quarta-feira, 4 de junho de 2014

Um luso-africano na América

 ( Fotografia de Eugénio Lisboa)

 De Eugénio Lisboa, prezado colaborador deste blogue, com grande prazer, publica-se mais este ensaio saído no “Jornal de Letras”:  

Luis Amorim de Sousa, poeta, memorialista e diplomata, é um homem do mundo. Nascido em Angola, viveu em Lourenço Marques, em Lisboa, em Londres, em Washington, em Brasília, de novo em Londres, depois, em Cascais, encontrando-se, actualmente, radicado em Oxford. Escreveu poesia da mais requintadamente refinada e memorialismo do mais capitoso. Foi conselheiro de imprensa nas embaixadas de Portugal em terras da América, do Brasil e do Reino Unido. Foi amigo e grande protector (no mais nobre sentido do termo) do poeta Alberto de Lacerda, ele próprio grande personagem do mundo da cultura. E tornou-se, após o falecimento deste, o seu herdeiro único e devotado promotor internacional.

Um homem assim vivido é como a Nau Catrineta: tem muito que contar. E tem-no feito, ao sabor de uma variedade de paisagens, de culturas,  de latitudes  e longitudes, de encontros e desencontros. O Pico da Micaia, Crónica dos Dias Tesos, Londres e Companhia e, agora, Cadernos do Potomac são testemunhos vivos, cultivados, civilizados e irónicos de uma mundividência longa e bem recheada.

Cadernos do Potomac são o relato desenfastiado de uma estadia de dezoito anos em Washington (com viagens pela vasta América), na qualidade de conselheiro de imprensa, na Embaixada de Portugal. O português ultra-britânico, que se lhe vê no porte e no débito verbal, que é Luis Amorim de Sousa, caiu em terras do Tio Sam, em Novembro de 1976. Para trás, deixava um emprego na BBC, de Londres. América, pois... América... “Tremo pelo meu país, quando penso que Deus é justo”, desabafava, com alguma razão o grande Thomas Jefferson. John Wayne, herói da minha (e do Luis) adolescência, era menos temeroso e mais desavergonhadamente assertivo: “Eu não acho que tenhamos feito nada de mal, ao tirar-lhes [aos índios] este grande país. Havia um grande número de pessoas que necessitavam de terras novas, e os índios estavam egoistamente a tentar guardá-las para si próprios.” Há gostos para todos os formatos e a América do Norte é, a um tempo, brutalmente predadora e exigentemente autopunitiva. Teme a Deus, como mandam os bons costumes, e ceia com o Diabo, como mandam os apetites. Ceia talvez mais com o segundo do que teme o primeiro... Foi no meio disto que caiu o Luis, gentleman britânico de inatacáveis boas maneiras e impecável autodomínio. Estas memórias, como todos os seus livros, são o seu auto-retrato.

Sendo Luis de Sousa quem é, não se deve esperar dele confidências assassinas nem ajustes de contas deselegantes. Uma verdadeira autobiografia não pode, por outro lado, ser neutra nem assexuada: “Uma autobiografia recatada ou inibida é escrita, sem entretenimento, para o escritor, e lida, com desconfiança, pelo leitor”, disse Sir Neville Cardus, esse inconfundível crítico de música e de...cricket. E estes Cadernos do Potomac, civilizados em extremo, como é tudo quanto sai das mãos do seu autor, não são nem inibidos nem recatados em demasia. Traçam um perfil, por vezes não excessivamente lisonjeiro, de alguns diplomatas (não indicando nunca os nomes), mas é próprio das autobiografias revelarem mais o lado negativo dos outros do que o do próprio: “Eu sou franco acerca de mim próprio, neste livro”, dizia Henry Kissinger, nas suas memórias, The White House Years, para logo acrescentar: “Eu conto o meu primeiro erro na página 850.”

Seja como for, o teor necessário de alguma indiscrição, apimentadora do discurso, acabará sempre por se tornar incómodo num ou noutro lugar em que o livro é recebido. Esse é o preço a pagar pelo memorialista e por aqueles de quem ele se lembra. E não é o único: os momentos mais saborosos e invulgares do discurso narrativo, até porque invulgares, correm o risco de parecer que são “ficção” ou, no mínimo, um “alindamento” da realidade. É o caso de se dizer que a realidade ultrapassa a ficção, o que a torna duvidosa aos olhos do leitor desconfiado. Era neste sentido que o grande Clive James, nas suas imperdíveis Unreliable Memoirs, dizia que “nada do que eu disse é factual, excepto as passagens que parecem ficção.” E estas são mesmo garantidamente mais “factuais”, porque tendo-se fortemente imprimido na memória do escritor, devido à sua “singularidade”, desaparecem ou se desvanecem com mais dificuldade.

Cadernos do Potomac dão-nos a América, com as suas riquezas e contradições, o mundo da cultura com os seres e os produtos que o povoam,  dão-nos também o mundo improvável, surreal e, por vezes, um pouco pícaro da diplomacia, e dão-nos ainda os conflitos profissionais – que doem – e os pessoais – que doem ainda mais.. Personagens de forte recorte e oriundos das mais diversas paragens enchem de colorido, de ideias e de emoções este livro que, em boa hora, Luis Amorim de Sousa escreveu. Se os tempos de Moçambique e de Londres, nos livros anteriores, são interminavelmente sedutores (mesmo os momentos de maior desespero são redimidos por uma finíssima ironia, que dilui admiravelmente o negrume), estes tempos americanos não são menos densos nem menos atraentes. O número e a variedade de personagens que habitam este universo são impressionantes. Os livros de memórias devem ser isto mesmo: um fulgir constante de seres de carne e osso, com as dimensões todas e carisma bem recortado. A este respeito, Edmund Bentley, deixou-nos esta medalha, brincalhona, provocadora e certeira: “The Art of Biography / Is different from Geography. / Geography is about Maps / But Biography is about Chaps.No livro de Luis Amorim de Sousa, há alguma (pouca) Geografia e uma grande profusão de “Chaps” (Fulanos, se quiserem...).

O livro termina, no aeroporto de Washington, de partida para Brasília, com a nova mulher, Mary, e o filho, havia pouco, nascido. Termina assim: “E de repente, como se alguém tivesse ligado um projector, uma sucessão de imagens passou vertiginosamente ante meus olhos. Vi Bud and Rose e o rosto de amigos mortos, Jim Byrne, Dan Griffin, Dan Fendrik. Vi o sorriso triste do Presidente Carter. Vi Joan Mondale vestida de amarelo. Vi Joe Hishhorn de calças aos quadrados. Vi Lillian Hellman de cigarro aceso. Vi Tip O’Neill a cantar nas festas dos irlandeses. Vi Sydney Lewis sentado na cadeira de rodas... [interrompo a longa citação]. Em suma, uma sucessão de “chaps”. Porque se trata de biografia, não de geografia. De instrução e entretenimento, não de seco relatório. E um pouco de ficção...factual. Uma narrativa empolgante, civilizada e culta.
 

Eugénio Lisboa                             

1 comentário:

Old chap disse...

No fundo
No fundo
Ninguém se chama Mary.

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