sábado, 7 de outubro de 2017

A (IN)UTILIDADE DO CONHECIMENTO ESCOLAR

Meu artigo saído ontem na revista Visão.

A reforma dos sistemas de ensino está na ordem do dia e entra com frequência no discurso quotidiano, não só de políticos e professores mas também de pais e alunos. São vários os países que se encontram a implementar mudanças no currículo com base num referencial que faz ressurgir questões antigas.

Uma delas prende-se com o conhecimento a proporcionar às novas gerações: de que tipo deve ser? Como deve ser aprendido? Tal como há um século, rejeita-se a tradição com a promessa de inovação, ainda que a linguagem seja ligeiramente diferente: centrada a educação na singularidade do aluno e no seu contexto, prevalece a procura do bem-estar subjectivo e da satisfação imediata, que é também superficial. Por isso, sobrevaloriza-se o conhecimento situado, concreto e instrumental, de ordem pragmática, ou seja, que é útil para resolver problemas pessoais e sociais.

A orientação dessas reformas é preparar seres individualistas, empreendedores de si mesmos, competentes e competitivos num mercado de trabalho incerto, buscando a auto-realização, mas sempre dentro dos limites de uma ordem estabelecida. Para certos decisores, académicos e outros agentes presentes no sistema essa meta traduz o ideal “humanista”, daí que “educação humanista” e “perfil humanista” se tenham tornado slogans recorrentes.

Porém, o que se consolida é uma “humanidade sem humanidades”, expressão do filósofo Fernando Savater para assinalar o perigo de a história, a filosofia, a literatura, desaparecerem da escola e, de seguida, da nossa cultura. Na lista incluem-se línguas e artes, bem como vertentes das ciências e da matemática a que não se veja aplicação tecnológica e rentabilidade financeira.

Que conhecimento resta, então, para aprender na escola? De modo que o aluno possa desenvolver “competências”, tem de ser o “essencial”, afirma-se nos textos das reformas. Esse “essencial” é o funcional e, cada vez mais, o “politicamente correcto”. Impõe-se um “núcleo curricular” formado por matemática, duas línguas e algumas ciências, trespassado por uma componente de cidadania, que, apesar do nome, está longe de o ser.

Associa-se-lhe a equívoca ideia de que o aluno é activo, capaz de construir o seu próprio conhecimento se tiver oportunidade de realizar projectos relevantes no quotidiano e se estiver em ambientes agradáveis, nos quais prevalecem metodologias lúdicas, tudo podendo descobrir através da pesquisa, de preferência com recurso às tecnologias.

Da Europa têm-nos chegado livros, artigos e manifestos de pessoas e grupos preocupados com a progressiva e concertada diluição da memória colectiva, que as ditas reformas ajudam a instalar. Relembram que à escola cabe fundamentalmente veicular o conhecimento universal, erudito e abstracto, com “valor em si”, aquele que a humanidade tem construído e que forma a civilização e o pensamento. E notam que lhe cabe pugnar para que tal conhecimento esteja ao acesso de todos, assegurando o princípio da igualdade, marca da democracia.

Destaca-se neste debate o delicado estado da cultura clássica, que entre nós se aproxima da extinção. O Latim e o Grego, desaparecidos do ensino básico, não chegarão a estar, neste ano lectivo, numa dezena de escolas com secundário. O alegado desinteresse dos alunos, aliado à falta de saídas profissionais e de proveito económico, mantê-las-ão afastadas da formação de crianças e jovens. Infelizmente não estão sós: outras disciplinas, ou partes delas, que agregam conhecimento estruturante, sofrem o mesmo declínio.

O filósofo italiano Nuccio Ordine, que virá a Portugal a propósito do Mês da Educação e da Ciência, organizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, diz que “nos próximos anos será preciso lutar muito para salvar dessa deriva tudo o que chamamos cultura” e, em particular, “resistir à dissolução programada do ensino”. Mas, ressalta, que essa luta valerá a pena, pois “sabotar a cultura e a educação significa sabotar o futuro da humanidade”.

2 comentários:

Anónimo disse...

Um texto escrito com tanta clareza é já uma raridade nos dias que correm.
Os especialistas da educação não se cansam na procura de soluções que nos resgatem do pântano de areias movediças que é o sistema educativo em Portugal, mas, talvez involuntariamente, por causa do frenesim com que nos querem puxar para cima, estão-nos a afundar cada vez mais!
Os tais especialistas defendem que se deve ensinar o mínimo possível, mas aí começam logo por esbarrar nas barrigas e bocas de milhares de educadores de infância e professores, os proletários do século XXI, que ao contrário do que possa parecer, não vivem de ar e vento!
Depois, mesmo que não se ensine nada, é obrigatório planificar todas as aulas ao pormenor, chegando-se ao exagero de reservar pré-preparadas duas ou três opções de resposta por cada questão, fora do manual, que se imagina que possa ser levantada por cada um dos trinta alunos! Neste ensino, muito rarefeito de pensamento e conceitos, a avaliação adquire uma posição fulcral: cada aluno tem direito a uma grelha de avaliação em que o professor tem de registar, todos os dias, a evolução, em mais de 20 parâmetros de classificação, de cada um dos seus alunos.
O que acabo de dizer nas linhas anteriores faz parte do ramerrame que se ouve nos fóruns internacionais de educação, onde, normalmente, no fim acaba por se chegar ao ponto de onde se partiu.
Por isso, para finalizar, gostaria de espevitar os meus diletos leitores com uma proposta fraturante:
- Publicar um édito em Lisboa que proclame o Judaísmo como Religião Oficial do Estado Português.
Os judeus têm de certeza um bom sistema educativo. Enquanto os portugueses se lamentam do seu estado de decadência, os judeus continuam a ganhar muito dinheiro, e são muito bons tanto em humanidades como em ciências.
Temos de nos converter!

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Anónimo
Agradecendo o seu comentário, devo esclarecer que um especialista em educação, se é mesmo especialista, não pode defender, e cito, "que se deve ensinar o mínimo possível". O "mínimo", o "essencial" traduz determinações políticas, que podem ter (e, em geral, têm) contributos e apoios de diversos sectores da sociedade.
Conheço bem a preocupação (e a prática) de tudo planificar e até à exaustão, como diz: "planificar todas as aulas ao pormenor, chegando-se ao exagero de reservar pré-preparadas duas ou três opções de resposta por cada questão, fora do manual, que se imagina que possa ser levantada por cada um dos trinta alunos!". Essa ideia constitui um erro bem demosntrado pela investigação educacional.
Tem razão quando diz que "a avaliação adquire uma posição fulcral: cada aluno tem direito a uma grelha de avaliação em que o professor tem de registar, todos os dias, a evolução, em mais de 20 parâmetros de classificação, de cada um dos seus alunos". Nenhum professor pode fazer tais registos com correcção e, mesmo que isso fosse possível, não seria desejável.
Cordialmente.
Maria Helena Damião

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