sábado, 12 de outubro de 2019

"Na audácia de conhecer e na irradiação do saber e do conhecimento" afirmada por Kant e recordada por Vitor Aguiar e Silva

Tomamos a liberdade de reproduzir um texto de Vítor Aguiar e Silva, professor da Universidade do Minho, publicado no passado dia 5 de Outubro, no Diário do Minho com o título Cultura e Modernidade. É um texto admirável pela clareza e profundidade com que se apresenta aquela que deve ser a finalidade última de toda a educação com particular destaque para a educação escolar: a humanização através da cultura tendo por horizonte a perfectibilidade. Deixamos um especial agradecimento ao autor por ter recordado essa finalidade num momento (mais um momento) em que ele é reiteradamente omitido ou, mesmo negado.
Maria Helena Damião e Isaltina Martins.
Nas línguas europeias modernas, tanto românicas como germânicas desde os finais da Idade Média, cultura é um substantivo que designa um processo relativo aos trabalhos agrícolas: cuidar e tratar das produções dos campos, em especial dos cereais e dos animais. 
Desde o século XVI, porém, a palavra cultura, mediante uma extensão metafórica do seu significado originário, passou a designar também o processo de desenvolvimento e enriquecimento do espírito humano, retomando-se assim a semântica metafórica que existia já em latim, pois que Cícero se refere à cultura animi, ao cultivo do espírito. 
É este mesmo significado metafórico que Francis Bacon atribui ao vocábulo quando afirma que a cultura é «a geórgica do espírito (observe-se como nesta expressão metafórica, através da relação intertextual vergiliana, perdura e se enriquece a conexão semântica com a esfera dos labores agrários). Tal como o lavrador com o seu trabalho, os seus cuidados persistentes, as suas intervenções técnicas – a lavra, a rega, a poda, a enxertia, etc. –, melhora e modifica a natureza, assim a cultura melhora, transforma e potencia a natureza do homem. 
O humanismo do Renascimento, com os seus conceitos de humanae litterae e litterae humaniorum, concebe a cultura como a construção do homem entendido como animal doctrinabile, constituindo o fundamento e o horizonte teleológico do desenvolvimento integral do homem: desenvolvimento cognitivo, desenvolvimento espiritual, desenvolvimento moral e desenvolvimento social. 
Os studia humanitatis têm a função de realizar as potencialidades da natureza, donde se conclui que a cultura nem é redutível à natureza, nem é uma idealidade independente da natureza. A cultura é uma paideia, uma educação, uma traditio, uma memória, uma transmissão e uma continuidade de valores, que transforma o homem-natureza, o homem incompositus («desordenado»), num homem cultivado pela sapiência, pela doutrina, pela virtude, pela nobilitas morum («nobreza dos costumes») e pela elegância do espírito. 
O Iluminismo potenciou até ao seu limite máximo o conceito da humanitas como construção da cultura: o homem, graças às Luzes, ao conhecimento, ao pensamento crítico, à ciência, venceria todas as servidões, todas as intolerâncias e todas as injustiças. Kant exprimiu admiravelmente esta concepção construtivista da cultura no & 83 da Crítica da Faculdade do Juízo, ao afirmar que «a produção da aptidão de um ser racional para fins desejados em geral (por conseguinte na sua liberdade) é a cultura. 
Por isso só a cultura pode ser o último fim, o qual se tem razão de atribuir à natureza a respeito do género humano». A ciência, a moral e a arte são as esferas humanas processualmente configuradoras da Kultur, no âmbito objectivo e no âmbito subjectivo. 
No generoso projecto das Luzes, o desenvolvimento global do homem, das sociedades e dos povos assenta na cultura em sentido kantiano, na audácia de conhecer e na irradiação do saber e do conhecimento. É um projecto universal, porque se funda na universalidade da razão, em particular da razão filosófica e científica. Como sublinha Kant, a condição formal para que a condição humana alcance a sua realização cultural é a constituição de um todo, formado pelas relações dos homens uns com os outros, denominado sociedade civil, mas também o desenvolvimento de um todo cosmopolita, isto é, de um sistema de todos os Estados «que se arriscam a actuar entre si de forma prejudicial».

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