quarta-feira, 14 de outubro de 2015

José Ángel Valente

 


 
Poeta em tempo de miséria

Falava à pressa.
Falava sem ouvir nem ver nem falar.

Falava como o que foge,
emboscado de supetão na falsa folhagem

de simpatia e irrealidade.


Falava sem pontuação e sem silêncios,
Intercalando em cada pausa gestos de rotineira
alegria para talvez se esquivar  à pergunta,
à solidariedade com o seu passado,
sua verdade nua.


Falava como se quisesse delir a vida antes de uma
testemunha incómoda,
para a qual se rodeava de seres secundários
que dos seus desprezos nutriam
uma grosseira vaidade.


Comprava assim o seu silêncio a alto preço,
a posição estável a alto preço,
o direito à vida a alto preço,
a alto preço o pão.


Talvez metal nobre que o martelo batera
pela causa mais pura.
Poeta em tempo de miséria, de mentira
e infidelidade.


O Círculo


A mulher estava com os dois seios,
a ímpar cabeça giratória,
a extensão do sorriso, o ar
de acomodar e de se estender sabiamente fingido.


A mulher estava sitiada por ela mesma,
de admiração opaca e compartilhada,
sob a luz sombria dos olhares.


A complacência da presença enchia
de estólida ternura os objetos propínquos.


A mulher estava de pé somando-se ao seu corpo.
As palavras sonhavam levando sentidos
Supérfluos e ordinários.

Girava, a mulher.

Excedia a sua órbita
como prenúncio
de tudo o que é belo,
vazio, ritual, sonoro, triste.

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