segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Claudio Magris ( Trieste, 1939) e Carlo Michelstaedter (Gorizia, 1887 –1910)

 
Um Outro Mar, novela do escritor triestino Claudio Magris, envolve a vida de três amigos de Gorizia (Enrico Mreule, filósofo; Carlo Michelstaedter, filósofo e poeta; e o livreiro Nino). Alguns anos antes de começar a primeira guerra mundial, Enrico parte para a Patagónia e entrega a sua arma a Carlo. É com esta arma que a «consciência mais sensível do século», de acordo com a palavra de Magris, se vai suicidar. 

À semelhança de Trieste — mar de Umberto Saba, mirante de Italo Svevo e artéria de Scipio Slataper—, Gorizia está impregnada de três culturas (a latina, a do império austro-húngaro e a eslava) e pelo mar adriático que bruxuleia na poesia de Carlo.

Claudio Magris, para além de ser um grande escritor e divulgador de literatura, está também atento às ciências físicas. Exemplo, do que acabo de escrever, são os três excertos, em baixo, da novela :


«Agora é noite e não se vê nada, mas mesmo antes, com os olhos entreabertos no sol implacável e manchas purpúreas debaixo das pálpebras, aquele azul profundo do céu e do mar parecia negro; aliás o universo é escuro e só o olho, também ele velho filólogo, tem a mania de traduzir invisíveis frequências de onda em luzes e cores. Mesmo no revérbero ofuscante do meio-dia, quando o mar é todo ele um reflexo, não se vê nada e é um deslumbramento, a epifania dos deuses.»

«Em Trieste, à partida, apenas Nino o acompanhara. Na cabine do comando deve estar o sextante, que define a posição do mar medindo a altitude dos astros no horizonte, impercetivelmente mais baixos à medida que se avança para o Sul. Enrico tenta imaginar o sextante e os outros instrumentos que servem para manter a direção e para não se perder, para saber onde se está e consequentemente quem se é naquela extensão igual à das águas; a sua vida aquém ou além do oceano, será toda ela uma trigonometria de águas-furtadas onde se encontravam todos os três— Carlo, ele e Nino.»

«Enrico, dispara, o pato bravo cai no chão, num instante o voo heráldico é um lixo deitado pela janela. A lei da gravidade é decididamente um fator de deselegância na natureza; apenas as palavras estão preservadas, mesmo aquelas impressas nos clássicos gregos e latinos das editoras Teubner e Leipzig.»
 
Termino, com as primeiras estrofes do poema Senia de Carlo:
Senia
I)
As coisas que eu vi no fundo do mar,
os abismos negros, as luzes longínquas
as algas entrelaçadas e as bizarras criaturas,
Senia, quero somente a ti contar.
 

Há muito tempo que este instante no passado,
no fundo do mar, eu tenho mergulhado.
A fim de dar morada à sereia exilada,
a mim mesmo e ao homem derrotado,
 

e contar a vida do seu reino perdido,
quero mergulhar com mais vigor,
para que o homem narre os tenebrosos arcanos
e conheça de perto as coisas longínquas.
 

Mas o que já vimos no fundo do mar,
os negros abismos, as luzes longínquas
as algas entrelaçadas e as bizarras criaturas,
Senia, quero somente a ti contar.

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Elegante e transmitida a lucidez. Excelente professor Angelo Aves.

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...