sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Os professores como pilares do pensamento


Baseadas na mesma "narrativa" - a "narrativa da educação do futuro" -, múltiplos países levam a cabo mudanças profundas nos seus sistemas de ensino, que apresentam como inequivocamente boas e certas. Assim, as questões que tais mudanças, necessariamente, levantam, tendem a ser desvalorizadas ou imputadas à má-vontade. Por isso, é importante quebrar a (quase) imposição de silêncio. Lídia Jorge, ex-professora e escritora faz isso numa recente entrevista ao jornal Público. Tomamos a liberdade de recuperar as passagens que se nos afiguram mais relevantes.

Maria Helena Damião e Isaltina Martins
"É aquilo que todos sabemos: apostar na cultura, no ensino, na crítica, no jornalismo. Devíamos criar um estado de alarme com base em actores que têm um papel especial na sociedade: os académicos, os jornalistas, os professores. Considero que são os pilares de pensamento e de denúncia. São eles os pilares, aqueles de quem se espera que pensem e denunciem, mas estão muito adormecidos e têm de tomar um outro alento.
(...) enquanto a política for comandada por esta economia, que de forma mais ou menos disfarçada continua a ser a ideia da Escola de Chicago [corrente de política económica liberal] de que a empresa é um templo. Isto é tão grave que mesmo as instituições que não têm nada que ver com uma empresa assumem essa imagem (...) foi o que aconteceu com a escola (...) que foi tomada de assalto pelo modelo empresarial. 
(...) Perdeu-se a cultura da solidariedade Cada professor começou a ser o espião do seu colega e foi envolvido numa burocracia absolutamente intolerável. Os professores estão em estado de anomia e de anemia (...) o sindicato, em vez de fazer todo um combate apenas na base do ordenado e da reposição de direitos, deveria falar noutra coisa essencial, que é a formação dos professores. 
Há algo a acontecer na escola, que não está a formar com esperança os jovens de hoje (...). É-lhes retirada toda a parte cultural, criativa. Tudo isso desaparece com a ideia de que a prioridade é ter uma profissão para poder ganhar dinheiro. É preciso adoptar outra mentalidade, criar pessoas fora do fetichismo tecnológico, dotá-las de uma subjectividade rica. Isso é de uma importância extraordinária. 
(...) É absolutamente necessário que se perceba que as Humanidades têm de funcionar como travão para essa utopia tecnológica de que apenas a ciência e a tecnologia interessam neste mundo (...). A tecnologia tem de ficar em face da filosofia e de todas as artes (...). É fundamental que haja uma ética, que se perceba que há travões, neste momento em que a inteligência artificial já prevê que se venham a ler os pensamentos das pessoas. Tem de se guardar da pessoa aquilo que ela é (...) a humanidade perderá todas as características que conhecemos quando não houver segredo. O segredo é uma capacidade fundamental do ser humano. Pode-se dizer: eu estou escondido, eu sou humano (...). Tenho uma parte de mim que quero construir só comigo, que não posso partilhar. Quando isto não acontecer, estaremos perante uma coisa completamente diferente e não sabemos o que é. 
(...) É preciso dizer aos alunos, aos jovens, que têm de encontrar propriedade nas palavras. Têm de estudar. E os professores de Português, mas não só, precisariam de ter uma formação na língua. Teriam de voltar a estudar etimologia, semântica, todas as partes da gramática, a poética. Têm de estudar, têm de fazer de cada professor das Humanidades um leitor. Não tem havido nenhum ministério que tenha posto isso como prioridade (...) quando se fala da Literatura como uma disciplina básica, não é só a sensibilidade que está em causa, é a parte racional, é a capacidade de raciocínio crítico, e isso é absolutamente fundamental. 
(...) Ensinar os jovens a ver cinema é crucial para eles entenderem que a elipse, aquilo que não é mostrado, tem de ser preenchido com o nosso pensamento. Isso é dar-lhes uma gramática, uma chave para entender a arte, para entender a subtileza. 
(...) Há uma geração que deu um salto extraordinário, mas rapidamente se volta para trás. E o que está acontecendo é que a sociedade onde a cultura é menos letrada, menos cultivada, é aquela que aceita melhor o ditame do fetichismo tecnológico. E as duas coisas são de facto explosivas. …. voltar a essas grandes narrativas é fundamental. 
(...) Gosto muito daquela expressão do Steiner, que dizia que quando se lê poesia suspende-se a morte de Deus de Nietzsche. É verdade (...). Não sabemos dizer o que somos, e é talvez por isso mesmo que somos outra coisa. É preciso dizê-lo aos jovens, e é isto que a Literatura, as artes, o cinema, podem mostrar (...) dizer que cada um tem a sua noção de transcendência, os que irão até à crença absoluta num deus tradicional, outros que ficarão no agnosticismo.  
(...) Quais são, na sociedade, os elementos que falam em nome das palavras? São os professores, os intelectuais, os críticos, os artistas, os historiadores, os jornalistas. Estas pessoas têm de falar mais e de dar mais voz uns aos outros (...). Acredito na transmissão de conhecimento, na pedagogia e no exemplo das pessoas. Nunca a visão freudiana de que vivemos para o prazer esteve tão implantada a todos os níveis, mas acredito que vivemos para um sentido. E os que também acreditam nisso têm de se unir e de resistir, e que não se lhes canse a voz ou a mão. Sei que pareço utópica, mas se muitos acreditarem, é possível mudar. É preciso criar um estado de alarme."

2 comentários:

Anónimo disse...

Perdeu-se a cultura da solidariedade Cada professor começou a ser o espião do seu colega e foi envolvido numa burocracia absolutamente intolerável. Os professores estão em estado de anomia e de anemia (...) o sindicato, em vez de fazer todo um combate apenas na base do ordenado e da reposição de direitos, deveria falar noutra coisa essencial, que é a formação dos professores.


É absolutamente necessário que se perceba que as Humanidades têm de funcionar como travão para essa utopia tecnológica de que apenas a ciência e a tecnologia interessam neste mundo (...). A tecnologia tem de ficar em face da filosofia e de todas as artes (...).

No nosso mundo, a cultura dos jovens está, infelizmente, na morte a 300 km/ h em carros que custam 80 mil euros.
Comprendo o sentido das palavras de Lídia Jorge, mas não podemos cair no erro de separar a Ciência da grande cultura humanista. Eu, enquanto professor de ciências que sou, sinto todos os dias na pele a falta de solidariedade entre colegas e a opressão intolerável da burocracia irracional que tomou conta das escolas. Como dizia o poeta António Gedeão (Rómulo de Carvalho) Ciência e Humanidades é tudo a mesma coisa! Atualmente, o grande desígnio das autoridades da educação em Portugal é expurgar da vida escolar tudo que implique o ato de pensar, indiferentemente se os pensamentos são humanistas ou científicos. Sem pensamento não há escola! As cantinas abertas e os pseudo-diplomas, que se oferecem a quem não estuda, não são suficientes para constituir uma escola.

Carlos Ricardo Soares disse...

Já tinha lido a entrevista referida e admirei-me da pertinência das considerações de Lídia Jorge, com a maioria das quais concordo. No entanto, o pragmatismo e o realismo aconselham a que analisemos os problemas em escalas adequadas, concedendo a cada realidade a respectiva representação relativa. Ainda não vi um método, que urge criar, de "elaboração de mapas à escala dos problemas e das soluções...". Sem isso, andamos à deriva, como tontos, uns que colocam o problema do álcool no centro do universo, outros que colocam o centro do universo no álcool e por aí adiante.
O que me faz estar aqui a escrever, em vez de estar numa manifestação contra o governo? E que seria melhor? Para mim ou para os outros? Enquanto estou aqui a escrever, morre gente que outras pessoas tentam acudir, mesmo depois de mortas, com orações...
São poucas as pessoas que têm predisposição para a razão. Na realidade, nem os crentes/praticantes da religião estão sequer tentados a interrogar-se e, muito menos, discutir, seja o que for.
Ninguém vai à igreja por uma razão que seja a de ter razão, do mesmo modo que um político não quer ouvir falar em razão, nem precisa de ter, nem esse é o seu negócio. São os interesses, o nepotismo, as alianças, os compadrios, a corrupção, os apoios, os votos, as aclamações, que valem.
Ter razão não vale nada.
Ninguém está interessado em algo que vale nada.
Alguém está interessado na morte de Deus e, mais ainda, na suspensão da morte de Deus de Nietzsche?
Os nossos governantes (a quem tudo devemos, excepto a razão) têm horror à razão e, com razão.

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