segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

VIEIRA E A CIÊNCIA


Minha intervenção no Congresso sobre o Padre António Vieira no sábado passado na Universidade de Coimbra:

O Padre António Vieira  (1608-1697) não foi decerto um cientista. Mas conhecia suficientemente bem a ciência da sua época, a brilhante época da Revolução Científica onde pontificaram nomes como os de Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1643-1727), pela preparação que adquiriu no Colégio da Bahia dos jesuítas como pelas numerosas leituras que efectuou ao longo da sua extensa vida (citou, nos seus escritos, entre outros Nicolau Copérnico, Tycho Brahe, Johannes Kepler e René Descartes). Acima de tudo procurava extrair exemplos da ciência para o seu discurso catequético e profético. Mas forneceu também algumas contribuições para a ciência ao deixar registos de observações de cometas e de outros eventos astronómicos.

No discurso de Padre António Vieira coexistem referências a autores antigos, a Aristóteles que ele aprendeu como era regra nas escolas jesuítas, e  a autores modernos. A sua presença na história da ciência em Portugal começa por se justificar por ter sido um dos primeiros a referir-se, ainda que indirectamente, à obra Discours de las Méthode (1637) de René Descartes (1596 - 1650). No século XVII, o arco-íris era considerado “um dos principais ornamentos do trono de Deus” e, conforme está no Génesis, o sinal da Velha Aliança que Deus tinha celebrado com os homens após o Dilúvio. Mas Descartes, embora não tendo sido o primeiro a fazê-lo, apresentou num apêndice intitulado Les Métheores no Discours de la Méthode uma descrição científica do arco-íris, como a refracção e reflexão da luz solar em gostas de água. Portanto, o fenómeno não passava de uma imagem da luz solar vista pelos olhos humanos, de certo modo uma ilusão. Num dos Sermões do Santíssimo Sacramento (in  Obra Completa do Padre António Vieira,  Parenética, tomo II, vol. VI, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2014),  lido em Lisboa, em 1645, apenas oito anos após a publicação do revolucionário livro de Descartes, o Padre António Vieira diz:

“Na íris ou arco celeste, todos os nossos olhos jurarão que estão vendo variedades de cores: e contudo ensina a verdadeira Filosofia que naquele arco não há cores, senão luz e água”.

Mais tarde, no Sermão da Segunda Dominga da Quaresma (in Obra Completa do Padre António Vieira,  Parenética, tomo II, vol. III, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2013), pregado na Capela Real de Lisboa em 1651, Vieira afirma:

“Isto que chamamos céu é uma mentira azul e o que chamamos arco-íris ou arco-celeste, é outra mentira de três cores”.

Por outro lado, no Sermão da Quinta Quarta-feira da Quaresma (in Obra Completa do Padre António Vieira,  Parenética, tomo II, vol. IV dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2013) de 1669, considera o arco-íris como um fenómeno originado pela refração da luz, como explicou Descartes:

“O rústico, porque é ignorante, vê muita variedade de cores no que ele chama Arco da Velha [Velha significa Velha Aliança]; mas o filósofo, porque é sábio e conhece que até a luz engana (quando se dobra) vê que ali não há cores, senão enganos corados e ilusões da vista”.

Por outro lado, o Padre António Vieira, embora conhecendo a  tese heliocêntrica do astrónomo polaco Nicolau Copérnico (1473-1543), publicada em 1543 (De revolutionibus orbium coelestium, “Da Revolução dos orbes celestes”), e defendida muito mais tarde por Galileu, não a sustentou, como aliás seria de esperar. Sobre o sistema copernicano, Vieira escreveu no Sermão do Primeira Dominga do Advento (in Obra Completa do Padre António Vieira,  Parenética, tomo II, vol. I, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2013):

“Copérnico, insigne matemático do próximo século, inventou um sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis demonstrar (posto que erradamente), que não era o sol o que se via e rodeava o mundo, senão que esta mesma terra em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a que se move, e anda sempre à roda. De sorte que, quando a terra dá meia volta, então descobre o Sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta então lhe desaparece o Sol, e dizemos que se põe. E a maravilha do novo invento é a suposição que dele corre todo o governo do universo, e as proporções dos astros e medidas dos tempos, com a mesma pontualidade e certeza com que até agora se tinham observado e estabelecido na suposição contrária”.

Repare-se, apesar do erro que encontra em Copérnico, na  sua expressão admirativa do conceito copernicano: “a maravilha do novo invento”. No Sermão da Dominga Décima Sexta (post Pentecosten) (in Obra Completa do Padre António Vieira, Parenética, tomo II, vol. IV, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2014), Vieira esclareceu que Copérnico estava errado por contrariar as Sagradas Escrituras:

“Opinião foi antiga de muitos filósofos, que não era o Sol o que se movia e dava volta ao mundo, senão que permanecendo sempre fixo e imóvel, esta Terra em que estamos é que sem nós o sentirmos se move e nos leva consigo (...). Mas esta opinião ou imaginação matemática, assim como ressuscitou em nossos tempos, assim foi condenada como errónea, por ser expressamente encontrada com as Escrituras divinas”.

Em Portugal, as ideias heliocêntricas, embora tivessem sido logo no século XVI do conhecimento de Pedro Nunes, demoraram muito tempo até encontrarem acolhimento generalizado. Ainda em finais do século XVIII eram vistas com reticências em Portugal..

Contudo, Vieira foi moderno em muitos aspectos. Viajante por várias vezes ao Brasil e  excelente observador da realidade dos trópicos, apercebeu-se da extraordinária mais valia que constituíam as observações dos Portugueses de novas terras, novas espécies, novas gentes e novas culturas para o alargamento do conhecimento humano. O conhecimento empírico passou a contrapor-se, nos séculos XV e XVII, ao saber das antigas autoridades. No Sermão da Terceira Dominga do Advento (in Obra Completa do Padre António Vieira, Parenética, tomo II, vol. I, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2013):

“Nenhuma coisa houve mais assentada na Antiguidade, que ser inabitável a zona tórrida; e as razões com que os filósofos o provaram, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia que o negasse. Descobriram, finalmente, os pilotos e marinheiros portugueses as costas da África, e souberam mais e filosofaram melhor sobre um só dia de vista, que todos os sábios e filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação. O discurso de quem não viu são discursos, os discursos de quem viu são profecias”.

Um bom exemplo da contraposição entre o saber antigo e moderno é o caso da existência de seres humanos nos antípodas. Lê-se nas Esperanças de Portugal, quinto Império do mundo (in Autos do Processo da Inquisição, Obra Completa do Padre António Vieira,  Profética, tomo III, vol. IV, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2014) que os Portugueses sabiam mais sobre o assunto do que os antigos:

“Já disse que acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles, nem Santo Agostinho pela diferença dos tempos; e sendo os tempos, como confessam os mesmos padres, o melhor intérprete das profecias, bem pode acontecer sem maravilha e cuidar-se sem presunção, que um homem muito menos sábio possa atender, depois do discurso de largos anos e sucessos, algumas profecias que os antigos, sapientíssimos e santíssimos, por falta de notícia não declararam nem alcançaram.”

Na História do Futuro (in Obra Completa do Padre António Vieira, Profética, tomo III, vol. I, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2014), reiterou a mesma ideia, glorificando os feitos dos Portugueses:

“É porventura o saber e dizer património só da Antiguidade [...]? São os Antigos como os cântaros de Saresstana que depois de cheios, parou a fonte milagrosa e não correu mais óleo? Houve neste grande oceano de ciências alguma nau Vitória que desse volta a todo o mar? Ou algum Gama que, passado o Cabo da Boa Esperança, a tirasse de todos os outros de novos descobrimentos? E se depois deste famoso círculo do Universo, ainda ficaram mares e terras incógnitas que prometem novas empresas e novos argonautas, que será na esfera da sabedoria e da verdade, cuja infinita circunferência só a pode alcançar [...]. porque não quererão os adoradores ou aduladores da Antiguidade que, ainda depois de tanto dito, haja mais que dizer, e depois de tanto escrito, haja mais que escrever, e depois de tanto estudado e sabido, haja mais que estudar e saber?"


Referências:

- Rómulo de Carvalho, Astronomia em Portugal no século XVIII, Lisboa: Instituto de História e Cultura Portuguesa, 1985.

- René Descartes, Discours de la  Méthode

- Ivan Lins, O Padre Antônio Vieira e a  "História das Idéias no Brasil" do Professor Cruz Costa, Revista de História, USP,  v. 13, n. 27 (1956), 149-175,



- Sezinando Luiz Menezes e Célio Juvenal Costa. Sobre cometas e arco-íris: Antônio Vieira, os jesuítas, o conhecimento revelado e a ciência moderna, História Unisinos 16(3): 369-378, Setembro/Dezembro 2012.

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