terça-feira, 13 de outubro de 2015

"Um breve poema em prosa"

Imagem recolhida aqui.
Passou recentemente na RTP Memória uma adaptação ao cinema do romance O Velho e o Mar, que Ernest Hemingway escreveu em Cuba. O romance foi publicado em 1952 e o filme, realizado por John Sturges com Spencer Tracy no principal papel, apresentado em 1958. Entre estas duas datas - 1956 -, Jorge de Sena traduziu a obra para português e escreveu o prefácio que se pode ler abaixo:
Quando a decisão de reeditar-se esta obra admirável me apresentou a oportunidade de ser eu desta vez a traduzi-la, com alegria aceitei esse trabalho, que o é, porquanto traduzir Hemingway tem sido um dos meus gostos e uma das minhas honras de tradutor. E em particular este pequeno romance passa por ser uma obra-prima da literatura contemporânea e talvez que o tempo o ponha entre as obras primas da literatura universal. 
Pode dizer-se que, em toda a parte, e independentemente de felizes ou infelizes traduções, público e crítica receberam com entusiasmo este livro. Não é, no entanto, uma obra extensa, de acção complexa, de variado e movimentado ambiente. É, antes, um breve poema em prosa, uma epopeia de simples trama,singelamente narrada. Mas é, por outro lado, muito mais do que isso: um breviário nobilíssimo da dignidade humana, escrito com a mais requintada das artes. Poucas vezes, no nosso tempo, terá sido concebida e realizada uma obra tão pura, em que a natureza e a humanidade sejam, frente a frente, tão verdade. Com efeito, a intensidade e a precisão do descrever e do caracterizar, qualidades que, com uma extrema e no entanto subtilmente doseada concisão, colocaram Hemingway entre os grandes escritores - prosadores - da nossa época, atingem nesta pequena obra um nível, um poder de visualização, uma emoção artística, uma vibração humana, que, em plano igual, a literatura quase só terá atingido na poesia épica clássica como em certas páginas de romance do século passado. O que mais irmana tudo isso à prodigiosa vivência da natureza, a um contacto com esta entre íntimo e respeitosamente distante, tão peculiar às grandes epopeias, é precisamente um conhecimento profundo, de todas as horas, de todos os momentos, dir-se-ia que da mínima tonalidade da luz, como do mais comum gesto de uma espécie animal, conhecimento que na literatura contemporânea só Hemingway possuirá tão despreconceituosamente 
O mar e a sua fauna vivem esplendorosamente nestas páginas de O Velho e o Mar. Mas vivem sem a mínima poetização panteísta, sem a mínima deliquescência antropomórfica. Vivem. São. E a luta titânica do velho pescador com o seu peixe imenso não é sequer titânica senão pela naturalidade da mútua aceitação: é uma luta pela vida, lutada em plena dignidade natural. Nada há de sobre-humano nela, que não seja o facto admirável de o homem ser capaz de lutar e de sobreviver para além do que parece ser o legítimo limite das suas forças. 
Muito se tem escrito - e é fácil - sobre o pessimismo de Hemingway. O que sobre o pessimismo de uma tão perfeita narrativa exemplar de que, como o velho pescador pensa, "um homem pode ser destruído, mas não derrotado", se tenha escrito efectivamente, faz-me lembrar o que paralelamente é hábito escrever sobre o cepticismo. Uma vez, li um comentário a um filósofo medieval, que foi para mim, nestes pontos, extremamente iluminante. Do tal filósofo se dizia que era céptico para ter a certeza daquilo em que podia acreditar. Algo de semelhante se passa com o pessimismo de Hemingway, independentemente do que nele participa do ambiente intelectual de após a Primeira Grande Guerra e de certas atitudes neste ambiente peculiares aos chamados "expatriados" norte-americanos, de que Hemingway tem sido, ou foi, expoente notório. Esse pessimismo reflecte apenas uma ciência muito certa dos limites humanos, colhida na experiência e na aventura por um homem nado e criado para tal. 
É típica de Hemingway - e há nesta obra um episódio importante, apesar de na aparência meramente episódico - a sua confiança no conhecimento que vitalmente se adquire, aliada a uma desconfiança daquele que uma exterior educação possa dar. O episódio é o do passarito que vem pousar na linha de pesca, e ao qual o velho fala carinhosamente por achá-lo jovem e inerme. Mas, além de que o pássaro não entendia as suas palavras, não valia a pena explicar-lhe quem eram os falcões que o esperariam junto à costa, porque o pássaro não tardaria em aprender por si quem eles eram. Este episódio é simbólico - simbólico de um pessimismo quanto ao que não seja directamente experimentado, embora uma criatura possa, por solidariedade, ser informada, quando a comunicação é possível. 
Simbólica é igualmente a total solidão do velho entregue a si próprio e à sua experiência de pescador, a contas com o seu poderoso peixe e com os tubarões de que, depois de morto o peixe, ele o defende. É extremamente comovente, de uma límpida grandeza de romanceiro ou velha saga quanto se passa entre o velho e o peixe. E as apóstrofes que o velho dirige ao seu contendor, a consciência de um respeito e de uma dignidade mútuas à face nua das águas, são de uma pungência e de uma majestade, que só têm contrapartida nos diálogos com o rapaz, em que a dignidade humana é respeitada até à última miséria. 
Daí o contraste terrível do final, com a antítese entre a ignorância pretensiosa dos "turistas" e a cena do rapaz velando o velho, possivelmente moribundo, que sonha com os leões, esses leões que são, em matéria de sonho, tudo o que lhe resta da vida. Ante uma obra como esta - da mais alta qualidade artística e da mais nobre categoria ética - uma obra que nos eleva à contemplação da dignidade do homem e do mundo em que é um ser pensante, através da mais avassaladora singeleza: devemos curvar-nos gratamente e fazer votos por que, numa tradução que procurei fosse escrupulosa e fiel, pouco se tenha perdido de tão pura obra-prima, do seu poder incantatório, da sua frescura narrativa. 
Lisboa, 1956 Jorge De Sena
Esse livro começa assim:
Era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta dias um rapaz fora com ele. 
Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do rapaz disseram a este que o velho estava definitivamente e declaradamente *salao*, o que é a pior forma de azar, e o rapaz fora por ordem deles para outro barco que na primeira semana logo apanhou três belos peixes. Fazia tristeza ao rapaz ver todos os dias o velho voltar com o esquife vazio e sempre descia a ajudá-lo a trazer as linhas arrumadas ou o croque e o arpão e a vela enrolada no mastro. A vela estava remendada com quatro velhos sacos de farinha e, assim ferrada, parecia o estandarte da perpétua derrota. 
O velho era magro e seco, com profundas rugas na parte de trás do pescoço. As manchas castanhas do benigno cancro da pele que o sol provoca ao reflectir-se no mar dos trópicos viam-se-lhe no rosto. As manchas iam pelos lados da cara abaixo, e as mãos dele tinham as cicatrizes profundamente sulcadas, que o manejo das linhas com peixe graúdo dá. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como erosões num deserto sem peixes. Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e alegres e não vencidos.
E, pode continuar a ser lido aqui.

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