domingo, 3 de dezembro de 2017

O exílio de António Aniceto Monteiro

Texto recebido do leitor Jorge Rezende.

António Aniceto Monteiro (1907-1980) foi a mais importante figura da década prodigiosa da matemática portuguesa dos anos 30 e 40 do século passado. Foi o primeiro secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Matemática e talvez o principal impulsionador da sua fundação. Exilou-se no Brasil no princípio de 1945.

Uma carta da Secção de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), datada de 7 de Outubro de 1976, assinada por vários professores encabeçados por Alfredo Pereira Gomes, que provavelmente a escreveu, e dirigida ao Secretário de Estado da Investigação Científica, dizia explicitamente:
«O Professor António Aniceto Monteiro após o seu Doutoramento em Paris, como bolseiro do Instituto de Alta Cultura [IAC], foi nomeado, em Julho de 1936, investigador deste Instituto tendo sido em Outubro do mesmo ano demitido pela honrosa razão de não assinar a declaração do conhecido decreto n.º 27.003 [«Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas»] ficando em consequência impossibilitado de prosseguir uma carreira docente universitária o que havia de o conduzir ao exílio anos mais tarde.» (aqui)
Já em 31 de Outubro de 1945, Manuel Valadares (físico, que veio a ser professor catedrático da FCUL), em carta publicada no jornal «República», referia:
«Regressado ao País e mau grado o valor dos trabalhos que realizara no estrangeiro, [Monteiro] não encontrou lugar no corpo docente de nenhuma das três Faculdades de Ciências do País. Passou então a viver com uma modestíssima bolsa que o IAC lhe concedeu; passados alguns meses, exigiram-lhe, para poder continuar a ser bolseiro, a assinatura de um compromisso politico — que pessoa alguma lhe havia imposto ao enviá-lo para o estrangeiro. Tendo-se recusado a assinar um compromisso que repugnava a sua consciência, deixou de ser bolseiro, e a sua vida e a dos seus decorreu, de aí em diante, em condições de dificuldade económica que, por vezes, roçaram pela miséria.» (aqui)
Tanto Pereira Gomes como Valadares sabiam do que falavam. Ambos eram amigos íntimos de Monteiro, companheiros de lutas e de exílios. O primeiro fez o doutoramento sob a sua orientação e o segundo foi bolseiro em Paris na mesma altura em que Monteiro lá esteve e era seu compadre, padrinho do filho mais novo. Estas cartas confirmam e explicitam aquilo que Monteiro disse, já no exílio, numa entrevista ao jornal brasileiro «Correio da Manhã» de 10 de Novembro de 1945: «Simplesmente, recusei assinar um papel de compromisso político para poder leccionar… matemática. Por isso não me nomearam; nem modesto funcionário podia ser lá [em Portugal]. Teria que morrer à fome, com os meus, doutorado pela Sorbonne. O próprio IAC me avisou, em Outubro de 1941, de que era preferível sair do país.» (aqui)
A partir de finais de 1936, Monteiro viveu ainda com pequenos rendimentos tais como um subsídio pago pelo IAC (cujo presidente era Celestino da Costa) como colaborador no serviço de inventariação da bibliografia científica existente em Portugal. Mas no final de 1941 ou princípio de 1942 o Ministro da Educação Nacional, Mário de Figueiredo, demitiu Celestino da Costa e em Dezembro de 1942 «dispensou» os serviços de Monteiro, isto é, despediu-o.

António Aniceto Monteiro exilou-se pois no Brasil em 1945 porque estava desempregado, não tinha meios de subsistência em Portugal, por se recusar a assinar a tal declaração de submissão ao regime político salazarista. A principal razão que me leva a escrever este artigo é o facto de ter lido na Wikipedia, a propósito de António Aniceto Monteiro, que
«Existem duas interpretações dos motivos que o terão levado a abandonar Portugal. Uma primeira interpretação refere motivos políticos, que ele foi impedido de ter uma carreira universitária em Portugal, pois recusou-se a assinar um documento onde declarava o apoio ao salazarismo e o repúdio ao comunismo e às «ideias subversivas». Uma outra interpretação é a de que o próprio António Aniceto Monteiro deixou escrito de forma clara que abandonou o país, não por motivos ou perseguições políticas mas, por estar saturado das obstruções dos seus pares académicos.» (aqui)
Para esta segunda «interpretação», a Wikipedia remete o leitor para o livro de Jorge Buescu «Matemática em Portugal, Uma Questão de Educação» (aqui). De facto, foi este autor que imaginou tal «interpretação» (aqui). Segundo ele, as razões que levaram Monteiro ao exílio estão num artigo do n.º 10 da «Gazeta de Matemática», de Abril de 1942, páginas 25-26, «Origem e objectivo desta Secção [MOVIMENTO MATEMÁTICO]» (aqui), que está reproduzido no Anexo.

É aqui que, segundo a Wikipedia, Monteiro «deixou escrito de forma clara» os motivos do seu exílio. O leitor procure na rede este artigo de Monteiro («Origem e objectivo desta Secção [MOVIMENTO MATEMÁTICO]») (aqui), ou leia-o no Anexo, e verifique se aí está explicado que foi por estar «saturado da obstrução dos co­legas» que ele «decide abandonar o País em 1943 (aqui), acabando por partir pa­ra o Brasil em 1945» (aqui), conforme afirma Jorge Buescu no seu livro. A verdade é que não está – não há no texto de Monteiro qualquer referência a uma intenção de se exilar.

É certo que eu já abordei este assunto nos meus artigos «Sobre as perseguições a cientistas durante o fascismo» (Revista «Vértice», 166) (aqui) e «António Aniceto Monteiro – lutas, perseguições e exílios» («Boletim» da Sociedade Portuguesa de Matemática, 74). Mas também é verdade que continuam a alastrar na rede citações da referida «interpretação», devido à projecção mediática do seu autor. É, por exemplo, o caso da versão inglesa da entrada sobre António Aniceto Monteiro na Wikipedia.

Este falseamento da História é tanto mais estranho quanto o seu autor tem escrito vários artigos de opinião (nomeadamente, no jornal «Público») onde tem proclamado ser um acérrimo defensor «do conhecimento, do rigor e da exigência» (aqui). Pois em nome do conhecimento, do rigor e da exigência já é mais do que tempo de ser reparado este mal que foi feito.
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ANEXO: Origem e objectivo desta Secção 
Pensou-se há algum tempo em publicar um jornal — que teria por título Movimento Matemático — des­tinado a lançar uma campanha para uma reforma dos estudos matemáticos em Portugal e a fazer a pro­paganda das principais correntes do movimento ma­temático moderno.
Parece-me evidente a necessidade de publicar um tal jornal precisamente porque o nosso país anda longe das correntes vitais do pensamento matemá­tico moderno e porque o nosso ensino das ciências matemáticas necessita de uma remodelação completa: remodelação dos programas de estudo, da organiza­ção da licenciatura em Ciências Matemáticas, da pre­paração dos professores do ensino secundário, das provas de doutoramento e dos métodos de recrutamento do pessoal docente universitário.
É indiscutível que assistimos hoje no nosso país a uma verdadeira efervescência de actividade no campo das ciências matemáticas. Demonstram esta afirma­ção o aparecimento sucessivo no curto prazo de cinco anos de 1.º) Portugaliae Mathematica, fundada em 1937; 2.º) Seminário Matemático de Lisboa (1938) que toma em Novembro de 1939 o nome de Seminá­rio de Análise Geral; 3.º) Centro de Estudos de Ma­temáticas Aplicadas à Economia, fundado pelo 1.º Grupo do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (1938); 4.º) Gazeta de Matemática, Ja­neiro de 1939; 5.º) Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa, fundado pelo Instituto para a Alta Cul­tura em Fevereiro de 1940; 6.º) Sociedade Portu­guesa de Matemática, Dezembro de 1940; 7.º) Centro de Estudos Matemáticos do Porto, fundado pelo Instituto para a Alta Cultura em Fevereiro de 1942.
Anuncia-se para breve a publicação do Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, das Publica­ções da Secção de Matemática da Faculdade de Ciências do Porto e de uma colecção de Estudos de Matemática; projecta-se a criação de um Estúdio de Matemática em Lisboa.
Todas estas organizações e publicações trabalham por um ressurgimento da cultura matemática portuguesa!
Se tudo isto é muito animador e nos permite ter esperanças num triunfo mais ou menos próximo, não devemos ter ilusões de espécie alguma sobre as dificuldades que nos esperam!
Há que contar — isto é de todos os tempos! daqueles — com um recrudescimento da hostilidade da ignorância e da má fé; da hostilidade daqueles para quem a estagnação ou a decadência da nossa cultura matemá­tica é a condição necessária para a realização de objectivos que nada têm que ver com as ciências matemáticas, daqueles que tremem perante a ideia da existência de uma juventude estudiosa consagrando inteiramente a sua vida e o seu entusiasmo a uma causa pela qual eles nunca lutaram — porque o es­forço e a diligência no estudo revelam de uma ma­neira evidente os erros do passado e as deficiências do presente —, da má-fé que apregoam um interesse e um entusiasmo pelo desenvolvimento da cultura matemática que são desmentidos categoricamente pela sua actuação presente, da má-fé daqueles que consideram como revelações de inteligência e de capacidade a adoração da rotina que o uso consa­grou e de que eles são por vezes os mais legítimos representantes; há que contar ainda com a ignorância (e que enciclopédica ignorância!) daqueles que afirmam que o nosso país está perfeitissimamente ao corrente do movimento matemático moderno, que o nível dos nossos estudos matemáticos se pode por a par do dos países mais avançados, e finalmente há que contar com a indiferença (que estranha e có­moda indiferença!) daqueles que dizem que no nosso país não há nada a fazer, que os portugueses são in­capazes de realizar um esforço persistente e conti­nuado e que portanto são incapazes de contribuir para o progresso das ciências matemáticas!
Pensamos que o aparecimento destas manifesta­ções deve servir apenas para nos indicar que se­guimos pelo bom caminho — porque a cada tarefa realizada a reacção deve aumentar — e que nunca devemos desviar a nossa atenção do trabalho me­tódico e persistente para controvérsias de carácter duvidoso.
É precisamente pelo estudo, pelo trabalho de in­vestigação e pela propaganda das matemáticas, que se pode preparar o ressurgimento dos estudos matemáticos em Portugal, mas importa evidentemente orientar a nossa actuação pelas lições que nos são dadas pela nossa experiência e pela experiência das outras nações. Há que definir um rumo, e segui-lo enquanto a experiência mostrar que estamos no bom caminho!
O desenvolvimento rápido da Gazeta de Matemática — em particular a partir do início do presente ano lectivo — tornou possível o alargamento imediato da sua acção cultural e daí nasceu a ideia — para evitar uma dispersão de esforços que o momento actual não permite — de criar na Gazeta uma secção em que se desenvolveria a pouco e pouco o plano de acção que se pretendia realizar no Movimento Mate­mático. É esta a origem desta secção que se iniciou no n.º 9 da Gazeta.
Infelizmente a situação actual da Gazeta não per­mite ainda dar a esta secção todo o desenvolvimento que era necessário. Por isso temos que nos limitar a assinalar aos leitores deste número as realizações e iniciativas de valor cultural sob o ponto de vista matemático de que temos conhecimento. Esperamos que em breve seja possível, por meio da colaboração efectiva de todas as pessoas interessadas no desenvolvimento da cultura matemática, lançar uma cam­panha para uma reforma dos estudos matemáticos em Portugal e fazer a propaganda das principais cor­rentes do movimento matemático moderno.
António Monteiro

2 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Senhor Professor Jorge Resende, não tenho palavras para descrever o mau trabalho, o mau serviço, pela falta de verdade, que o Professor Buescu prestou ao país e nem consigo avaliar os efeitos nefastos que isso terá no futuro.
Naquele livrinho amarelo da FFMS (de má memória) trata muito mal os cientistas portugueses (os grandes matemáticos dos anos 40), de certa forma só "poupou" Bento de Jesus Caraça, talvez porque como diz nos «Agradecimentos» pode chamar a João Caraça (filho) de amigo. Mas é evidente para nós que desprestigiar Sebastião e Silva ou António Monteiro é também desprestigiar Bento Caraça que, cuja personalidade não permitia a existência de situações dessa natureza.
Principalmente Sebastião e Silva, esse matemático de estatura mundial, foi excecionalmente mal tratado, e claro, António Aniceto Monteiro.
Mas, eu respondi-lhe aqui neste blog, quando aqui foi apresentado o livro… com todas as minhas limitações é certo, mas mostrei-lhe a minha indignação, por Sebastião e Silva e António Monteiro, e pelo mau serviço que presta ao desenvolvimento cultural e científico do país.

Pode verificar, o post neste link: http://dererummundi.blogspot.pt/2012/06/uma-nova-historia-da-matematica-em.html

P.S.: Há tempos num dos livros do professor Buescu publicado na Gradiva, pasme-se, verifiquei que alude ao matemático Alexander Grothendick como talvez o maior matemático do sec.XX. Muito bem, é justo. Mas então!! nós sabemos que foi Sebastião e Silva, que - “Quando chegou a vez de elaborar a recensão crítica da monumental tese de doutoramento de Alexander Grothendieck “Produits tensoriels topologiques et espaces nucléares” (1955) - um dos mais importantes trabalhos matemáticos do século, - foi a Sebastião e Silva que a revista americana [Mathematical Reviews] confiou essa tarefa, rodeada de excecionais melindres pelo raro quilate da obra a criticar, e pelas dificuldades da respetiva leitura." Bem, não sei o que dizer, como é que se pode tentar esconder algo que é tão objetivo. Escreve Buescu no livrinho “… nunca houve então nenhum grande matemático portugûes? A resposta é: ao nível dos maiores do mundo, não. Nem um. Nem lá perto.”

Aceite os meus cumprimentos cordiais e creia-me um admirador do seu valoroso trabalho.

Ildefonso Dias

Jorge disse...

Caro Sr. Ildefonso Dias:

Muito obrigado pelo seu comentário!

Tem razão quando desabafa: «não tenho palavras para descrever o mau trabalho, o mau serviço, pela falta de verdade, que o Professor Buescu prestou ao país e nem consigo avaliar os efeitos nefastos que isso terá no futuro».

Eu já tinha lido os seus comentários ao artigo aqui deste blogue «Uma nova História da Matemática em Portugal?» Ao fazê-los prestou um serviço ao país.

Os seus comentários foram, creio, as primeiras críticas ao livro de Jorge Buescu. Outras se seguiram:

Paulo Almeida, Crítica com sinceridade a um sincero amigo. Referencial (Boletim da Associação 25 de Abril), Julho-Setembro de 2012, págs. 38-40.

Luís Saraiva, O rigor na investigação em história da Matemática – reflexões suscitadas pela leitura do livro «A Matemática em Portugal: uma questão de Educação» de Jorge Buescu. Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática n º 67, 185-200, Outubro de 2012.
http://revistas.rcaap.pt/boletimspm/article/viewFile/3882/2920

Luís Saraiva, O rigor na investigação em história da Matemática (II) – notas ao texto «Em defesa do rigor na investigação em história da Matemática». Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática n º 68, 97-113, Maio de 2013.
http://revistas.rcaap.pt/boletimspm/article/download/3834/2989

Jorge Rezende, Sobre as perseguições a cientistas durante o fascismo. Revista Vértice 166, 59-89, 2013.
https://docs.google.com/file/d/0BxoEDqp9TEHQeHFSSHVEeVBzbG8/edit

Jorge Rezende, António Aniceto Monteiro – lutas, perseguições e exílios. Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, 74, páginas 135-172.

Aconselho-o a ler também:

Jorge Buescu, Em defesa do rigor na investigação em história da Matemática. Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática n º 68, 83-95, Maio de 2013.
http://revistas.rcaap.pt/boletimspm/article/view/3833/2988

No meu blogue tenho publicado correspondência de António Aniceto Monteiro com Sebastião e Silva que vale muito a pena ler. São cartas impressionantes e comovedoras. Ver:

http://antonioanicetomonteiro.blogspot.pt/

Saudações cordiais,
Jorge Rezende

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