quarta-feira, 25 de julho de 2018

"A nova pedagogia é um erro"

A expressão que dá título a este apontamento é de Inger Enkvist, ex-professora do ensino secundário, catedrática emérita de espanhol e ex-assessora do Ministério da Educação Sueco. Dedicou grande parte da vida académica ao estudo comparativo dos sistemas educativos, tendo publicado diversas obras nas quais dá conta da sua posição crítica no que respeita às opções que têm sido tomadas nesses sistemas. 

Numa entrevista recente que Cristina Galindo, jornalista do EL PAÍS, lhe fez apresenta alguma razões que justificam tal posição (ver aqui). Traduzimos o essencial da entrevista, que apresentamos de seguida.
Isaltina Martins e Maria Helena Damião


Imagem recolhida aqui.
Enquanto a maioria dos especialistas em educação questiona a utilidade de memorizar informação na era do Google, advogando a importância de se mudar a disposição da sala de aula, de se acabar com as disciplinas e de dar mais liberdade aos alunos, Inger Enkvist chama a atenção para a necessidade de se voltar a uma escola tradicional onde esteja presente a disciplina, o esforço e a autoridade do professor.

Questiona os postulados da nova pedagogia, mas também se distancia daqueles que vêem na escola uma fábrica de alunos, uma escola centrada na competição para obterem um bom lugar em classificações mundiais.

Como recorda a sua escola? 
Era pública e tradicional. Não tenho más recordações. Talvez houvesse algumas aulas aborrecidas, mas às vezes a vida é assim. Os alunos chegavam a horas e não havia conflitos com os professores. A Suécia deu-me uma educação gratuita e de qualidade.
Ainda é pertinente a disciplina desse tempo?  
A relação entre pais e filhos baseia-se mais do que nunca nas emoções. Temos uma vida mais fácil e queremos que os nossos filhos também a tenham. Mas a escola não pode deixar de estar consciente de que a sua tarefa principal continua a ser a formação intelectual dos jovens. A escola não pode ser um infantário, nem o professor pode ser um psicólogo ou um assistente social. 
Qual deve ser a finalidade do ensino básico? 
Deve ser muitas coisas, mas a sua tarefa principal é dar uma base intelectual. Dar conhecimentos aos jovens, prepará-los para o trabalho, transmitir-lhes uma cultura e proporcionar-lhes uma ideia de ordem social, porque a escola é a primeira instituição na qual as crianças se integram e, por isso, é importante que percebam que há algumas regras, que o professor é a autoridade e que há que respeitá-lo, assim como aos colegas. 
Porém a tecnologia torna mais difícil controlar as crianças hiperestimuladas 
(...) O novo desafio é controlar o acesso ao telemóvel e ao computador para que se concentrem. A escolas que proíbem o telemóvel fazem bem. Em casa, os pais deviam vigiar o tempo de uso da tecnologia. Proibir é muito difícil porque se criam conflitos, mas um pai deve saber dizer que não. Deve resistir. 
Há pedagogos que afirmam que a escola tradicional é aborrecida e torna as crianças submissas e que se deve "aprender a aprender".  
A escola é um sítio para aprender a pensar com base em informação. Insistir no "aprender a aprender" sem se colocar antes a aprendizagem é uma falsidade porque não podemos pensar sem pensar em algo. Sem informação, não há possibilidade de pensar.  
A escola não deveria ser um lugar onde se está bem? 
A satisfação com a escola deve estar vinculada ao conteúdo: entrar numa aula e aprender-se algo que não se sabia. Mas para se entender algo novo é preciso fazer um esforço. É fundamental que o professor ensine a ler e também como se comportar. É impossível aprender bem sem que haja ordem na aula. Essa é a base principal: comportamento, leitura e apreço pelo conhecimento.  
Qual a sua opinião em relação à tendência de usar almofadas nas salas de aula para que os alunos se deitem? 
Isso é enganar os jovens. Para aprender a escrever, uma criança tem de se sentar bem, olhar para a frente, ter uma folha e papel, concentrar-se… Aprender pode ser um prazer, mas, insisto, requer esforço e trabalho. Há que dizer isso às crianças. Se não, estamos a enganá-los. Tocar violino, por exemplo, não é fácil. Requer muita prática. Os estudos do psicólogo sueco Anders Ericsson mostraram que necessitamos de fazer um esforço prolongado para melhorarmos em qualquer coisa. Para ser bom em algo temos de dedicar-lhe 10.000 horas. E há que fazê-lo de forma consciente e trabalhar com um professor. A sua investigação corrobora a ideia tradicional de uma escola baseada no esforço do aluno sob a direcção de um professor.  
Alguns dizem que não é preciso memorizar porque está tudo no Google. 
Essa é outra ideia falsa. O Google é um instrumento genial. É de uma grande ajuda para os adultos, porque sabemos o que procuramos. Mas para quem não sabe nada, o Google não serve de nada. Há intelectuais que andam por aí dizendo que estudar Geografia não lhes foi nada útil. Creio que se terão esquecido de como e quanto aprenderam na escola. Afirmar tais coisas é uma falta de honestidade para com os jovens. É subestimar a importância da vida intelectual do aluno.  
Em que consiste a nova pedagogia que critica? 
A nova pedagogia é um pensamento que se vê por todo o Ocidente. A Suécia implementou-a nos anos sessenta. Consiste, por exemplo, na reduzida gradação das notas, daí que muitos pensem: para quê estudar se isso não se vai reflectir na média? Dá-se importância à iniciativa do aluno, trabalha-se em equipa e, enquanto desaparecem os exames, aparecem os projectos e as novas tecnologias. Em geral, parece que se vai à escola para fazer actividades, não para trabalhar e estudar. Dá-se mais ênfase ao social do que ao intelectual. Em Espanha essa tendência chegou mais tarde (...). Creio que é um erro. Por um lado, os alunos com mais capacidades não desenvolvam todo o seu potencial e, por outro lado, os que têm menor curiosidade por aprender não avançam. Além disso, muitos gostos são adquiridos, como o da história, o da leitura ou da música clássica. Ao princípio podem parecer aborrecidos, mas, se alguém insiste para que tenhamos um primeiro contacto, é possível que se acabe gostando. Agora muitos jovens escolhem sem ter conhecimento e, claro, escolhem o que é fácil (...). 
Como despertar o prazer[da leitura] se uma criança não está interessada? (...) 
Talvez a princípio tenham que se forçar um pouco, encorajá-los para que se convertam em leitores de ócio.  
Como se faz isso na escola? 
Comprar bons livros para a biblioteca e recomendar um cada sexta-feira. Um aluno pode contar o que leu nessa semana. Fazer pequenas competições para ver quem leu mais. Medir o aumento do seu vocabulário. E explicar que a leitura permitir-lhes-á, quando forem adultos, desenvolverem-se melhor. Se os alunos começarem a ler, quase todos vão perceber que é um prazer. Mas precisam de horas. Calcula-se que na maioria dos países, na primária se dedicam 400 horas à aprendizagem da leitura. Para se ser um bom leitor fazem falta 4.000 horas. É impossível ter tanto tempo na aula. É preciso fazer isso em casa (...).
Mas as humanidades estão a perder peso. 
Diz-se que o amanhã estará dominado pela tecnologia e pelas ciências naturais, e que a história não é importante. Além disso, as provas PISA (exames organizados pela OCDE que avaliam as competências dos alunos de 15 anos em ciência, matemática e leitura) não têm em conta as disciplinas humanísticas porque é difícil comparar esses conhecimentos entre países, assim a competição leva-os a dar mais ênfase às matérias que entram no PISA, descuidando as demais (...). 
A visão do PISA é a de uma escola que deveria funcionar como uma empresa? 
A OCDE é uma organização económica e analisa a educação a partir dessa perspectiva. O que o PISA não revela é se há bom ambiente na aula, se se inculcam bons princípios de trabalho, se se ensinam bem as humanidades, as ciências sociais, as matérias estéticas como a arte e a música, que são essenciais. O PISA é uma prova muito específica que analisa algumas coisas. As escolas e os países deveriam defender que oferecem muito mais do que isso. 
Nos seus livros destaca a Finlândia como um dos grandes modelos. 
A educação na Finlândia tem sido tradicional, mas há dois anos o governo implementou um programa mais parecido com o da Suécia, porque o meu país tem um rendimento escolar inferior mas tem um comportamento económico superior e criou empresas tecnológicas (...). O governo finlandês parece pensar que com um pouco de desordem as suas escolas serão mais criativas. Não acredito nisso. 
A Finlândia era tradicional? Não há exames na educação obrigatória nem os havia antes da reforma que menciona. 
Há que repensar a fobia dos exames. O exame ajuda a centrar-se num objectivo. Em que dia tens de saber estes conhecimentos. Um bom professor ensina coisas aos alunos, faz revisões com eles e dá-lhes provas para resolverem. E constroem outras aprendizagens sobre o que já aprenderam, de modo que os conhecimentos voltam a surgir mais adiante. Não fazem exames sobre algo sem importância (...).  
Na Finlândia não se comparam tanto as escolas, algo que é habitual em Espanha. É assim? 
A Finlândia segue a tradição de confiar nos seus professores. Quando há um controlo estatal do rendimento fazem-se comparações entre as escolas e o ambiente muda. Gera stresse entre os professores e também rancor em relação a quem controla. 
Como deve ser um bom professor? 
Responsável e bem formado. Deve acreditar no poder do conhecimento. Mas não é bom professor só por saber a matéria, nem só porque saber cativar os alunos. Há que combinar ambos os elementos: atrair os alunos para a matéria para a ensinar adequadamente. Há que recrutar professores excelentes que inspirem confiança nos alunos, nos pais e nas autoridades. E, a não ser que haja uma situação grave, devemos deixá-los trabalhar. 
Como foi a sua experiência em sala de aula? 
O aluno tem que respeitar as indicações do professor, fazer as tarefas e, por exemplo, não mentir. Antes, mentir era considerado muito grave. Agora parece que não. Tenho visto jovens que inventam motivos para justificar não fazerem um trabalho ou que escrevem de forma pouco legível para gerar dúvidas ou discutem a todo o momento com os professores. Sei quão desagradável é quando percebemos que um aluno nos tenta enganar (...) [neste caso] é a relação pedagógica que se rompe. 
O que fazer com os alunos que incomodam e que não querem trabalhar?  
Isso é tabu. Considera-se pouco democrático. Diz-se que se deve dar uma oportunidade a todos mas o que se passa quando uma criança conflituosa não quer trabalhar, quando se fala com ele e com os pais mas daí nada resulta? Há que pô-la num grupo à parte para ver se percebe o que se passa e se muda.  
E as crianças que se esforçam, mas não chegam ao nível? 
Pode-se dar-lhes aulas de apoio e oferecer-lhes itinerários diferenciados (...) 
E repetir o ano? 
Fazer uma criança repetir às vezes é adequado mas outras não (...) Agrada-me o sistema de Singapura, onde o lema é que cada criança possa chegar ao seu nível óptimo. Há diferentes formas de o conseguir: uma via, digamos, normal e outra via rápida. A segunda inclui mais conteúdos em menos tempo. Alguns dizem que é menos democrático, mas penso, ao contrário, que é mais democrático porque convém à família e ao Estado. E há menos abandono escolar, um problema muito mais grave.  
Não se aprende também por imitação? Quer dizer, os mais adiantados não podem puxar por aqueles que estão mais atrás? 
Isso funciona quando o grupo tem, em média, um bom nível e um bom professor. E se os que têm de se integrar são poucos e querem fazê-lo. Se não, o que acontece é que os que não querem trabalhar arrastam os demais (...).
Outro depoimento da entrevistada pode ser lido aqui.

1 comentário:

Anónimo disse...

Deixem-me dar-lhes um exemplo vivido no ensino profissional, em Portugal. As orientações da OCDE e do governo praticamente impedem as retenções dos "formandos", desde que estes assistam às imensas horas de formação previstas. Isto é tanto assim quanto na legislação aplicável nunca é menciona "reprovado" ou "retido". Dentro do mesmo espírito de defesa das aparências, "o formador" é sempre obrigado a cumprir todas as horas estipuladas, e se, por motivos de força maior, como estar doente, faltar a alguma aula, tem de a repor mais tarde, dê lá por onde der! Como diz Inger Enkvist "A OCDE é uma organização económica e analisa a educação a partir dessa perspetiva. O que o PISA não revela é se há bom ambiente na aula, se se inculcam bons princípios de trabalho, se se ensinam bem as humanidades, as ciências sociais, as matérias estéticas como a arte e a música, que são essenciais."
O triste exemplo é este:
Numa reunião de avaliação do ensino profissional, em que participei na qualidade de formador, um dos colegas da formação técnica revelou que, numa empresa em que os nossos formandos estagiaram durante dois meses, os engenheiros ficaram tão satisfeitos que estavam dispostos a contratá-los mesmo antes de completarem a formação escolar. Quer dizer, as pretensas aprendizagens dos alunos são uma farsa! Para as empresas, desde que não estejam sujeitas a empecilhos legais, tanto lhes faz que os formandos sejam diplomados pelo ensino profissional, ou não. A inutilização real do ensino secundário, que se tem verificado nos últimos anos com os objetivos, os objetivos mínimos, as competências, o fim dos conteúdos e a mais recente flexibilização, é incompreensível, para mim!
Porquê?

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