domingo, 10 de março de 2019

Do passado ao presente — Manuais escolares

Num tempo em que tanto se fala de criatividade e inovação, em que se diz que o aluno de hoje não é o mesmo de outros tempos, que são outras as metodologias, que são outras as matérias a aprender, é importante compararmos manuais do passado e do presente, analisar os métodos utilizados, os exercícios propostos aos alunos. Serão assim tão diferentes dos de hoje?

Percorrendo velhos livros esquecidos no fundo de um baú, eis que chama a atenção uma capa, bem carcomida pelo tempo, exibindo umas florinhas ainda coloridas, fazendo lembrar os bordados da
mala do enxoval.

Trata-se de um Manual para o Ensino Primário Elementar, um Livro de Leitura para a 3.ª classe da autoria de Romeu Pimenta e Domingos Evangelista, publicado pelo Editor Domingos Barreira, do Porto. O Livro, com a indicação de “Aprovado oficialmente”, tem a data de 1944. Dos mesmos autores podemos encontrar na internet a referência à versão já actualizada pelo Acordo Ortográfico de 1945.

Interessante analisar a estruturação do livrinho de leitura e as suas orientações pedagógico-didácticas, um bom ponto de partida para a comparação com os programas e os manuais da actualidade.

1. Estrutura do Manual

Para cada texto a mesma orientação:
— encimando a página, uma imagem para a qual, sob a rubrica “Observação”, são colocadas várias perguntas directas com vista à observação da gravura;
— segue-se o texto, que remete para algumas notas com explicação dos vocábulos menos usuais; — no final, uma rubrica intitulada “Elocução”, inclui um conjunto de perguntas para interpretação do texto;
— Na continuação da “lição” são propostos exercícios variados, grande parte deles para enriquecimento vocabular (palavras derivadas, palavras cognatas, formação de diminutivos...), questões de morfologia (flexão verbal, pronomes,...), etc.;
— esta última parte pode ainda requerer o desenho de um objecto relacionado com o texto, ou mesmo a resolução de um problema de matemática;
— há também exercícios de caligrafia;
— por vezes são pedidos textos mais elaborados, que envolvem, por exemplo, o comentário às ideias transmitidas pelo texto estudado, um juízo de valor sobre a actuação das personagens, ou contar uma história a partir de imagens apresentadas.

1.1. O estudo da língua

Nota-se a preocupação com o estudo da língua, sendo os exercícios bastante variados:
— categorias morfológicas (substantivos, adjectivos, advérbios, preposições, pronomes) — exercícios sobre género e número
— conjugação verbal
— formação de palavras
— elaboração de textos descritivos (descrição de um objecto, de uma flor...)
— texto narrativo (contar uma história a partir das imagens, por exemplo)
— elaboração de resumos
— texto livre

2. As orientações didácticas 


Os exercícios vêm com o respectivo verbo de acção, indicando o que se pretende, quer atra-vés do conjuntivo exortativo/imperativo: “coloque por ordem...”, “forme palavras...” “escreva...” faça a descrição de...” , “diga a razão...”, “explique...”, quer através do infinitivo “ formar...”, “escrever...”, “colocar...” “explicar...” ou mesmo dirigindo-se ao aluno para que pergunte ao professor determinado nome, de uma cidade, de um país, e o escreva no mapa que é apresentado.



3. A expressão de ideias, de valores pessoais, de um juízo crítico

Através de uma interpelação directa, o aluno é chamado a ter opinião, a analisar e criticar, a exprimir aquilo que pensa:
“Quem acha o menino que será o nosso próximo?”
“Diga, pelo exame das gravuras, qual é o monumento de que mais gosta e porquê.”
“Diga por que é que a guarda da linha é digna de censura, assim como os viajantes. Diga também qual foi a mais prudente de todas as pessoas citadas neste texto.”

4. Os textos e os temas abordado

Os textos são, quase todos, dos autores do manual, visto que não têm indicação de autor, com excepção de alguns poemas de Afonso Lopes Vieira ou de João de Deus.
Quanto aos temas, é aí que vemos bem a marca de uma época. Referem-se, em geral, a um mundo rural, de exemplo a seguir, um mundo feliz na sua simplicidade.
Assim, abundam textos que têm como personagem central animais (formigas, cão, carneiro, galinhas, sapo e outros), os trabalhos do campo, as diferentes culturas e todo o ambiente envolvente (a batateira, a água, a azenha, o linho) e os exemplos de trabalho simples, modesto e humilde.
Não faltam também os textos relacionados com as ciências e a história (Pasteur, as estrelas, os planetas, Vasco da Gama, Infante D. Henrique, Camões ...) ou a geografia ( Europa, Brasil, a terra, Portugal..). Outros são de carácter religioso (Jesus Cristo, Jesus e o rapazinho doente, Parábola de Jesus Cristo...).
O ponto comum em todos os textos é a intenção moralizante, procurando sempre transmitir uma lição, um valor importante a preservar. Causaria, com certeza, estranheza no mundo de hoje um texto em que se fala da gulodice, apresentada como um vício a ser combatido!

No essencial, excluindo a temática dos textos, o estudo da língua, os exercícios propostos, os métodos são idênticos aos de hoje. É claro que a apresentação é hoje outra, que as tecnologias alteram muitos dos métodos, mas a essência está lá, os objectivos de aprendizagem não diferem dos da actualidade. Também lá está, à maneira de então, o espírito crítico, a criatividade, o trabalho individual, os vários passos para a compreensão do texto, que vão da compreensão à interpretação e à análise da linguagem e das personagens e seus valores. Objectivo principal: aprendizagem, conhecimento, ler e escrever, visto que se trata de um livro de leitura.

Isaltina Martins

Sem comentários:

OS HABITANTES DA ESCURIDÃO

Os canalhas não gostam do ar puro, por isso gostam sempre de o sujar. Buscam o escuso e o escuro. para aí poderem chapinhar. As suas mor...