domingo, 6 de outubro de 2019

"Propomos que sejamos adultos"

Tanto a Psicologia como a Medicina têm sido criticadas por se direccionarem para a doença, para os problemas de ordem mental e física, já instalados na pessoa ou na sociedade. O seu carácter, digamos, tradicional, é sobretudo de remediação. Ora, a partir de um determinado momento, ganhou visibilidade a importância de se trabalhar em prol da "sanidade", da prevenção da doença. 

Na Psicologia moderna, que se apresenta como disciplina científica, esse momento é recuado, situando-se entre o início e meados do século passado, nele se destacando a psicanálise (por exemplo, Carl Jung) e a psicologia humanista (por exemplo, Carl Rogers e Abraham Maslow). Até aqui, tudo bem.

Acontece que, nas décadas mais recentes, muito em virtude da generalização do modo pós-moderno de pensar, cruzado com influências sociais, políticas e ideológicas que o superam em termos irracionalidade, esse redireccionamento (da doença para a saúde) tornou-se num "movimento" que já não pode ser perspectivado no domínio da ciência, se é que alguma vez o pôde ser. 

Tal movimento designado por "psicologia positiva" tem-se imposto dentro e fora das fronteiras da Psicologia (nomeadamente na Educação e, de modo mais específico, na educação escolar, com implicações directas para o currículo) afirmando a necessidade e a urgência de potenciarem as capacidades humanas com vista à felicidade. Não é, sob o ponto de vista das intenções, uma finalidade despropositada, sem sentido, desadequada...

A questão está no modo como se encara o conceito de "felicidade" e se entendem as capacidades humanas bem como o seu desenvolvimento. Sendo tão abrangente e exigente tem, necessariamente, de polarizar o melhor, o mais sólido conhecimento filosófico (sem esquecer o ético) e científico. E é isso que não acontece. 

Apropriada por quem tem e por quem não tem formação psicológica, filosófica e pedagógica, ou quem tem formação numa área mas não nas restantes, a psicologia positiva tornou-se um campo de ideologia, de doutrinamento por excelência, travestido de "ciência de ponta".

Saiu recentemente, com tradução em Portugal, um livro que explica o que acima disse, explica, sobretudo, a "indústria da felicidade e do desenvolvimento pessoal". O seu título é A Ditadura da Felicidade. Os seus autores (Edgar Cabanas, psicólogo e investigador no Max Planck Institute for Human Development, Berlim, e Eva Illouz, professora de Sociologia e Antropologia na Hebrew University of Jerusalem e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris) estiveram no nosso país e foram entrevistados por Bárbara Wong. Eis algumas passagens dessa entrevista que saiu ontem no jornal Público (aqui).
[Trata-se de] "uma crítica à forma como a felicidade é apresentada pela Psicologia Positiva, como esta se tornou numa indústria, a do bem-estar, e num negócio que movimenta milhões de euros. Mas esta é também uma forma de controlar a vida das pessoas, concentradas que estão em si mesmas, não se preocupando com o que se passa à sua volta. 
No livro dizem que este conceito de felicidade foi criado pela psicologia positiva (PP) e que não tem credibilidade. Porquê? A PP não é nova, mas reivindica ter descoberto o segredo da felicidade. A novidade está na introdução da ideia que a felicidade pode ser um conceito científico, mas isso não é verdade. A PP tem sido criticada, porque há problemas metodológicos e pressupostos religiosos que são fruto da cultura americana. O que defendemos é que somos cientistas e que temos de estudar cientificamente [o assunto felicidade]. O que se passa é que a PP procura legitimar cientificamente aquilo que é um pressuposto cultural. 
Não é isso que os psicólogos fazem? Esse é um dos grandes problemas dos psicólogos, porque [na PP] dizem às pessoas o que fazer. E isso cabe aos políticos. Por isso, denunciamos que estes psicólogos são políticos e não cientistas. Somos cientistas sociais e cabe-nos providenciar ferramentas para pensar de maneira crítica, para compreender os fenómenos da maneira mais rigorosa possível. A decisão cabe às pessoas. A felicidade não é um conceito científico, mas cultural, político. Não há ciência que possa dizer objectivamente o que é a felicidade. A alternativa não é uma ciência da felicidade melhor, mas uma forma mais responsável e democrática de pensar sobre a felicidade, uma forma que não esteja relacionada com o consumo. 
A vossa proposta é a de um mundo em que as coisas se fazem por obrigação e não pelo prazer que podemos ter? Não. Propomos que sejamos adultos. Não somos contra sorrisos, esperança, alegria. Não propomos que as pessoas sejam tristes, mas que se riam, que tenham sentido de humor. O que não gostamos é que nos relacionemos com o mundo de uma maneira infantil."

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