sábado, 16 de novembro de 2019

"Novo" modelo de avaliação, "novas" suspeitas sobre os professores

(…) a desvalorização ou supressão da avaliação no sistema educativo 
em nada serve uma correcta e eficaz promoção social dos alunos. (…).
Porque a ausência generalizada duma avaliação correcta, isto sim, 
é uma das grandes causas do abaixamento geral do ensino, 
e com isto ninguém verdadeiramente ganha.
João Boavida et al, 1986 p. 265.

Na década de 1990, depois de uma tão longa quanto diversa e inconclusiva discussão sobre a avaliação escolar, foi publicado um "novo" modelo (Despacho 162/ME/91Despacho Normativo n.º 98-A/92. Anunciado como revolucionário, teve os seus tempos de glória, as suas actualizações e, na ordem natural das coisas, acabou revogado.

No âmbito da dita "profunda reforma do sistema de ensino" em curso, que tem em vista o "sucesso educativo pleno", surgiu outro "novo" modelo de avaliação, no essencial, semelhante,  ao acima mencionado. Tal como antes, na comunicação social, em trabalhos académicos e em documentos de organizações com ampla influência no sistema (por exemplo, o Conselho Nacional de Educação) veiculam-se, mais ou menos explicitamente, ideias que enviesam, à partida, a discussão que se possa ter sobre ele.

Uma dessas ideias é clássica: os professores que interrogam o modelo são "resistentes à mudança", nomeadamente, porque a "avaliação tradicional" lhes confere um especial poder de que não estão dispostos a abdicar. Neste particular, retomam-se argumentos como os que se seguem:
“Os professores sabem que as notas não são fiáveis, que não dariam a mesma nota ao mesmo trabalho se lho apresentassem algumas semanas mais tarde e que os seus colegas dariam notas diferentes a esse mesmo trabalho. Eles sabem que são incapazes de precisar, mesmo para si mesmos, os objectivos e critérios de notação. Eles sabem que não sabem em que consiste o «nível» mínimo que permite «passar». Sabem que escapar à média é absurdo. Conhecem os efeitos da estereotipia e de halo. Sabem mas não querem saber que sabem. Sabem inconscientemente. E é por isso que podem em boa fé falar da sua consciência profissional. Ela é, de facto, inocente: trata-se sim do inconsciente! Mas porquê? O que é que eles defendem com esta resistência? (...) Defendem um prazer. Um prazer de má qualidade mas seguro, garantido, quotidiano. Um prazer que se tem de disfarçar para ser vivido sem culpabilidade (...) Esse prazer, é o prazer do Poder com P maiúsculo. O professor é o mestre absoluto das suas notas. Ninguém, nem o seu director, nem o seu inspector, nem mesmo o seu ministro, podem fazer nada quanto às notas que ele deu. Pois foi de acordo com o seu carácter e a sua consciência que ele as deu. Com o seu diploma, foi-lhe reconhecida a competência de avaliar (o que não deixa de ter graça!). A sua consciência profissional é inatacável. Na sua tarefa de avaliador, ele é omnipotente. E esse domínio significa poder sobre os alunos. A omnipotência de avaliar: um prazer que vem dos infernos e que não podemos olhar de frente” P. Ranjard, 1984, 93-94 cit. em Ph. Perrenoud, 1992, 169-170. 
“Lá no fundo da sua alma e da sua consciência profissional, o professor constrói álibis para manter o império do poder, a decisão inapelável do juiz. Mas é um poder infeliz cujas consequências não se podem ver. Porque se um professor (um profissional) visse a injustiça que tantas vezes pratica, visse os traumas que provoca, o carácter aleatório das notas que dá a dependência que cultiva não poderia advogar a manutenção de tal perversidade. Qual Orfeu, sabe que no momento em que se voltasse para olhar as consequências do seu poder imediatamente o perderia? E, no entanto, é preciso olhar. É preciso abdicar deste prazer-poder culpado ...” F. Alves & J. Formosinho, 1992, 15. 
Não obstante a distância temporal, percebe-se um mesmo modo de pensar. Modo esse que em nada concorre, como notava João Boavida em finais dos anos de 1980, num artigo de que retirei a citação de entrada deste texto, quer para a elevação do ensino, quer para a igualdade social. E, claro, "com isto ninguém verdadeiramente ganha".

Referências
Boavida, J., Lopes, M. C. & Vaz, P. (1986). Avaliação: Tópicos para uma mudança de atitudes. Revista Portuguesa de Pedagogia, 20, pp. 261-277. 
Perrenoud, Ph. (1992). Não mexam na minha avaliação! Para uma abordagem sistémica da mudança pedagógica. A. Estrela A. Nóvoa. (1992). Avaliação em educação: novas perspectivas (155-173). Lisboa: Educa.

4 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

A instituição Escola Pública tem uma importância e uma relevância, pela sua falta ou pela sua função efetiva, que merecia, de há muito, que os governos a reconhecessem e não apenas como mais um dos elementos da retórica com que se propagandeiam e compõem os paradigmas das funções do Estado. Dispondo o Estado de um meio tão poderoso para promover o desenvolvimento, a cultura, a economia, a justiça social, a saúde e o bem estar das populações, se não o utiliza devidamente, ou se o utiliza para promover o contrário daquilo que lhe compete, estamos perante um grave problema de visão do Estado e de políticas educativas, com nefastas e perversas consequências no tecido social. Quando o que é suposto resolver um problema, em vez de o resolver se torna o principal factor desse problema, então estamos perante uma situação política muito singular. Se é por vontade das forças políticas dominantes que a Escola não "resolva" o problema, até pode ser vantajoso que ela não "funcione".
As avaliações, na realidade, servem para saber as coisas, as condições da Escola, as políticas educativas e o desempenho, o grau de consecução/realização dos objetivos, sendo certo que estes, em grande medida podem ser antagónicos, mesmo quando aparentemente coincidentes.
As avaliações propõem-se trazer para a mesa de trabalho material sólido para definir estratégias e estabelecer parâmetros, mas esse poder das avaliações acaba por ser também, ironicamente, o ponto mais fraco do sistema. É como se tudo devesse apontar para esse vértice de uma pirâmide e, afinal, tivéssemos de concluir que se trata de uma pirâmide invertida.
Por outro lado, a propósito da escola inclusiva, que é um conceito que tem imensos méritos, os governantes, que se notabilizam por serem erráticos, desorientados, contraditórios e incoerentes, elevaram estes defeitos a expoentes máximos ao falarem de escola inclusiva para os alunos mas que é segregadora, discriminatória e injusta para os professores.
As avaliações também servem para isto...E para avaliar a escola que existe em função da que se pretende.

Anónimo disse...

Com o advento do Menino Jesus há dois mil anos, as escolas, no Ocidente, sediaram-se, sobretudo em igrejas e conventos. Os significados etimológicos de sé e catedral não deixam dúvidas quanto aos lugares onde residiam os saberes “escolásticos” na Idade Média.
Já com o advento da Revolução Industrial, os Estados, propriamente ditos, verificando que, para fabricar e trabalhar com geringonças a vapor, o povo tinha de saber mais do que segurar na rabiça do arado que lavra a terra, começaram a construir escolas onde se aprendiam “saberes” técnicos e científicos essenciais ao progresso das sociedades e muito diferentes daqueles que se vinham transmitindo, de geração em geração, em serões há volta fogueira. Era necessário não ficar para trás. Os países, se não queriam ficar para trás, tinham de se industrializar.
Numa fase de desenvolvimento das nações mais consolidada, os inspetores deslocavam-se às escolas primárias para averiguarem se os professores realmente ensinavam e os alunos realmente aprendiam. Esta era a escola do conhecimento. Porém, no século XX, ideólogos alucinados conseguiram impor a ideia peregrina de que na escola moderna não se deve ensinar – a função primordial da escola é passar diplomas. Porquê? Essencialmente, por uma questão de justiça social: é ou não é uma evidência sociológica que os diplomados são ricos e os não diplomados são pobres? Então, porque não diplomar à força TODA a população?! Com este procedimento expedito e eficiente, um professor que ignore as técnicas de diagnóstico e tratamento de doenças psíquicas, sem as quais não conseguirá ensinar um aluno doente que lhe entre na sala de aula, escusa de se preocupar, basta-lhe preencher e cumprir um plano pedagógico ad hoc para que o aluno em causa fique automaticamente diplomado. Se houver mais alunos em circunstâncias idênticas, o procedimento repete-se. No fim, seremos todos ricos e felizes.
Um sistema de ensino, baseado na fraude e na loucura, é sustentável?!

Anónimo disse...

Errata: onde se lê "há volta da fogueira", deve ler-se "à volta da fogueira".

Helena Damião disse...

Além de uma resenha muito tão breve quanto clara da evolução do ensino no Ocidente, num registo irónico, o Leitor identifica com precisão a (apregoada e enganosa) orientação do currículo do século XXI: tornar "todos ricos e felizes". É essa a lógica do empreendedorismo, pedra-mestra da educação escolar. Sabemos, contudo, que a verdadeira orientação é de deixar a grande massa populacional no limiar da pobreza num nível de contentamento próximo da alienação.
Se esta orientação é sustentável? Bom, esperemos que o não seja. Se o for é a própria civilização que está em causa.
Cordialmente,
MHDamião

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