segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O treino "pedagógico" da felicidade

"E, nos Estados Unidos da América, um estudo longitudinal 
concluiu que uma intervenção ao nível da primeira infância 
foi capaz de reduzir os índices de infelicidade das crianças 
em níveis de ensino mais avançados."
Andreia Lobo, 2018 (aqui)

Uma das orientações internacionais mais recentes e também mais fortes para os sistemas de ensino - na linha da "educação do futuro", da "educação do século XXI" - é que promovam, a curto prazo, medidas para tornarem os alunos felizes, isto a par de os tornarem bons cidadãos, saudáveis, empreendedores, resilientes, compassivos, com elevada auto-estima, etc.

Têm-se feito mudanças no currículo no sentido de promover a felicidade e desenvolvido programas com esse fim para serem aplicados em contexto escolar, a que se segue a medição dos seus efeitos nas crianças e nos jovens, podendo obter-se índices de felicidade.

Através dos Estados e servindo-se da educação formal, organizações como a OCDE, entram cada vez mais fundo na "alma" humana. E fazem-no em idades precoces, como convém para serem bem sucedidas.

De sentimento etéreo, indizível e fugaz, a felicidade passa a ideologia que se treina, segundo critérios de eficácia, num certo número de sessões.

A verdade é que não bem sei o que dizer quanto a isto: o que penso saber e intuir sobre a felicidade, o que considero ser a educação, sobretudo a que acontece na escola pública, foi (mais uma vez) distorcido. Que argumentos posso usar para explicar o que, para mim, é tão óbvio: que a felicidade, por ser um estado íntimo, que só ao próprio diz respeito, não é objecto de instrução?

Guardei um texto de José Tolentino Mendonça, publicado há dois meses (em 22 de Setembro) na revista do jornal Expresso por me parecer que ele decorreu de questão semelhante à minha. Aqui reproduzo o essencial desse texto:
Por irónico que possa parecer, a ideologia da felicidade – que hoje contamina todos os planos da vida e da sua representação – tem disseminado de modo maciço a frustração, a tristeza e a infelicidade. Tornamo-nos mais infelizes a partir do momento em que erguemos a felicidade como idealização que absorve o nosso imaginário e ainda não percebemos até que ponto esse conceito abstrato se tornou uma armadilha que nos aprisiona no seu inverso. Numa sociedade que faz da apologia da felicidade a todo o custo o seu credo, todos nos sentimos culpados e defraudados, incapazes de perceber que estado seja esse e como realmente se obtém. 
Basta olhar para as definições de felicidade: as únicas com sentido são aquelas que escapam sabiamente a todo o esquematismo (...). O que nos faz felizes tem de ser uma experiência infinitamente mais humilde do que o standard fantástico requerido pela ideologia da felicidade. 
Hoje ouve-se muitos pais dizerem acerca dos filhos e do seu futuro: “Não quero influenciar o rumo que o meu filho vai seguir (...) desejo apenas que ele seja feliz" (...). O amor, na verdade, não é desejar que alguém seja feliz, e ainda menos que seja apenas feliz. Como ensina Santo Agostinho, o amor é antes um volo ut sis, “quero que tu sejas”. Mais do que os estados que se atravessam e do que deve prevalecer para lá das horas solares ou noturnas, dos processos de florescimento ou de impasse, da dança descendente da penumbra ou do desenho aéreo do júbilo. Não podemos desejar que alguém seja apenas feliz.
Isso equivale a coartar a vida e a fantasiá-la perigosamente. Cabe-nos estimular os que amamos à corajosa aceitação da vida, no que ela tem de plenitude, mas também de vazio e até de deceção. Pois a quanta sabedoria só acedemos por essa ponte de corda que nos aparece suspensa sobre o abismo e pela qual caminhamos de olhos vendados e trémulos. 
Lembro-me muitas vezes de uma passagem de um poema de Giuseppe Ungaretti que diz: “Jamais, jamais sabereis quanto me ilumina/ a sombra que vem, tímida, colocar-se a meu lado/ quando desisto de esperar.” Nem sempre a sombra é o contrário da luz, como a árdua fadiga de viver não é o contrário da felicidade. São etapas do mesmo rio que corre. Há lágrimas que nos consolam tanto ou mais do que muitos sorrisos. E há dores que nos introduzem numa experiência de gestação e de comunhão, que não julgaríamos possível.

3 comentários:

Anónimo disse...

Com esta "pedagogia da felicidade" implantada nos jardins de infância, a minha proposta de sucesso educativo obrigatório em 12 anos de escolaridade, que tenho vindo a defender ao longo dos últimos meses, carece de alguma retificação nos termos do seu enunciado, ou seja, onde se lê "12 anos de escolaridade" pode passar a ler-se "16 anos de escolaridade", ou até "vinte e tal anos de escolaridade", assim haja vontade e engenho políticos para estender a felicidade obrigatória a todo o universo discente do ensino superior e politécnico!
Ao que nós chegamos!...

Ines Leite disse...

The portuguese economy is in the toilet, and droves of it's citizens are fleeing to neighboring Spain to work just to put food on the table! Those who don't go to Spain are swimming, or jumping on bannana boats to go to Angola or Mozambique just to sell their body for cod to feed their families. The slightly better off portugee are flying to Brasil to live in a favela that is much better than the poor, decrepid conditions they live in now; at least here they can eat.
I observed the portuguese to be an ignorant bunch stuck in a mental time-warp that only focus on "how" good things were in the distant past rather than focusing on their now deteriorated, non-existant economy, and how bad things really are today.
Perhaps, this is "why" they can't seem to see the log stuck in their eyes but see the splinters in everybody elses eyes. I do find it ironic that they are racist toward Spain, Angola, Mozambique and Brazil only to later go look for a better life in these countries!

R. disse...

Quanto à apologia da felicidade, o texto e visão aqui partilhados são eloquentes e esclarecedores. Já a ideia de promover um perfil de personalidade, que se determina como ideal, é profundamente questionável do ponto de vista do respeito por direitos tão fundamentais quanto o da auto-determinação e liberdade individual. Lembra, aliás, o pior de certos regimes que preconizaram povos perfeitos e superiores. E em consonância com a pretensão de efectivação de qualquer plano ideológico, não faltam os meios ilegítimos de verificação (“mas há um número de instrumentos que podem ser usados de forma confiável”. Entre eles: autorretratos de personalidade, características comportamentais e avaliações psicológicas objetivas"). Este tipo de hipótese constitui, por si só, uma grave infracção etica, pois, como é sabido, só se avalia psicologicamente para intervir, com consentimento do próprio e garantindo princípios éticos fundamentais de privacidade e confidencialidade. Só um profundo retrocesso civilizacional, ao arrepio da legislação, explicaria que o estado sujeitasse os seus cidadãos mais vulneráveis (crianças e adolescentes) a tamanho abuso.

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