segunda-feira, 17 de novembro de 2014

INTERSTELLAR: ODEIA, ODEIA A LUZ QUE COMEÇA A MORRER



Minha apreciação ao filme Intestellar, do realizador anglo-americano Christopher Nolan no Público de hoje: aqui. Trancrevo o texto porque o acesso ao Público é limitado (completei a nacionalidade do realizador e corrigi uma gralha):

“Odeia, odeia a luz que começa a morrer.”


O verso Odeia, odeia a luz que começa a morrer é de Dylan Thomas, o escritor galês cujo centenário se está a comemorar. Ele é repetido por um dos personagens principais do filme Interstellar, do realizador anglo-americano Christopher Nolan, que acaba de estrear em Portugal e em todo o mundo (ou, pelo menos, no planeta Terra). Quem o repete é o Prof. Brand (Michael Caine), um físico da NASA que procura o mistério último da gravidade e, com ele, a esperança de salvação para uma humanidade em desespero. O verso de Thomas, que inspirou o título de uma obra de António Lobo Antunes, abre um poema belíssimo: “Não entreis docilmente nessa noite serena, / porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;/ odeia, odeia a luz que começa a morrer.”

Interstellar é uma glosa cinematográfica ao tema da morte, neste caso o apocalipse do nosso planeta devastado por tempestades e pragas. Como ocorre em geral nos seus tratamentos artísticos, também aqui a morte é recusada. Escreveu um outro poeta, o alemão Friedrich Hoelderlin: Onde há o perigo, surge também a salvação. A redenção é, no filme, proporcionada pela ciência e pela sua filha dilecta, a tecnologia.

Desvendemos um pouco do enredo, embora tentando não desmanchar o prazer dos leitores que ainda não viram. Num futuro indeterminado, vastos campos de milho surgem cobertos por nuvens de poeira e são pasto de doenças. Nesse mundo distópico, com o ar a ficar irrespirável, a ciência e a tecnologia quase desapareceram (já só voa um drone solitário). Na escola ensina-se que a ida à Lua não passou de um embuste. E os estudos superiores são um capricho face a necessidades básicas de sobrevivência. Um agricultor que foi piloto de testes da NASA, Joe Cooper (Matthew McConaughey), tenta manter a sua família: a espertíssima filha adolescente Murph (em jovem Mackenzie Foy e, mais tarde, Jessica Chastain), o seu irmão e o seu sogro, já que a mulher tinha morrido de um tumor na falta de diagnóstico por ressonância magnética. Este cenário dantesco está longe de ser novo na ficção científica: lembrei-me logo de Um Cântico para S. Leibowitz, de Walter Miller, onde a humanidade regressa à Idade Média após um desastre nuclear e só um escasso conhecimento sobrevive em fragmentos. O filme não é claro sobre a origem do “fim do mundo”. Há uma referência ao Dust Bowl, uma série de tempestades que ocorreram, por desleixo humano, durante a Grande Depressão Americana, originando fome e miséria: o filme mostra depoimentos autênticos de um documentário de sobreviventes. O fim no filme não é nuclear, com uma explosão, mas sim o silêncio imposto pela falta de ar, Como escreveu um outro poeta, T. S. Eliott: O mundo não acaba com um estrondo, mas com um suspiro.

Mas enquanto há vida há esperança. E a esperança irrompe aqui de um modo estranho a meio de uma estante. Na pequena biblioteca do quarto da Murph surgem sinais, que enviam Cooper para uma secretíssima base da NASA, às ordens do Prof. Brand. Ao despedir-se comoventemente da filha, o pai não sabe que lhe está destinado o papel de salvador da humanidade. É enviado para Saturno a bordo de uma estação espacial pois é lá que se encontra a porta de um buraco de minhoca, isto é, um atalho no espaço-tempo para um longínquo domínio interstelar. E é do outro lado do buraco que vai partir à aventura para dois planetas aonde antes tinham sido enviados pioneiros, com o intuito de encontrar refúgio para a humanidade. O plano do professor consistia em domar a gravidade, alargando o referido buraco, para enviar o que restava da humanidade a povoar as novas terras encontradas.

O que são buracos de minhoca? Uma ideia dos físicos teóricos que exige uma prodigiosa distorção do espaço-tempo. Segundo a teoria da relatividade geral de Einstein, invocada repetidamente ao longo do filme, o espaço está ligado ao tempo (o espaço-tempo), a matéria à energia (a matéria-energia) e a matéria-energia comanda o espaço-tempo. Matéria-energia muito densa pode contorcer o espaço-tempo. O aproveitamento cinematográfico do conceito não é novo. Já o astrofísico Carl Sagan o tinha usado em Contacto, livro que serviu de guião a um filme onde McConaughey entrou, tendo recorrido aos préstimos do seu colega Kip Thorne. Thorne foi agora o conselheiro científico de Nolan. O aproveitamento das especulações de Thorne era uma ideia que estava na carteira de Spielberg, o realizador de Encontros Imediatos de Terceiro Grau e de IA, mas este cedeu-a a Nolan, o autor de Memento e de Cavaleiro das Trevas. O que há de real nos buracos de minhoca? Bem, de facto, não se conhece nenhum, mas discute-se, em papers de física, a possibilidade de os construir, o que exigiria não só matéria exótica que dobrasse o nosso espaço-tempo a quatro dimensões mas também dimensões adicionais. Um físico companheiro de Cooper explica no filme com a ajuda de uma folha de papel: marca dois sítios, a entrada e a saída do buraco, e diz que eles ficam ligados ao dobrar a folha, isto é, acrescentando outra dimensão. O tema das dimensões adicionais é corrente hoje na cosmologia e na física de partículas, apesar de não haver provas da sua existência. A ideia agradou a Einstein por permitir a unificação das forças da Natureza, o seu grande sonho que ainda não se materializou. É nele que o Prof. Brand estava a trabalhar, no futuro onde o filme nos mergulha.

E o que há do outro lado do buraco de minhoca? Um outro mundo. Planetas estranhos, um deles tão estranho como as paisagens da Islândia, uma vez que parte do filme foi aí rodado, e um buraco negro gigante, o Gargantua (nome retirado a Rabelais), que teve de ser criado virtualmente. Entre outros truques científicos, o enredo envolve a animação suspensa, que consiste na suspensão das funções vitais de uma pessoa preservando-a pelo frio, e a disseminação de embriões humanos noutros planetas, crioperservados pela Dr.ª Amelia (Anne Hathaway), a filha do Prof. Brand. Há também uma profusão de truques cinematográficos, como a pelas câmaras IMAX e um nível de som que pode incomodar os ouvidos mais sensíveis e que contrasta violentamente com o silêncio sideral. E há truques científicos que combinam com truques cinematográficos como os cálculos que Thorne efectuou para tornar  a imagem de um buraco negro. o mais realista possível

Como o buraco negro tudo atrai, desde a luz até a curiosidade humana, os nossos heróis acabam por se precipitar para o buraco negro. Cooper, com a ajuda de um robô não humanóide a quem foram dadas as deixas mais engraçadas (lembrei-me do Hals de 2001 Odisseia do Espaço, de Kubrick, uma das influências reconhecidas por Nolan), entra no buraco negro para obter segredos sobre a força gravitacional. Esta é a parte que me pareceu mais inverossímil de toda a trama, cuja base científica é em geral impecável, incluindo as especulações aparentemente desenfreadas sobre o tempo. Os sinais são enviados para a Terra. E, nesta, Murph vai conseguir recolhê-los para continuar o projecto do Prof. Brand. Dentro do buraco negro Cooper cai em dimensões superiores, numa tesselagem que aparece por trás da estante do quarto da miúda. Sim,  miúda, porque Cooper viajou para trás no tempo no interior de Gargantua.

A humanidade salva-se? Sim, graças, como era previsível de início, à Drª. Murph, que acabou por estudar física teórica (o nome dela afinal enganava pois algo vai correr bem!). E Cooper fica sepultado no tenebroso buraco negro? Não. Afinal não era um buraco negro mas um outro buraco de minhoca, bem maior, com uma entrada em buraco negro e uma saída em buraco branco. Um buraco branco é o contrário de um buraco negro: dele tudo sai, em vez de nele tudo entrar. Vai dar a uma base espacial, em Saturno, para onde a humanidade, ressuscitada pelos conhecimentos de física, se tinha conseguido escapar. Ainda chega a tempo de ver morrer a sua filha, com 134 anos, enquanto ele continua jovem. É o famoso paradoxo dos gémeos, enunciado pelo físico francês Paul Langevin, contemporâneo de Einstein: um viajante que vá a estrelas distantes à velocidade próxima da luz e volte consegue manter a juventude. Mas donde veio a salvação, perguntará o leitor? Talvez do futuro, de uma humanidade muito evoluída…


Contado assim (ou melhor semi-contado, porque não conto os saltos surpreendentes do enredo) até parece um filme de ficção científica de série B. Mas, não, é um dos grandes filmes do nosso tempo. Para além de estar muito bem realizado (talentosos actores e portentosas naves consumiram o orçamento do filme, equivalente ao Euromilhões), a obra de Nolan não é sobre o espaço interestelar mas sim sobre o homem, a parte do universo que mais nos interessa. É um hino à vida, ao mostrar a resistência à morte que o conhecimento permite. Odeia, odeia a luz que começa a morrer. Mas, talvez mais do que a ciência, o triunfo da vida baseia-se no amor, simbolizado aqui na ligação cósmica entre pai e filha. Um ser humano vai ao fundo da escuridão, ao interior do buraco negro, em busca da luz para dar à filha. É um representante da humanidade que recusa a noite escura, mas, para tanto, o conhecimento tem de se conjugar com o amor. O conhecimento sozinho não chega para salvar ninguém.


5 comentários:

regina disse...

Gostei muito do texto que citei no meu blogue.Espero ver o filme em breve.
Regina Gouveia

Nuno Henrique Franco disse...

Ficou-me na retina esta particularmente feliz descrição: "...o buraco negro tudo atrai, desde a luz até à curiosidade humana..."

Mário R. Gonçalves disse...

Visto o filme, tive uma enormíssima desilusão. Nem sequer me parece cumprir um papel de divulgação científica, tantas são as asneiras do argumento, já amplamente enumeradas. Mas a cinematografia então é mesmo má, mal montado, mal narrado, actuações medíocres, plasticamente pobre, um filme falhado em quase toda a linha.

Para mim, salva-se a citação do 2001 Odisseia no Espaço, perto do final, com Cooper a deambular perdido numa teia dimensional para além do nosso espaço, como um fantasma. Seria um belo final.

Mário R. Gonçalves disse...

No meu blog:

http://olivrodaareia.blogspot.pt/2014/11/interstellar-de-christopher-nolan-um.html

Pinto de Sá disse...

Boa síntese, prof. Fiolhais! E ilumina um aspecto aparentemente "piegas" do filme, que é o papel da relação pai-filha. Ouvi acusá-la de ser uma cedência ao melodrama, por desistência do altruísmo pela "grande Humanidade" (abstracta), mas, como explica aqui, essa relação é simbólica e materializa a outra.

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