quinta-feira, 9 de abril de 2015

Uma Biografia da Luz

Com os agradecimentos ao autor e à editora deixo aqui uma das "pinceladas" iniciais do livro "Uma Biografia da Luz ou A Triste História do Fotão Cansado" do físico José Tito de Mendonça, professor do Instituto Superior Técnico, que está quase a sair na Gradiva, na colecção Ciência Aberta, assinalando o Ano Internacional da Luz.

"Neste capítulo inicial esboço as minhas motivações e os meus objectivos. Faço‑o em pinceladas largas, como num quadro fauvista, procurando captar a atmosfera da ciência, e do que nela habita. Quando se fala da luz, ou de qualquer parcela da física, fala‑se ao mesmo tempo de ondas e de partículas. Mas esses dois conceitos não se excluem completamente: as suas relações são complexas, como provam os conceitos mais elaborados de campo e de quase‑partícula. O meu objectivo neste livro será o de tentar tornar plausível o aparecimento e o uso desses conceitos, e de mostrar que a física e a ciência em geral são uma extensão dos conceitos comuns do nosso dia‑a‑dia. Uma extensão mais elaborada e refinada, que por vezes implica rotura.

Começo com uma paisagem de Verão. Estava no Sudoeste Alentejano, junto à costa onde o continente euro‑asiático se cansa de viajar desde a longínqua Sibéria e se despenha subitamente no Atlântico. Como se lhe faltasse energia, ou matéria, para ir mais longe. Também eu, nesse langoroso mês de Agosto, não conseguia ir mais longe. Ficava‑me pela praia, e pela tarde bebia um fresco vinho branco. No meio da ociosidade, procurava ganhar algum recuo do meu trabalho no ensino e na investigação, do penoso e obsessivo trabalho de escrever artigos, e tentava perceber o que move o cientista, e como se gera o conhecimento.

1. O pescador irrequieto

Lá na praia da Carraca havia um pescador irrequieto. Estava num penhasco, à beira do mar, e a espuma das ondas salpicava‑lhe a face. Movia a cana, lançava o anzol, ficava de costas para o farol. Quando eu esperava que tudo se aquietasse, mudava de poiso, mexia no saco, voltava a sentar‑se,
para mais tarde se virar.

Não conseguia ficar quieto. Ele era a antítese da ideia de pescador, o calmo e pensativo pescador, que fica à espera que o peixe morda, indefinidamente. Que talvez beba a sua pinga, a sua aguardente. Mas que fica embrenhado nos seus pensamentos, que contempla o tédio à espera de um sinal, sem ilusões nem esperança.

Conheço dois colegas de São Paulo que todos os sábados vão pescar para uma lagoa. Levam um frasco de cachaça e vão bebendo. Quando, por engano, algum peixe morde as suas canas, retiram‑no
do anzol e voltam a lançá‑lo para a água. Quando a cachaça acaba e o Sol declina, eles recolhem as canas e voltam para a cidade satisfeitos. Não foram pelo peixe, que lançaram fora.

Foram pela pinga e pelo silêncio. Mas este pescador que eu vejo agitar‑se no alto de um penhasco não é como eles. Talvez tenha aguardente no saco, mas não veio pela calma nem pelo silêncio, já que as ondas e o vento fustigando as rochas aqui fazem muito ruído. E certamente está interessado na pescaria, seja robalo ou safio.

Pensei então que ele se assemelhava ao investigador, pelo menos a um investigador como eu, cujo cérebro está em permanente desconforto. Foi assim que eu comecei este livro, irrequieto e insatisfeito, a partir de uma ideia que não conseguia bem captar, mas que lentamente germinava.
Estava eu em Inglaterra em 2005, no Ano de Einstein, quando me pediram para dar um seminário no
RAL (Rutherford‑Appleton Laboratory), integrado num ciclo de comemorações. Alguns anos depois, ele desaguou neste texto, depois de alguns cortes e muitos acrescentos.

Nesse seminário, eu tentava realçar o papel de Einstein na formação da teoria quântica moderna, e na
formulação do conceito de fotão, a partícula da luz. Também o gravitão, a partícula da gravidade, para a qual não existe ainda uma teoria quântica, emerge da teoria da gravitação de Einstein com uma pujança que os próximos anos irão certamente acentuar.

Durante esse Ano de Einstein, eu apreciara conduzir à direita pelas estreitas estradas de Inglaterra, através de campos de um verde intenso. Tinha alugado uma casa em Didcot, a poucas milhas do laboratório, onde vivi vários meses quase sempre sozinho. Vinha a Lisboa todos os quinze dias. Não tive muito tempo para pensar no dito seminário, e rapidamente o esqueci. Mas o desejo de escrever um texto para o grande público permaneceu.

Há uma certa ideia de ciência que permanece no grande público, de onde a imaginação e o lado lúdico parecem estar arredados. Ora isso não é de todo verdade, sendo a imaginação e a criatividade tão importantes em ciência como na arte. Fazer um trabalho científico é como pintar um quadro, onde o esboço, a experimentação e também o sentido estético desempenham um papel dominante. É isso que vou tentar mostrar.

Um dos primeiros preconceitos tem a ver com o aspecto resguardado da ciência, julgando‑se
que só acontece nos antros fechados dos laboratórios. Ora, pelo contrário, a ciência está em cada momento e em toda a parte: o nosso objecto de estudo chega‑nos de todos os lados.

Durante todo o dia estamos no chuveiro, apanhamos duche o ano inteiro. Mas não são gotas de água, são partículas, que nos entram pela cabeça e nos saem pelos pés, ou ao invés. Parte dessa chuva é vista pelos nossos olhos, de maneira directa como os fotões da luz solar, ou de maneira indirecta como os electrões que criam as auroras boreais. A outra parte é vista pelos instrumentos, como no caso dos raios cósmicos, que são essencialmente protões, ou no caso dos neutrinos. Quanto aos gravitões, ainda ninguém os viu, mas devem andar por aí, pois existem provas indirectas da sua existência.

Onde quer que estejamos, temos sempre a pairar sobre nós uma chuvada cósmica dos mais diversos tipos de partículas elementares, sejam fotões, electrões, protões ou neutrinos. Mas o que são partículas, e porquê elementares, e até que ponto são elementares? Por detrás de cada afirmação está pelo menos uma pergunta, quando não um cardume delas, como diria o pescador irrequieto. A minha postura neste livro é também um tanto irrequieta.

Na terceira de uma série de seis conferências que Calvino proferiu na Universidade de Harvard em 1984, ele confessou: «Já desde a juventude tinha escolhido por divisa a antiga máxima latina Festina lente, apressa‑te lentamente» A prosa e a poesia seriam as duas formas literárias da lentidão e da pressa. Por temperamento, o meu discurso está mais perto da pressa. «O discorrer é correr», como diz Calvino a propósito do diálogo de Galileu, Dialogo dei massimi sistemi. O escritor identifica os personagens de Salviati e de Sagredo com as «duas facetas distintas do temperamento de Galileu:
Salviati seria o pensador metodologicamente rigoroso, que avança lentamente e com prudência; enquanto Sagredo se caracteriza pelo seu ‘velocíssimo discurso’, por um espírito mais virado para a imaginação, propenso a extrair consequências não demonstradas2». Se fosse pescador, Sagredo seria irrequieto.

(...)"

José Tito de Mendonça

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