sexta-feira, 14 de julho de 2017

Contra a democracia


Com o agradecimento ao editor publicamos o início do 1.º capítulo do livro "Contra a  Democracia", de  Jason Brennan, que acaba de sair na colecção Filosofia Aberta, da Gradiva:

" Hobbits e hooligans

Começo por citar o revolucionário americano e presidente John Adams: «Tenho de estudar Política e Guerra para que os meus filhos tenham a liberdade de estudar Matemática e Filosofia. Os meus filhos devem estudar Matemática e Filosofia, Geografia, História Natural, Arquitectura Naval, Navegação, Comércio e Agricultura, de modo a dar aos seus filhos o direito de estudar Pintura, Poesia, Música, Arquitectura, Escultura, Tapeçaria e Porcelana.»1 Se alguma vez houve um animal político, Adams foi‑o sem dúvida, mas acalentava a esperança de que as gerações futuras evoluíssem para uma forma de vida mais elevada de vida.

Este livro explica por que razão devemos tentar concretizar essa esperança.

A participação política enobrece ou corrompe? Mill versus Schumpeter

John Stuart Mill, grande economista e filósofo moral do século xix, argumentava que devemos instituir a forma de governo que produza os melhores resultados, qualquer que ela seja. Mill aconselhava‑nos a examinar todas as consequências. Isto é, quando se pergunta o que é melhor, se a
monarquia, se a oligarquia, a aristocracia, uma legislatura representativa ou outras formas de governo, devemos atentar não apenas nas coisas evidentes, como o respeito das diferentes formas de governo pelos direitos liberais ou a forma como promovem o crescimento económico. Devemos
também examinar como essas diferentes formas de governo afectam a virtude intelectual e moral dos cidadãos. Algumas formas de governo podem tornar‑nos estúpidos e passivos, enquanto outras podem tornar‑nos perspicazes e activos.

Mill esperava que envolver as pessoas na política as tornasse mais inteligentes, mais atentas ao bem comum, mais educadas e nobres. Esperava que fazer um operário pensar sobre política equivalesse a levar um peixe a descobrir que há um mundo fora do oceano. Mill tinha esperança que o envolvimento político fortalecesse as nossas mentes e amaciasse os nossos corações. Esperava
que o compromisso político nos levasse a olhar para lá dos nossos interesses imediatos e a adoptar uma perspectiva ampla e de longo prazo.

Mill era um pensador científico. Na altura em que escreveu, poucos países tinham um governo representativo. Estes poucos países limitavam o sufrágio, permitindo o voto apenas a uma elite minoritária e não representativa. Na sua época, a participação política era maioritariamente uma
ambição de cavalheiros instruídos. Mill não tinha as provas necessárias para apoiar as suas alegações. No melhor dos casos, propunha uma hipótese razoável, mas não testada. ~

Isso aconteceu há mais de 150 anos. Hoje, como defenderei, dispomos de resultados amplamente negativos. Penso que Mill concordaria. As formas mais comuns de compromisso político não só não conseguem educar‑nos ou enobrecer‑nos, mas também tendem a estupidificar‑nos e corromper‑nos. A verdade está mais perto do lamento do economista Joseph Schumpeter: «O cidadão comum desce a um nível de desempenho mental inferior assim que entra no campo político. Argumenta e analisa de um modo que prontamente reconheceria como infantil na esfera dos seus interesses reais. Torna‑se de novo um primitivo.»

Se a hipótese de Mill estiver errada e se Schumpeter tiver razão, devemos levantar algumas questões difíceis: a que ponto queremos realmente que as pessoas participem na política? Quanto devem as pessoas ser autorizadas a participar?

O lado positivo do declínio democrático

Muitos livros sobre a democracia e o envolvimento cívico lamentam que as taxas de participação estejam em queda. Observam que, no final de 1800, 70 a 80 por cento dos americanos com direito a voto votavam nas principais eleições e queixam‑se de que hoje a participação é no máximo de 60 por cento em eleições presidenciais ou de 40 por cento em eleições intercalares, estaduais e locais. Depois de mencionarem estes números, rangem os dentes. A democracia dos Estados Unidos é mais inclusiva que nunca; há cada vez mais pessoas convidadas a assumir uma posição à mesa das negociações políticas. Contudo, cada vez menos respondem ao convite. Segundo se diz, os cidadãos não estão a assumir seriamente a responsabilidade da autogovernação.

A minha resposta é diferente: o declínio no envolvimento político é um bom começo, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Devíamos desejar uma participação menor, não maior. O ideal seria que a política ocupasse apenas uma pequena parte da atenção de uma pessoa média; a maior parte dos indivíduos deveria preencher os seus dias com pintura, poesia, música, arquitectura, escultura, tapeçaria e porcelana, ou talvez futebol, corridas de automóveis, tractor pulling, mexericos sobre celebridades ou idas ao restaurante. O melhor seria a maior parte das pessoas não se preocupar sequer com a política.

Pelo contrário, alguns teóricos políticos pretendem que a política se infiltre em mais aspectos da vida. Querem mais deliberação política. Defendem que a política nos enobrece, e vêem a democracia como uma forma de capacitar a pessoa comum para assumir o controlo da sua situação. Alguns «humanistas cívicos» consideram a própria democracia a vida boa, ou pelo menos um chamamento superior.

Que lado está mais próximo da verdade é algo que depende em parte de como são os seres humanos, do que a participação democrática nos faz, e de que problemas a participação política em massa poderá resolver — ou criar.

Três espécies de cidadãos democráticos

Já não temos de especular, como aconteceu com Mill, sobre
o que a política nos faz. Psicólogos, sociólogos, economistas e politólogos passaram mais de sessenta anos a estudar como as pessoas pensam e tomam decisões em política, e como reagem a elas. Investigaram o que as pessoas sabem e não sabem, aquilo em que acreditam, a que ponto acreditam e
o que as faz mudar de ideias. Analisaram a que ponto são dogmáticas, como e por que razão formam alianças e o que as leva a agir ou participar na vida cívica. Analisarei muito deste trabalho de investigação em pormenor nos próximos capítulos. Aqui sintetizo os resultados.

As pessoas diferem no empenho com que defendem as suas opiniões políticas. Algumas agarram‑se
às suas opiniões com fervor religioso, enquanto outras têm opiniões pouco firmes. Há quem mantenha a mesma ideologia durante anos e quem esteja sempre a mudar de ideias.

As pessoas diferem igualmente na consistência da sua visão das coisas. Algumas têm um conjunto de opiniões unificado e coerente. Outras possuem crenças pouco consistentes e contraditórias.

As pessoas diferem quanto ao número de opiniões. Algumas têm opinião sobre tudo, e outras não têm opinião sobre quase nada.

As pessoas diferem também relativamente à quantidade de informação ou aos dados de que dispõem para apoiar as suas convicções. Algumas pessoas têm formação sólida nas ciências sociais relevantes. Algumas apenas vêem as notícias. Outras dificilmente sabem alguma coisa sobre política. Têm opiniões, mas poucos ou nenhuns dados a apoiá‑las.

As pessoas diferem no modo como consideram e respondem àqueles de quem discordam. Algumas consideram os seus opositores políticos criaturas satânicas, enquanto outras pensam que estão apenas enganados. Há as que estão convencidss de que pelo menos alguns dos seus opositores são razoáveis, enquanto outras pensam que todos são idiotas.

As pessoas também diferem na intensidade e nas formas da sua participação. Algumas vivem obcecadas pela política do mesmo modo que outras vivem obcecadas pelos casos amorosos das celebridades. Algumas votam, participam, envolvem‑se nas campanhas políticas e fazem donativos. Outras nunca participaram nem participarão. O estado poderia revogar os seus direitos políticos e elas não dariam por isso ou não se importariam.

Em todos estes assuntos, os cidadãos enquadram‑se num certo intervalo. Para o propósito deste livro podemos simplificar as coisas. Há três grandes tipos de cidadãos democráticos com interesse para nós neste contexto, que designarei hobbits, hooligans e vulcanos.

• Os hobbits são sobretudo apáticos e ignorantes quanto a política. Carecem de opiniões fortes e firmes sobre a maioria das questões políticas. Muitas vezes não têm sequer opiniões. Têm pouco, se algum, conhecimento sociológico; são ignorantes não apenas quanto aos acontecimentos actuais, mas também às teorias sociológicas e aos dados necessários para avaliar e compreender esses eventos. Os hobbits têm apenas um conhecimento superficial do que é relevante no mundo ou na história
dos seus países. Preferem viver as suas vidas sem prestar muita atenção à política. No Estados Unidos, o não‑votante típico é um hobbit.

• Os hooligans são os fanáticos desportivos da política. Têm ideias fortes e bem definidas sobre o mundo. Podem apresentar argumentos a favor das suas convicções, mas não conseguem explicar pontos de vista alternativos de um modo que as pessoas com outras visões considerem
satisfatório. Os hooligans consomem informação política, embora de uma maneira tendenciosa. Tendem a procurar informação que confirme as suas opiniões políticas prévias, mas ignoram, evitam e rejeitam, de forma imediata, dados que contradigam ou desmintam as essas opiniões. Podem ter alguma confiança nas ciências sociais, mas escolhem os dados selectivamente e tendem a conhecer apenas os dados e as teorias que apoiam as suas opiniões. Confiam excessivamente em si mesmos e no que sabem. As suas opiniões políticas fazem parte da sua identidade, e orgulham‑se
de ser membros da sua equipa política. Para eles, pertencer aos partidos democrata ou republicano, trabalhista ou conservador, social‑democrata ou democrata cristão tem importância para a sua autoimagem, da mesma forma que ser cristão ou muçulmano tem importância para a autoimagem da pessoa religiosa. Tendem a desprezar os indivíduos que discordam deles, sustentando que as pessoas com ideias alternativas sobre o mundo são estúpidas, más, egoístas ou, na melhor das hipóteses,
estão profundamente enganadas. A maior parte dos votantes regulares, das pessoas com actividade política, dos activistas propriamente ditos, dos membros dos partidos e dos políticos são hooligans.

• Os vulcanos pensam científica e racionalmente sobre política. As suas opiniões são fortemente baseadas na sociologia e na filosofia. São autoconscientes e apenas confiam dentro do que os dados permitem. Os vulcanos conseguem explicar pontos de vista contrários aos seus de uma forma que as pessoas que defendem essas ideias considerariam satisfatória. Interessam‑se por política, mas ao mesmo tempo são imparciais, em parte porque tentam activamente evitar ser tendenciosos e irracionais. Não pensam que todos os que discordam deles são estúpidos, maus ou egoístas.

O que aqui se apresenta são tipos ideais ou arquétipos conceptuais. Algumas pessoas enquadram‑se melhor nestas descrições do que outras. Ninguém consegue ser um verdadeiro vulcano: todos os indivíduos são pelo menos um pouco tendenciosos. Infelizmente, muitos enquadram‑se bastante bem nos moldes do hobbit e do hooligan. A maior parte dos americanos é hobbit ou hooligan, ou encaixa‑se algures entre uma coisa e a outra.

Note‑se que não defino os tipos referidos pela moderação ou pelo radicalismo das suas opiniões. Por definição, os hooligans não são extremistas e os vulcanos não são moderados. Talvez alguns marxistas radicais ou anarquistas libertários sejam vulcanos, enquanto a maior parte dos moderados é hobbit ou hooligan.

De um modo geral, não defini estes tipos em função da sua ideologia. Considerem‑se, por exemplo, todas as pessoas com simpatias libertárias. Algumas são hobbits. Estes hobbits inclinam‑se a ser libertários — têm predisposição para as conclusões libertárias —, mas não pensam em política nem se interessam muito por ela, e a maior parte não se identifica a si própria como libertária. Muitos libertários — talvez a maioria — são hooligans. Para eles, ser libertário é uma parte importante da sua imagem de si próprios. Os seus avatares no Facebook são bandeiras anarquistas pretas e douradas, apenas têm encontros com outros libertários e lêem somente o economista de culto
heterodoxo Murray Rothbard ou a romancista Ayn Rand. Finalmente, alguns libertários são vulcanos.

Mill sugeriu a hipótese de que envolver os cidadãos na política os esclareceria. Uma das formas de expor a sua convicção é que esperava que a deliberação política e a participação no governo representativo transformasse os hobbits em vulcanos. Pelo contrário, Schumpeter pensava que a participação embrutece as pessoas — isto é, tende a transformar hobbits em hooligans.

Nos capítulos seguintes analiso e critico um amplo conjunto de argumentos que pretendem mostrar que a liberdade e a participação políticas são boas para nós. Defendo que, para a maioria, a liberdade política e a participação são globalmente prejudiciais. Muitos de nós não são hobbits nem hooligans, e a maioria dos hobbits são hooligans potenciais. Estaríamos melhor — e os outros também.

(...)"

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Podemos teorizar ad infinitum sobre democracia, participação política dos cidadãos, vulcanos e marcianos, representatividade... Mas a política está para as teorias (sejamos benevolentes) como os partidos estão para as pessoas. As pessoas, transformadas em eleitores, são uma categoria da ordem política, que funciona como a moeda, são uma abstração. E todos sabemos disso, até o mais participativo (por omissão). Não é o representado que escolhe o estatuto de representado, etc. e tal. O representado é "brindado" com o dever, vejam só, de escolher quem o represente, quem represente a sua vontade. Ora, isto não é um brinde, nem é um direito, porque o chamado direito de voto é algo de muito perverso, como tantas outras perversidades com que vamos sendo aliciados nos negócios do mundo.
Um político, que faz disso profissão e, como tal, é remunerado, começa logo por viciar todo o sistema de representatividade. É alguém que, não só, está à porta do poder como ainda faz parte de uma máquina cuja lógica de funcionamento prevalece e sobreleva, intencionalmente, sobre qualquer hipótese de negociação desse poder, prévia e detalhadamente, desenhado.
Mas o que me faz saltar do banco é essa ideia, tão religiosamente devota, da participação dos cidadãos na vida política. É como se estivesse a assistir a um jogo de futebol e o clube de que fosse sócio, além da minha quota, da minha presença e ovação, do preço do meu bilhete, do meu culto clubista, com orações e tudo, lágrimas e sacrifícios, reuniões e hinos, caravanas e apitos, cachecóis e camisolas, cartazes e tempos de antena, estivesse à espera que eu jogasse...de borla.
A falta de cultura política em Portugal é de tal ordem que, desde o 25 de abril, democracia passou a significar que, se o povo se governar, os seus representantes governam-se.
Os políticos, que disso fazem profissão, que fazem profissão da angariação de votos, sabem muito bem o que é a representatividade e o poder do voto, para eles e para os eleitores. Os eleitores também sabem, mas os políticos estão sempre a lembrar-lhes o dever de participação e, se possível, que governem por eles, de borla.

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