terça-feira, 10 de março de 2015

Dos professores


Recomendo vivamente o livro "Da Educação dos Príncipes", de António Mouzinho, Professor na Escola da Portela de Sintra. que mal saiu da editora (Gradiva) já está esgotado na editora (se o leitor encontrar um exemplar ou outro numa livraria considere-se felizardo).

O livro apresenta um projecto simples e coerente, bem intencionado e generoso, para o nosso ensino público. Transcrevo aqui o capítulo dedicado aos professores, esperando que abra o apetite para a leitura do resto do livro. Tal como o autor, e ao contrário do que pensam os burocratas do Ministério da Educação, penso que os professores são a mola real do ensino. É necessário que seja restaurada a confiança neles: 

"Já o disse, de certo modo, atrás: para se ser professor, é fundamental gostar de dar aulas. Para isso, é condição necessária gostar de transmitir conhecimentos, qualquer que seja o seu tipo, e de obter adesões entusiásticas ao que quer que seja que se transmite: aquilo que é o coração do espírito proselitista.

Quem gosta de ensinar não o faz, vulgarmente, com indiferença pelo interlocutor. As pessoas têm diferentes formas de comunicação, e público favorito. Tive, essencialmente, duas experiências de ensino com ausência do público adolescente: uma, no 2.º ciclo do básico; outra, em pós-graduações no ensino superior.

Não encontrei, em qualquer das duas, o mesmo encanto que me proporciona a conversa com adolescentes: a mistura de timidez ou reserva com entusiasmo e provocação que há na atitude destes é, para mim, uma fonte de permanente divertimento.

Ora, é essencial que a profissão de professor divirta. Como é que se sabe? — experimentando. Em miúdo andei uns anos no liceu Pedro Nunes. Era o liceu Normal de Lisboa, e muitos professores tinham a cargo a orientação dos estágios pedagógicos. Era esse o mais importante ritual de entrada na profissão. Os alunos identificavam rapidamente os verdadeiros professores, no meio dos estagiários.

Alguns eram melhores que este ou aquele orientador… Outros — uma minoria — nunca deveriam ter entrado na profissão. Não era tecnicamente que falhavam; simplesmente, não eram talhados para aquilo. Os alunos reconheciam-no; os metodólogos, também. Que faziam a um professor sofrível? Davam-lhe uma nota menos boa.

Nunca lhe diriam algo parecido com: «esta profissão não é para si». Ainda hoje cumprimento uma ex-estagiária do professor Rómulo de Carvalho, de 1962 ou 63 (vimo-nos, uma vez, num concerto; cruzamo-nos, de vez em quando, a passear por Lisboa; já nos cumprimentámos num supermercado).

Era uma professora notável, já na altura, e gostei de lhe falar por reconhecimento, embora ela não faça a ligação entre este colega, pouco mais novo— que agora se lhe reapresentou, e a cumprimenta—, e o rapazola, medíocre aluno de Ciências Físico-Químicas, que prestava mais atenção às suas aulas do que às de outros estagiários, porque eram claras, serenas, com bom ritmo, lucidamente preparadas, apresentadas com firmeza e inteligência aliciantes.

O recrutamento de professores é fundamental. Por isso, não pode haver falhas científicas (não falo de vulgares enganos: cometem-se, e corrigem-se), e não pode haver importantes falhas na relação com os alunos.

Primeira condição: por detrás de um professor deve estar, sempre, um mestrado (falo de Bolonha, evidentemente: diria licenciado, antes do acordo; mas igualmente falo de mestrado no sentido de mestrança: o domínio comprovado de um ofício).

Na minha opinião, deve sair de uma faculdade qualquer com um mestrado geral, e não um mestrado de ensino; ou emergirá da proficiência num ofício. Estudos de pedagogia podem fazer-se numa estrutura posterior de acesso à profissão, bem como — sobretudo — as didáticas das disciplinas que serão ministradas.

Mas isso será, normalmente, o complemento desse mestrado geral ou dessa mestrança que deixará sempre aberta a porta de outra profissão: liberal, funcionalismo público, investigação, ofício ou artesanato, o que se quiser fazer, como alternativa de carreira. A uma porta fechada para o ensino, por parte de quem tiver uma palavra a dizer sobre o acesso à profissão, deverá poder seguir-se um novo rumo, e não um cul de sac.

 Segunda condição: a escolha de um docente deve ser feita por um processo exigente de entrevista, e estágio: os estágios pedagógicos tradicionais sempre tiveram a seguinte virtude: falava-se essencialmente de didática das disciplinas, os estagiários observavam aulas de um professor experimentado, e as dos colegas; as suas aulas eram observadas num prazo extenso.

A própria avaliação por pares praticada a determinada altura (com efeito pouco mais que supletivo), era informada por numerosos momentos de presença em aulas alheias. Não consigo ver nada de errado nesta sequência: mestrado— concurso— estágio— admissão no ensino.

Penso, ainda, que a esta admissão poderá ser acrescentado um período probatório (1 ou 2 anos?), e uma avaliação definitiva. Se tudo correr bem, é para o resto da vida. Um «chumbo» no estágio representaria um recuo para a segunda escolha: um sofrível professor de Biologia pode ser um investigador impecável.

Aos 24 ou 25 anos de idade poderá estar, sem danos, com tudo em aberto— menos na carreira do ensino. Atualmente, a hierarquia funciona ao contrário. Também não admira: aos olhos de muitas das famílias portuguesas os professores, neste momento, mais não são do que diplomados ineptos que, como corolário da inépcia, dão aulas.

Terceira condição: o professor deve poder escolher, do leque que vai, no percurso escolar, do 1.º ano ao fim da preparação profissional, a faixa etária dos alunos com que prefere trabalhar. Tive péssimos professores na faculdade, porque se entendia— e entende— que a pedagogia só se aplica no Básico e no Secundário.

É uma asneira colossal: faz falta na faculdade, e todos os estudantes universitários o sabem. Brilhavam os olhos ao meu pai e soltava-se-lhe a língua quando recordava o seu professor Vitorino Nemésio.

Tenho essa experiência do meu professor José-Augusto França. Conheci investigadores de primeira água que eram professores medíocres, porque eram postos a dar matéria curricular a turmas normais, em vez de se ocuparem com investigação, divulgação de memórias, seminários e orientação científica de mestrandos e doutorandos.

Ou eram medíocres simplesmente porque sim: não eram professores, e não deviam estar ligados à docência regular, embora fossem uma presença inestimável na universidade no papel de investigadores.

Mas, enfim: tudo isto extravasa; é já com as direções e os conselhos pedagógicos das universidades.

Quarta condição: decorre das três anteriores, e aplica-se particularmente ao perfil dos candidatos a ensinar as primeiras classes do Básico: não faz qualquer sentido, sabendo o que se sabe hoje, inventar umas escolas à parte da universidade onde se formam — com critérios, nalguns casos, nebulosos — jovens que não são fortíssimos em Matemática e Português e não falam um par de línguas estrangeiras, não desenham, não cantam nem dançam, não percebem patavina de música, não têm um gosto afirmado pela leitura, e pelas ciências, e pela História, não praticam desporto — mas estudaram Piaget, e sabem ensinar a ler por um método global tirado à sorte, na sala de aula, com palhinhas. 

Pobres professores; pobres alunos.

Pertenço a uma família de docentes e, como já afirmei, com professores primários incluídos. Sei como estava bem organizada a cabeça destes, e a qualidade das aulas que ministravam. Conheço a excelência do que faziam, mediante um trabalho diário que sempre me encheu de espanto. Conheço as insuficiências que amiúde me revelavam por trabalharem— evidentemente— em monodocência: «ah, se eu soubesse isto; ah, se eu tivesse jeito para aquilo».

Nós outros, professores de anos mais à frente no Básico, ou no Secundário, «refugiamo-nos» na especialização. Isto não é desejável no 1.º ciclo do Básico, porque já há muito se percebeu que a monodocência tem, para meninos dessas idades, inúmeras virtudes.

Então, os professores do 1.º ciclo têm de ter um mestrado em alguma coisa que lhes dê abertura às profissões liberais, ou à carreira pública, sendo, para mais, dos melhores generalistas de todos nós. Assim como estão, são como nós— e muitos de nós seríamos insofríveis mestres-escola! Uma carreira profissional feita com gente escolhida desta forma, tem de ser bem remunerada e independente.

Não vale a pena estar aqui a listar números com muitos algarismos: basta afirmar que a remuneração de uma elite que tem como ocupação ensinar os nossos cidadãos não pode comparar-se muito desfavoravelmente com as profissões liberais. Ou quaisquer profissões.

E é escusado dizer que não pode reger-se por uma equivalência com tabelas da função pública: a profissão de professor é específica, e essa especificidade deve ser clara, também, no capítulo da carreira— que se quer longa, sem sobressaltos, em benefício da comunidade, com vantagens comummente reconhecidas na economia de qualquer nação. Deixemos as avaliações rotineiras para onde elas façam falta e sentido: professores escolhidos por processos de seleção como o atrás descrito só precisam de ser avaliados, como já foi dito, se algo correr mal.

Nem sequer precisam de ser escrutinados quanto à frequência e qualidade das ações de formação que frequentem durante a vida: são pessoas que se mantêm, por todos os meios, atualizadas quanto à sua profissão— porque a acham de primordial importância para serem felizes, servindo com os seus conhecimentos as raparigas e rapazes que ensinam.

Hão-de frequentar tudo quanto, de facto, sentirem que lhes faz falta, porque são gente irrepreensivelmente curiosa. De facto, haverá muito a dizer acerca da sobreposição entre a profissão de professor e variadíssimas profissões fora da escola: um mestre na arte de fabricar sapatos só pode ser reconhecido no exercício dessa atividade, pelo que convém que também a exerça; o mesmo se poderá dizer de um pintor, ou de um cozinheiro; de um músico, ou de um ator; de um serralheiro, ou de um arquiteto.

Se um bom professor de Português pode simplesmente ser um amante da literatura do seu país que tirou um curso superior, já um bom professor de alfaiataria tem de ser descoberto entre os contramestres que por aí exercem…

Quinta condição: quanto aos restantes professores da escolaridade obrigatória: mantenham-se os critérios exigentes na primeira seleção, quanto à Matemática, ao Português, e ao gosto pela leitura, e reforce-se isto com uma indiscutível solidez de conhecimentos na sua área de especialidade.

Sexta condição: os estágios, seguidos dum período probatório, envolveriam, na sua essência, aquilo que a investigação científica mais recente estivesse a fornecer quanto a práticas de sala de aula e de avaliação de conhecimentos dos alunos: teoricamente — em seminários, etc. — mas, igualmente, em contexto de sala de aula (dois exemplos, à sorte: confronto com uma turma faladora; efeito dos testes escritos na evolução do conhecimento).

Envolveriam, por outro lado, maciçamente, didática das disciplinas ministradas (exemplificando de novo: como lançar, em Matemática, os números imaginários; como estabelecer, em Latim, estratégias para o entendimento de uma frase).

Sétima condição: começar pelo princípio, criando todas as condições para o 1.º ciclo do Básico ser terreno prioritário para receber reforços— sem importunar os professores que já estão no sistema e fazem o seu trabalho corretamente (são muitos!).

Se a monodocência não é, desde já, praticável como solução única, recorra-se à pluridocência de reforço. É insano pensar que se faz o que quer que seja em dois dias — ou em dois anos. Um plano de educação novo só pode começar a produzir efeitos em dez a vinte anos, pressupõe colaboração entre quem chega e quem está, e condições de transição equitativas, sólidas e muito pacíficas.

Não é para mágicos da política munidos de conversa, pressa, e palavras como «abracadabra». É para políticos sérios, e vai sendo tempo de eles surgirem, porque a forma como sucessivos ministérios tentam ocupar primeiras páginas de jornais com gabarolices relativamente ao último Pisa que correu bem, por exemplo, devia enchê-los de vergonha. Pessoalmente, tenho-me sentido sempre constrangido: por quem é que essa gente nos toma? Que arrivismo embaraçoso!

Oitava condição: um posto definitivo num lugar da estrutura educativa é merecedor de respeito: aí, sim, o professor é-o com todas as prerrogativas, e todos os privilégios. Tem direito a estabelecer os fundamentos de uma vida de ensino e uma vida privada sem ser agitado por fenómenos espúrios como concursos sucessivos, colocações compulsivas, horários zero, tarefas inadequadas de feição administrativa, e toda a carga de trabalhos e reuniões inúteis que hoje em dia é considerado normal infligir a docentes — com o pretexto de que estão lá e o Estado tem a obrigação regular de chocalhá-los.

Claro que há necessidade de tornar atrativos os lugares mais afastados dos grandes centros urbanos, o que significa que haverá que pensar em alguns apoios para instalar o professor e a família que queiram aceitar a vida na província, no par de anos que corresponde à integração no terreno. Qualquer empregador privado inteligente faz isso. Qualquer empregador privado faz mais outra coisa: explica minuciosamente, a alguém que esteja a contratar, para o que é que precisa dele, e onde.
E abre concurso para uma vaga em Valença, não abrindo um concurso para uma vaga nacional para, de seguida, surpreender o contratado algarvio com uma posição no Minho… que ele não pode recusar sem penalizações.

Nona condição, que decorre da anterior: os horários devem ser— em qualquer idade— razoáveis; as pessoas devem ter a noção de que (a menos que se trate de vigiar uma turma que faz um teste, ou coisa semelhante) um professor aplicado que dá quatro aulas de enfiada, com uma hora cada, fica cansado. Muito cansado.

Recordo-me dos meus vinte e tal anos, e já era assim; não muda com a idade. Colegas de profissão estão de acordo. Ambos os meus pais foram professores do ensino técnico (passaram após o 25 de abril ao regime comum), e tinham o mesmo limite. Horários letivos equilibrados, em dedicação exclusiva, poderão andar por volta das 20 horas de aulas semanais, compreendendo turmas normais e turmas de ensino especial de enquadramento de alunos com qualquer tipo de dificuldades.

O resto poderá ser um conjunto variado, dependendo dos projetos de escola, ou pessoais, em que o professor esteja envolvido, mas a componente letiva deverá ser essa— e, admito, sem grandes diminuições com o passar dos anos; um limite mínimo de 14 a 16 horas é aceitável: como é natural, é aquilo que alguém que escolheu esta profissão mais gosta de fazer. 

Décima e última condição: dadas as orientações do curriculum nacional, particularizadas nos programas das disciplinas, assentemos nisto: o professor deve ser totalmente independente na organização das matérias e das suas aulas. Pode, e deve, trabalhar com os colegas para apontar caminhos dentro da sua escola. Mas em matéria pedagógica aceita sugestões, estabelece consensos— não precisa de ordens.

O texto do Estatuto da Carreira Docente atrás mencionado está certo, apenas deve ser aplicado. Demasiados conselhos pedagógicos de demasiadas escolas portuguesas ganharam o mau hábito de intervir (com a cobertura das leis da gestão dos estabelecimentos de ensino) nos projetos de trabalho dos seus professores.

São, geralmente, incompetentes pedagógica e cientificamente para o fazer, porque são corpos de representação disciplinar reduzida, porque são designados pela direção, e porque não possuem qualquer preparação que lhes empreste bigodes de metodólogos. São, das estruturas atuais, uma das que mais precisa de mudar— e não deixarei de voltar a este assunto no capítulo sobre a gestão das escolas.

Que fique a seguinte conclusão, entretanto: é pela qualidade dos professores que se garante a qualidade do ensino; é por aí que se deve iniciar um projeto educativo, e ai do país que pense que isto pode representar um gasto excessivo ou um desvio de coisas mais prementes: instalações, novas tecnologias, novas pedagogias ou o que quer que seja.

Sem grandes professores não há um grande ensino; sem este, não temos um grande país. Qualquer outra ideia é muito parecida com considerar que temos um grande almoço se uma refeição medíocre for acompanhada por um queijinho fresco decente."

António Mouzinho

1 comentário:

regina disse...

Caro Professor Fiolhais
Felicito-o por ter trazido ao blogue este texto de António Mouzinho, com o qual estou em total acordo na generalidade dos pontos que foca, e a que vou referência no meu blogue.
Como sabe, fui professora de Física e Química 39 anos, 29 dos quais como orientadora de estágio e 10 acumulando com a docência da didática da Física, no mestrado em Física para o ensino, na FCUP. A par da docência fiz investigação em Didática da Física e da Química. Tive oportunidade de contactar com formadores de outros países, que consideravam exemplar o nosso sistema de formação de professores.
Licenciada em Físico-Químicas trabalhei dois anos antes de ingressar em estágio. Tive um orientador excecional pelo que, profissionalmente, o estágio me fez crescer muito . No final do estágio fiz exame de estado. Com o alargamento dos estágios surgiu a necessidade de mais orientadores e, passados dois anos, o meu nome foi sugerido pelo meu orientador. Sabendo que poderia continuar a contar com o seu apoio, aceitei o desafio.
Aos sessenta anos aposentei-me, desgostosa por ver o rumo que levaram a formação de professores e consequentemente a docência.
Infelizmente não vejo os nossos políticos minimamente interessados em investir numa educação de qualidade.
Regina Gouveia

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...