segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A linha que separa a ciência da pseudociência


Extracto do livro "Pseudociência" de David Marçal, que está quase, quase a sair como ensaio da Fundação Francisco Manuel dos Santos e que foi falado na Noite dos Investigadores no Rómulo em Coimbra:

 "Em 2002 na vila de S. Bartolomeu de Messines, concelho de Silves, no Algarve, algumas mulheres saíram para a rua e desnudaram-se da cintura para cima. Tinham sido contactadas por alguém que afirmava ser médica e que oferecia exames de mamografia por satélite. À hora combinada, “a que passava o satélite”, as mulheres saíam para locais descampados e seguiam as instruções ditadas por telefone. Primeiro uma mama, depois a outra. Às vezes era preciso repetir, porque o satélite não apanhava bem. Nalguns casos em três ou quatro locais, na esperança de melhorar a captação do satélite. A voz no telefone fazia pedidos bizarros e orientava dinâmicas de grupo que envolviam vários pares de mamas em simultâneo. À noite, a falsa médica telefonava novamente às pacientes para transmitir os resultados: tinha-as observado a tarde inteira com binóculos e afirmava ter tido vários orgasmos. Este embuste, tão simples e absurdo que se pode considerar caricato, apresenta pelo menos duas características habituais da pseudociência: o uso de linguagem científica (a suposta tecnologia inovadora) e uma figura de autoridade (a alegada médica). 

Há várias definições de pseudociência. Neste ensaio vou começar por socorrer-me de uma definição prática: pseudociência é qualquer tipo de informação ou actividade que se diz baseada em factos científicos, mas que não resulta da aplicação válida de métodos científicos. Claro que, para entendermos esta definição, teremos que saber o que é a aplicação válida de métodos científicos. Mas esse problema incontornável é a grande questão subjacente a este tema. 

O físico norte-americano Richard Feynman comparou a pseudociência ao “culto da carga”, um conjunto de rituais praticados por alguns povos das ilhas do Pacífico no final da Segunda Guerra Mundial. Nesses rituais, alguns indígenas imitavam os procedimentos dos militares norte-americanos nas bases aéreas, de modo a receberem, também eles, a “carga” transportada pelos aviões. Construíam pistas de aviação rudimentares e cabanas para o “controlador aéreo”, um homem com dois bocados de madeira na cabeça a imitar auscultadores e dois paus de bambu a imitar antenas. Feynman, no seu livro “Está a brincar Sr. Feynman” (Gradiva, 1988,) sugere que há uma analogia entre o “culto da carga” e a pseudociência: 

“Seguem todos os preceitos e formas aparentes da investigação científica, mas falta-lhe qualquer coisa essencial porque os aviões não aterram.” 

Na tentativa de imitar a ciência, a pseudociência copia a linguagem e os padrões estéticos normalmente associados à ciência. A razão pela qual os aviões não aterram, ou seja, o que falta à pseudociência apesar de toda a imitação que faz da ciência, são as provas. A ciência, ao contrário da pseudociência, assenta em provas e não em figuras de autoridade. 

Na origem desta confusão entre ciência e pseudociência está o desconhecimento das características da ciência e do método científico. Se soubermos bem o que é a ciência, mais dificilmente nos deixaremos enredar pelos delírios dos falsos controladores aéreos com dois paus de bambu a imitar antenas na cabeça. 

O desconhecimento das características da ciência resulta por vezes numa visão mitificada. Nessa visão, a ciência é erradamente vista como sendo capaz de fornecer solução para todos os problemas, infalível e imperscrutável. De algum modo é a ciência como uma espécie de religião, em que o conhecimento científico é apresentado como uma crença, validada por figuras de autoridade. Essa visão da ciência é o terreno fértil para semear ideias falsamente científicas." 

 David Marçal

5 comentários:

Anónimo disse...

Pois, só podia dar nisto: nem tocou na superfície do problema. Para início de conversa, não há várias definições de pseudociência; haverá vários conceitos de ciência e análise sobre o problema da demarcação (obviamente, desconhece as diferenças que se escondem nestes termos). Por outro lado, qualquer especulação teórica em ciência é ciência e no entanto não oferece provas nenhumas (muitas vezes estas só aparecem décadas e décadas depois). Depois - isto para além do anedótico de ir buscar Feynman para um assunto que claramente não domina - raciocina assim: se soubermos o que é ciência e o método científico sabemos o que é pseudocientífico. Uma vulgaridade quase infantil. Por um lado, nem tudo o que não é ciência, não é pseudocientífico. Por outro lado, o problema é obviamente outro: o que é a ciência? existe alguma coisa como "método científico"? o que é? Qualquer pessoa com o mínimo dos mínimos de conhecimento em epistemologia sabe bem que em cada uma destas questões - que o Marçal passou ao lado - escondem-se intermináveis páginas.
Por fim, confunde cientismo, positivismo e alguma crítica vinda de um estruturalismo (?) à ciência. E quanto às crenças...prove, por exemplo, que existe uma realidade independente do sujeito que o conhece ou que o mundo pode ser conhecido tal como ele é. Divirta-nos com a sua ignorância.

Anónimo disse...

Leia a segunda página, quando tiver oportunidade

Anónimo disse...

É a errata? É que para coisa desgraçada já basta esta página e a ignorância apanha-se num parágrafo.

Anónimo disse...

Antes de mais devo dizer que sou um anónimo que não tem nada que ver com os de cima nem com o autor, mas estes comentários são muito cómicos. Têm muita piada aqueles que discursam sobre algumas coisas como o teólogo do Borges: o seu sistema é infalível, o problema é que o mundo está errado. Ficam a discursar sobre (e isto é um exemplo clássico) sobre a existência dos elefantes e camiões até serem atropelados. Mas não nos preocupemos, continuarão a sua análise no inferno. A maior qualidade da ciência é a possibilidade de os seus resultados poderem estar errados e isso poder ser verificado. E isto não é cientismo, há muitas coisas que não são "científicas" e são muito boas, talvez melhores ainda do que a ciência. O Feynman, com alguma piada, brincou com estas coisas: o que distingue o cientista do metafísico é o facto de o primeiro ter um laboratório. Os filósofos podem estampar-se, mas estarão sempre certos. Kant enganou.-se muitas vezes no que toca a coisas concretas, mas o seu sistema é infalível. Do que parece tratar este livro é de coisas práticas: se podemos ou não comer uma determinada coisa; se o que nos dizem na publicidade pode ou não ser válido. Não de limites. Não estamos na região entre o verde e o vermelho da bandeira, estamos mesmo no vermelho, sem sombra de dúvida. Se fossem válidas algumas coisas que propõem algumas das "pseudociências" referidas no texto toda a ciência teria de mudar e isso é um bocado exagerado. Mas olhemos para um exemplo menos conhecido. A aplicação dos resultados da mecânica quântica já está na medicina em muitos lados (a ressonância magnética, uma parte das análises clínicas instrumentais, o desenvolvimento de fármacos, etc.) mas não está em conversas de treta sobre "energias especiais", "magnetismos animais" etc. Não é um problema de demarcação, mas de bom senso mínimo. Mas isso muitas pessoas não têm.

Anónimo disse...

A intenção deste anónimo era escrever Hegel em vez de Kant, embora a frase com Kant também esteja certa. Aliás poder-se-ia deixar um espaço em branco e acrescentar (preencha o nome de qualquer filósofo que conheça ou tenha ouvido falar). Isso diz que a filosofia está errada: não e que os filósofos estavam errados. Não e não! Quer apenas dizer que algumas vezes se podem enganar ou ser induzidos em erro! O mesmo se passa com a ciência, mas essa, assim como os cientistas, não podem esperar outra coisa. Que alguém possa vir mostrar que estavam errado. No entanto, dificilmente isso será feito por um charlatão que vende enganos embrulhados em mistificações cujas "demonstrações" se baseiam em coincidências, testemunhos e falácias.

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