quarta-feira, 20 de novembro de 2019

"Sobre a dignidade intrínseca de quem queria ensinar e de quem queria aprender"

Um texto de Paulo Guinote - Para Quando Um Plano De Não-Retenção No Ensino Superior? -, recentemente publicado no seu blogue, faz alusão ao debate sobre o (in)sucesso académico no ensino superior, que se vê ganhar protagonismo. 

Deslocado o foco do ensino (ou como se insiste em dizer, da aprendizagem) dos "conhecimentos" para as "competências" (funcionais e emocionais), a par da progressiva adopção dos seus insondáveis mecanismos de "reconhecimento e certificação", os critérios de avaliação tornam-se fluídos, os instrumentos diversificam-se. Tais mudanças não podem deixar de se traduzir nas classificações atribuídas às prestações dos estudantes, substancialmente vinculadas ao futuro, que pode ser de sobrevivência quer de cursos quer de instituições.

Guinote situa o debate na Reforma de Bolonha, que é, na verdade, de especial pertinência na Europa. Ela traduz, porém, um modo da pensar que, tendo surgido na universidade nos anos de 1960, viu-se expresso em Portugal na década que se seguiu. Leia-se, como exemplo, o breve texto de Helena Carvalhão Buescu, publicado num volume de homenagem a António José Saraiva, a propósito de uma intervenção que este grande homem das Letras teve numa desconcertante reunião que bem poderia acontecer hoje numa qualquer instituição de ensino superior. Intervenção que cada vez que a leio lhe vejo mais sentido...
"Nunca me esquecerei de uma reunião geral de Departamento, com professores e alunos, nos idos de 1975, em que o recém integrado (e respeitadíssimo) António José Saraiva, depois de ouvir longos debates e acesas discussões sobre o que se pretendia com a avaliação dos alunos, os procedimentos a adoptar, os critérios a seguir (ou não), pediu a palavra, se levantou com cuidado e disse, num tom de voz resguardado (que contrastava com as vozes alteadas dos contendores que o tinham antecedido): 
«Eu queria propor que se desse o diploma de licenciatura aos alunos quando eles fossem admitidos na Faculdade. Depois, só cá ficavam os que queriam mesmo aprender…»
E sentou-se. Fez-se silêncio na sala. Era uma frase radical, na realidade ninguém sabia como reagir a ela. Creio que, se a memória não me falha, o consenso geral dos presentes foi no sentido de interpretar aquela frase como uma benigna e mordaz crítica à anterior exaltação dos ânimos. Não me recordo de essa proposta ter sido realmente discutida ou votada, e o seu autor saiu aliás da sala pouco tempo depois. Mas fiquei sempre convencida de que, sendo embora uma frase irónica, havia na proposta de António José Saraiva uma substância radical que reflectia a sua convicção sobre o que era ensinar e aprender. Sobre, se quisermos, a dignidade intrínseca de quem queria ensinar e de quem queria aprender."

7 comentários:

Rui Baptista disse...

Rui Baptista20 de novembro de 2019 às 19:22
Prezadíssima Professora Helena Damião: Saúdo a oportunidade e justeza do seu comentário. Infelizmente, a avaliação com cruzes em quadrados, quais lápides de campas , transformou a avaliação no ensino superior ( e não só!) num cemitério de ignorância quais dados lançados à sorte. Sorte de poder o cabulão lançar os olhos de soslaio para o teste do companheiro “sabichão” sentado perto até onde a sua visão alcança. Ou utilizando uma sinalética de dedos combinada previamente.

Julgo que a primeira vez que este tipo de avaliação fez a sua aparição em Portugal, vinda da terra do tio Sam, foi no ano de 1952, no meu Curso de Oficiais Milicianos (Mafra).

E assim se vai perde o culto da boa escrita, ou simplesmente correcta, que as resposta expositivas exigem, agravado hoje pelas mensagens via intermóveis.

Saudades de um tempo, que mesmo sem se ser bota de -elástico , de maior seriedade! Lembro-me de minha falecida Mãe, senhora de grande cltura, que quando eu perguntava o significado, ou simples grafia, de uma determinada palavra me respondia: vai ver ao dicionário. Ripostando eu não ter tempo para chegar a horas às aulas do antigo liceu, em diálogo necessário me dizia para escrever num papel para, regressado a casa, ir consultar o dicionário.

Hoje o Google acelera essa consulta sob o risco de ser rapidamente esquecida por não ter havido esforço em a memorizar! “O tempore!"; O mores”! Com amizade, as minhas saudações.

Rui Baptista.

Rui Baptista disse...

Correcção: Na primeira linha do penúltimo parágrafo do meu comentário anterior, corrijo: assim se vai perde", para assim se vai perdendo. Aproveito a ocasião para enviar um abraço a Paulo Guinote, colega de lides anteriores, que muito aprecio e estimo.

Anónimo disse...

"Nunca me esquecerei de uma reunião geral de Departamento, com professores e alunos, nos idos de 1975, em que o recém integrado (e respeitadíssimo) António José Saraiva, depois de ouvir longos debates e acesas discussões sobre o que se pretendia com a avaliação dos alunos, os procedimentos a adotar, os critérios a seguir (ou não), pediu a palavra, se levantou com cuidado e disse, num tom de voz resguardado (que contrastava com as vozes alteadas dos contendores que o tinham antecedido):
«Eu queria propor que se desse o diploma de licenciatura aos alunos quando eles fossem admitidos na Faculdade. Depois, só cá ficavam os que queriam mesmo aprender…»


António José Saraiva descortinava – já em 1975 – a questão candente nos dias de hoje, no que se refere aos ensinos básico e secundário:
Tendo em vista o desenvolvimento cultural e económico do povo português, devemos apostar num ensino de conhecimento e saber, ou num ensino de diploma mal disfarçado pela máscara flexível do sucesso escolar obrigatório?
A proposta de António José Saraiva, ainda desconcertante em 1975, só não é um retrato fiel do que atualmente se passa nas escolas básicas sem retenções porque as autoridades impõem aos alunos frequência obrigatória; o diploma é que já se dá, realmente, a todos os alunos, quer queiram aprender ou não!
Aliás, eu li uma variante desta proposta, em que o Professor António José Saraiva contava ao seu irmão, Professor José Hermano Saraiva, que deveria ser atribuído o diploma de licenciatura a todos os bebés portugueses recém-nascidos!
A realidade apresenta-se-nos, por vezes, mais fantástica do que a fantasia!

Carlos Ricardo Soares disse...

Ainda está por começar uma República, que seja democrática, respeitadora dos direitos individuais, desenfeudada dos poderes económicos organizados nos bastidores da fachada política, cujos eleitos (representantes) não sejam marionetas de um teatro que a turbamulta toma por vida e gesta de deuses e de demónios a que tem de estar sujeita.
Ainda estamos na antiguidade da organização social e política, mas acredito que não será por muito mais tempo. É como se andássemos a laborar no modelo ptolomaico por não conhecermos o modelo copernicano.
Estamos a remendar um tecido podre com todo o tipo de tecidos. Isto favorece um estado de espírito eufórico e muitas vezes alienado de crença no sistema de soluções, muito mais do que nas soluções do sistema.
Muito pouco daquilo que nos ensinam sobre liberdade e direitos e dignidade é verdade, mas nós só saberemos se descobrirmos.
As incoerências são tantas que ao defendermos a liberdade estamos a defender a prisão, a caixa.
O ensino e a aprendizagem são instrumentos que, como qualquer instrumento, não são desinteressados, nem inócuos, nem inocentes, têm objetivos.
O serem obrigatórios, em qualquer estádio de socialização do indivíduo, não pode deixar de os tornar suspeitos, de muitos pontos de vista, militar, político, económico, religioso...
Numa perspectiva de dogmática jurídico-política, sempre podemos questionar o sentido e a legitimidade da obrigatoriedade de ser civilizado, de frequência e avaliação do sistema de ensino, ou de um sistema militar, ou religioso...
Aliás, o simples facto, anódino e inofensivo, de alguém querer ser selvagem não me parece encontrar solução nem acolhimento no cardápio de direitos, liberdades e garantias, do catecismo das nações civilizadas.
Ou não vivemos numa civilização à força, que tem como bandeira a liberdade?

Rui Baptista disse...

O comentário de Carlos Ricardo Soares, dizendo palavras duras com pedras arremessadas contra a estupidez de cartas medidas políticas anti-democráticas, está perfeitamente sintetizada no parágrafo inicial do seu comentário escrito num louvável estilo literário que todos os democratas, de todos os quadrantes políticos nela enquadrados, devem aplaudir por debater a Educação (tal como a Saúde), pilares de países procupados com o bem-público. Obrigado!

Rui Baptista disse...

No meu comentário anterior (2ª linha 1º §),corrijo "cartas": certas.

Rui Baptista disse...

Aliás, a concessão de licenciaturas a todos os bebés recém-nascidos deveria ser feita aquando do seu registo nas Conservatórias de Registo Civil. Desta forma, poupar-se-ia muito "caroço" (passe o plebeísmo) ao Ministério da Educação!

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