sábado, 17 de junho de 2017

Ainda assim, é preciso continuar

O semanário Expresso publicou recentemente uma extensa entrevista da jornalista Luciana Leiderfarb a George Steiner (aqui). 

Numa altura em que se clama pelas designadas humanidades e por uma educação escolar que volte a dar-lhes destaque, com base no argumento de que nelas reside a possibilidade (talvez a única possibilidade) de enfrentar os graves problemas da Europa e um pouco mais além, o velho literato reitera as apreensões que tem demonstrado ao longo da sua vida em relação à própria condição humana.

Não, não temos qualquer garantia de que as humanidades humanizem e que a educação melhore a humanidade. Ainda assim, é preciso continuar; desistir não é uma opção.
Sublinhou o seu paradoxo quando disse que “a Europa é o lugar onde o jardim de Goethe faz fronteira com Buchenwald”.  
Toda a minha vida foi dominada pela pergunta: como é que aquilo pôde acontecer na Europa? Como é que por trás da casa de Goethe existe um campo de concentração? Como é que o país mais educado do mundo se tornou nazi? Nunca se esqueça de que a educação na Alemanha era provavelmente a mais avançada, mas não foi suficiente para travar Hitler. 
Toda a minha vida me interroguei sobre se as humanidades realmente humanizam. 
Deixe-me colocar a questão desta forma: passo o dia todo com os meus alunos a ler o “King Lear” e, ao voltar para casa, estou tão possuído interiormente por esse texto que não ouço os gritos de alguém na rua. Alguém grita por ajuda e eu não ouço. Sempre me intrigou até que ponto a ficção — e ‘ficção’ é a palavra-chave — pode ser mais poderosa do que a realidade. Passei a vida a ensinar as pessoas a ler e a amar o que lêem. Mas questiono-me a mim próprio sobre o perigo imenso de nos identificarmos com a ficção. 
Que resposta encontrou? 
Quem me dera tê-la encontrado, mas não aconteceu. E acho que ninguém a tem realmente. Os verdadeiros educadores como Tolstoi não têm sido de grande ajuda para as pessoas comuns. A cultura é, provavelmente, um talento muito ambíguo. 
Uma vez afirmou mesmo que as humanidades “humanizaram a mentira”. As ciências não conhecem a hipocrisia, não fazem bluff. Na ciência verdadeira há o certo e o errado, e quem faz batota é obrigado a sair do jogo. Pelo contrário, as chamadas ‘ciências sociais’ fazem bluff o tempo todo, estão cheias de mentira, de conversa fiada. 
O que nos leva a um problema que tem estudado profundamente: o da relação tensa entre a linguagem e a inumanidade política. 
Sim, a retórica política é capaz de matar. A política pode assassinar por meio da linguagem. O horror do movimento nazi foi largamente baseado na retórica, na propaganda. Muito mais poderosas do que qualquer exército são as mentiras do totalitarismo. O totalitarismo funciona através da linguagem. 
E também existe outro fenómeno: pode ser-se um grande artista e um assassino, uma pessoa a favor do extermínio. Há um momento muito importante nos diários de Cosima Wagner, em que Wagner está lá em cima, no primeiro andar, e ela ouve-o ao piano a rever o terceiro ato do “Tristão”. Ele desce para almoçar, e de que é que eles falam? De como queimar os judeus. O homem que tinha estado a compor a melhor música do mundo desce para almoçar e discute alegremente como livrar-se dos judeus. O que quero dizer é que eu não poderia viver num mundo sem a música de Wagner. A minha dívida para com ele é enorme. A minha dívida para com Nietszche, para com Céline! Que livros belos e horrendos! Não tenho resposta para estas pessoas. Não há explicação. Perante os gigantes temos de ficar calados.

3 comentários:

AMCD disse...

Em primeiro lugar, obrigado pela referência: não conhecia esta entrevista.

No quadro das Ciências Sociais, Steiner faz uma afirmação que actualmente se considera muito discutível e até condenável, à luz da ideologia dominante nessas ciências - a do relativismo cultural - quando manifesta uma verdadeira convicção de que a cultura alemã era a mais elevada (leia-se superior), e a Alemanha de então "o país mais educado do mundo". Ao afirmá-lo adopta a posição dos "humanistas evolucionários" de que nos fala Yuval Harari, num sub-capítulo de um livro seu publicitado neste blogue, Homo Deus chamado "É Beethoven melhor que Chuck Berry?». Os outros dois ramos do humanismo são o humanismo socialista e o humanismo liberal,de acordo com a classificação daquele autor. Se assim é, Steiner não se encontra nada bem acompanhado. O próprio Steiner, na verdade confessa ser um "anarquista platónico" (Errata: revisões de uma vida) e para ele "nas ciências humanas o que há são impressões e narrativas". Ora vistas desta forma, torna-se até muito ousado considerar as Ciências Sociais ciências.

À luz do relativismo cultural que domina as Ciências Sociais, ou é Steiner que está errado, quando proclama que existe um povo mais educado do que outro, ou são as Ciências Sociais que operam em erro, quando colocam todas as culturas do mundo ao mesmo nível.

Anónimo disse...

Em verdade e na verdade vos digo que todos se odeiam, uns mais do que outros. E é dessa consciência que nascem as religiões e se procura a salvação. O amor não tem patente humana. Vivenciamo-lo de forma episódica e artificial. É apenas uma vaga lembrança uterina, precária, que se tenta reproduzir, quase sempre, em alvos "desencantatórios", coisa que todos somos.
Não me admira o nazismo. Admira-me a bondade e desconfio sempre dela.
F.C.

Mário R. Gonçalves disse...

Grande entrevista e grande lição de pensamento. Sempre admirei Steiner, o mais europeu dos filófos conteporâneos.

Concordo completamente que as Ciências Sociais são abusivamente chamadas ciências, não passam de modelos, não para "explicar" - como a verdadeira ciência - mas para doutrinar de acordo com um conjunto de preconceitos que não são axiomas evidentes, como os das Ciências.

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