrónica, feito pela Ciência Viva é escasso e sem aparente critério. Era preciso um outro dinamismo, por exemplo na renovação dos temas trazidos ao debate público, no uso das novas tecnologias, etc. Era preciso uma maior e mais viva participação da comunidade científica.

Eu sou optimista não só por natureza mas também por formação. Na ciência há a ideia de progresso: amanhã saberemos mais do que hoje. Neste sentido, a ciência só pode progredir. Do mesmo modo, na cultura científica entre nós também espero que amanhã seja melhor do que hoje. E farei os possíveis por isso.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

É sempre com grande prazer e proveito que leio o Carlos Fiolhais. Num ponto ou outro, não obstante, gostaria de ver realçado, por exemplo, que se o bizarro atrai a curiosidade e a atenção das pessoas, pelos vistos, não é o bizarro da ciência, sabendo nós que uma das principais "culpadas" pelo sucesso das pseudociências é a ciência, justamente por ser bizarra e esotérica, apresentando-se sempre, ou quase, como algo cujos enigma se destina a ser decifrado apenas por escasso número de privilegiados. Nisto, a ciência ainda não logrou distanciar-se e demarcar-se das pseudociências, ou das ciências ocultas.
Podia dar vários exemplos, mas julgo óbvio que, a cada momento, a ciência nos brinda com "bizarrias" inconcebíveis, como a teoria da mecânica quântica, mas podíamos recuar aos gregos antigos, ao atomismo de Leucipo e Demócrito, para verificarmos que, se o bizarro atrai as pessoas, não é o bizarro científico.
Ainda assim, as pessoas estão mais focadas nos resultados e nos frutos do que na cultura, ou no cultivo daquilo que os proporciona, como é natural e não espanta nada, menos ainda os cientistas. Daí que a ciência não escape às contingências das motivações e das razões que explicam e justificam o interesse e a paixão que os indivíduos manifestam, ou revelam, pelo seu estudo. Há que colocar objectivamente os problemas e reconhecer que os processos de produção de ciência e de teologia e de qualquer "artefacto" ou "constructo" humano, podem ser muito alavancados pelas expectativas da sua utilidade e da sua aplicação, tanto ou mais do que paixão pelo conhecimento. Na tecnologia estamos todos interessados e somos todos "bons" juízes. Na ciência, não diria tanto.
Já nas referências feitas aos políticos, fixei-me num ponto, qual seja o dos custos de oportunidade, matéria que, salvo erro, salva sempre qualquer decisor político da condenação por erro. Na realidade, e isto não é por acaso, os políticos (parece que) nunca podem ser condenados por erro nas suas opções, pelo menos no respeita à aplicação de verbas, embora possam ser acusados. O futuro absolve-os da ignorância do passado e o presente, da ignorância do futuro. Se escolheram mal ao construir a ponte em vez do hospital, não é este veredicto do futuro sobre o passado que pode condená-los se não houver (e como haveria?) veredicto sobre a vantagem de ter escolhido construir o hospital...

Carlos Fiolhais disse...

Caro carlos Soares
Muito obrigado pelas suas pertinentes (como é habitual) observações. A entrevista, como se percebe, foi oral e gravada. No entanto, pude editá-la em pormenores e corrigi agora mais uma ou outra pequena coisa. Mas nunca há num caso como este oportunidade para analisar tudo devidamente. faz bem em pegar nalgumas coisas e levantar objecções como a questão do bizarro na teoria quântica. Sim, a ciência, avançando muityo, chegou a coisas estranhas, mas verdadeiras. Dizia Teilherd de Chardin: "À escala cósmica só o fantástico pode ser verdadeiro."

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