sexta-feira, 3 de julho de 2015

FUTEBOL: "HÁ LIMITES PARA TUDO"

Do crítico literário Eugénio Lisboa, nosso muito prezado amigo, se transcreve mais um artigo recentemente publicado no “Jornal de Letras”:


“Pro football is like nuclear warfare.

There are no winners, only survivor”s.

Frank Gifford

“No Público de 8 do mês de Junho, o estimado colunista Rui Tavares, que leio sempre com interesse e apreço, publicou um interessante artigo intitulado “Monocultura”, acerca do mundo do futebol profissional, tal como existe em Portugal (e no resto do mundo, aliás). Subscrevo tudo quanto ali se diz, excepto a escusada canelada às “críticas pseudo-intelectualizadas ao futebol”, que me parece uma condescendência populista, mas talvez compreensível em ano eleitoral… Eu assumo-me, sem pudor, como um dos “pseudo-intelectuais” que tem lutado repetidamente contra o atentado ao verdadeiro “espírito do desporto”, que é todo o desporto profissional e o futebol profissional, em particular. Os gregos das Olimpíadas, da Antiguidade, devem estar a dar voltas ininterruptas, no túmulo, perante esta infâmia que diariamente se planta diante dos nossos olhos e ouvidos.

Mas o curioso no interessante e justiceiro artigo de Rui Tavares é ele, Rui Tavares, ter chegado, só agora  perante a cómica e sinistra opereta que foi a transferência de Jorge Jesus, do Benfica para o Sporting – à conclusão de que “há limites para tudo”. Meu caríssimo Rui Tavares, esses limites foram transgredidos, não agora, mas há muito tempo. Esta ópera bufa que agora tanto o enojou vem-se repetindo pelo mundo todo e também pelo Portugalinho, desde que o futebol se tornou um negócio mafioso e profundamente malcheiroso.

Como V., também eu gosto de ver um bom jogo de futebol e também o joguei, na minha adolescência, em Lourenço Marques. Rever o Eusébio, meu conterrâneo, a fulgurar, em Liverpool, ainda me causa arrepios de prazer e admiração. Mas nada disto tem que ver com a venda de jogadores e treinadores, por milhões de euros, como “produtos de luxo”, nem com “clubes”, cuja identidade, de tão diluída e conspurcada, muito difícil se torna definir – sem falar nas indescritíveis – e muito noticiadas em horário nobre  “alocuções”  dos inefáveis donos do futebol. Este nojo é antigo e ofende mortalmente o nobre jogo do futebol, que só pode ser não-profissional, para ser limpo e escorreito. Dizia Orwell que “o desporto à séria [isto é, encarado profissionalmente] nada tem que ver com o fair-play: está intimamente relacionado com o ódio, o ciúme, a gabarolice, o desprezo por todas as regras e o prazer sádico de ser espectador da violência – por outras palavras, é a guerra, menos o tiroteio.” Ou, se preferir, e utilizando a diatribe em epígrafe a esta crónica, “o futebol é como a guerra nuclear – não há vencedores, há apenas sobreviventes.”

Este futebol – o dos Brunos de Carvalho, dos Luises Filipes Vieiras, dos Pintos da Costa – tem suficientes bardos e tenores ao seu serviço, para dispensar a condescendência, mesmo marginal, de um Rui Tavares, que tem merecido e ganho o respeito de muitos de nós. O domínio dos meios de comunicação por esta infecção que é o delírio futebolístico, em dia de confronto “clássico” (clássico?!!!) é suficientemente vasto e nefasto para  nos confranger ver um intelectual rigoroso como Rui Tavares fazer-lhe nem que seja um tímido aceno, en passant. Os do futebol profissional não se cansam de apregoar – para que conste, como aviso – a excelsa e avassaladora importância desse sinistro "poder". O “football manager” Bill Shanky, por exemplo, foi ao ponto de dizer que “o futebol não é assunto de vida ou de morte – é muito mais importante do que isso.” Acredite quem puder.

O verdadeiro espírito do desporto, disse-o eu algures, sem vergonha nenhuma de me juntar à corte dos pseudo-intelectuais que Rui Tavares mordiscou, “não rima com este concerto grotesco de bravatas, de gritaria, de agressões públicas, de trafulhices com impostos, de dinheiros, dinheiros, dinheiros… O desporto é esforço desinteressado e elegante, é exemplo de autodomínio e beleza.”

O que se passou, recentemente, com a vitória do Benfica, em Guimarães, no que respeita tanto ao comportamento de alguns polícias, como ao de uma larga camada de povo, na Praça do Marquês de Pombal – é um descrédito para a civilização. Como contribuinte rigoroso, ressinto que os meus impostos sejam desbaratados com obscenos cordões de polícia a guardar os estádios e os lugares públicos de manifestação, onde hordas desconjuntadas de energúmenos nos causam vergonha de pertencermos à espécie humana. Para isto, meu caro Rui Tavares, não pode haver qualquer espécie de condescendência – nem da parte de intelectuais, nem da parte de pseudo-intelectuais. A esta cultura infame e alienadora, a esta hidra em expansão – há que se lhe cortar, sem hesitação, a cabeça. Isto não é futebol, é tumulto, é orgia, é arruaça, é anarquia, é tudo quanto uma democracia adulta não deve acolher.

O verdadeiro desporto é outra coisa e tem outras motivações. Perguntaram, um dia, a George Mallory por que é que tinha querido trepar o Monte Everest. Respondeu com formidável simplicidade definidora: “Porque ele estava ali.” Não para ganhar dinheiro, não para embaraçar quem, antes dele, não tinha conseguido, não por bravata: apenas porque havia um desafio que estava ali e talvez valesse a pena enfrentar. É isto o desporto, que nada tem que ver com as marcas de carro que o Ronaldo compra nem com as meninas com quem se deita. “O futebol, segundo me parecia”, observou ainda Orwell, “não é realmente jogado pelo prazer de chutar a bola de um lado para o outro, mas é antes uma espécie de combate.” Vai-se para esta guerra suja porque dá muito dinheiro. E, de caminho, infecta-se o espírito de toda uma juventude, formada à sombra destes “valores”.  

Quando se atiram petardos dentro dos estádios de futebol ou neles se agridem barbaramente os jogadores, está-se apenas a dar vazão  à pressão produzida por toda uma “cultura” que não preserva um único valor digno de ser preservado. Este futebol mafioso e doentio há-de desaguar sempre nos prélios nas ruas e nas praças e não há volta a dar-lhe, se não aparecer um governo corajoso e determinado a pôr fim a tudo isto, de uma vez por todas: basta ter a ousadia de definir e aplicar um conjunto de sanções que façam doer. Mas que façam doer mesmo.

O grande romancista britânico E. M. Forster, de que algumas belas obras foram transpostas para o cinema, observou isto, que eu assino por baixo: “É o desporto internacional que tem atirado o mundo pela ladeira abaixo. Iniciado por atletas tontos, que pensavam promover ‘compreensão’, e hoje sustentado pelo desejo de prestígio político e pelos interesses ligados à bilheteira. É absolutamente pernicioso.”

É com este futebol, Rui Tavares, que se não pode pactuar. Os Joseph Blatter não aparecem por acaso: são um corolário”.

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Maria Nazaré de Souza Oliveira disse...

Boa tarde, Senhor Professor.

Gostei muito de ler este artigo.
Fiquei satisfeita por saber que não sou só eu a criticar as máfias do futebol e muitos dos seus mafiosos!
Parabéns!

Já agora, um dos artigos que publiquei recentemente no meu blogue e que, por acaso, também se integra no espírito do seu.

Um abraço!

http://suricatina.blogspot.pt/2015/07/transferencias-de-jogadores-o-futebol.html

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