quinta-feira, 17 de abril de 2014

PROBLEMA NOSSO

Minha crónica no Público de hoje:



Maria da Assunção Esteves, Presidente da Assembleia da República, retrata bem o grau de indigência cívica e cultural da maior parte da actual geração de políticos. A indigência cívica pode ser confirmada com uma consulta à Wikipédia: ela, em vez de receber o salário do lugar que efectivamente ocupa, correspondente à segunda posição na hierarquia do Estado, optou por receber uma pensão, relativa ao lugar que ocupou durante dez anos no Tribunal Constitucional, no valor de 7255 euros, a que acrescem 2133 euros de ajudas de custo.

Reformou-se aos 41 anos!

A situação dela e de outros políticos que beneficiam de privilégios inexplicáveis foi bem sumariada pelo capitão Salgueiro Maia, um dos protagonistas maiores do 25 de Abril, quando, numa entrevista dada em 1991, pouco antes de falecer, declarou: “Os nossos políticos têm uma grande preocupação em serem bem reformados e uma preocupação nula em serem bem formados”. 

Da indigência cultural, que contrasta com a formação recebida na Faculdade de Direito de Lisboa, há exemplos recentes que têm sido circulado amplamente: em plena presidência da Assembleia, perante uma manifestação do público, fez uma citação de Simone de Beauvoir que afinal era apócrifa (“não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes”) e lançou aos microfones da Rádio Renascença um chorrilho de frases abstrusas, com neologismos da sua lavra (“O meu medo é o do inconseguimento... o inconseguimento de eu estar num centro de decisão fundamental a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional derivado da crise”).

O primeiro exemplo mostra que Assunção Esteves, além de recordar mal as leituras que faz, não tem a sensibilidade exigível a quem está investido em funções de soberania nestes tempos difíceis. Se a assistência nas galerias exprime o seu descontentamento, esperava-se que normalizasse a situação com tranquila autoridade, em vez de acicatar os ânimos, como fez ao sugerir que os manifestantes, gente desesperada com a crise, eram torcionários nazis (Beauvoir referia-se, na passagem erradamente citada, à ocupação da França pelas tropas de Hitler).

O segundo exemplo é tão mau como o primeiro. Quando a rádio pediu à Presidente da Assembleia uma declaração de Ano Novo, seria de esperar que as suas palavras fossem não de medo e derrota, ainda por cima numa expressão esbugalhada, mas sim de coragem e determinação. Podemos, bondosamente, pensar que Assunção Esteves estava a tentar dar um ar demodéstia. Mas o que fica da afirmação sobre o “inconseguimento” é uma declaração de incapacidade por parte de um alto responsável político. É inevitável o contraste com os capitães de Abril. Alguém imagina Salgueiro Maia a sair de Santarém com o “medo do inconseguimento”?

Mas o pior ainda estava para vir.

Há dias a Presidente surgiu nas televisões declarando, de forma estranhamente agressiva, que a não comparência dos capitães de Abril na cerimónia oficial de comemoração dos 40 anos do 25 de Abril era um "problema deles". Mesmo que não concordasse com a eventual pretensão à palavra dos autores materiais do 25 de Abril, há formas mais elegantesde se expressar do que essa, mais própria de conversa de rua. A sua missão deveria ser prestigiar a Assembleia e não o contrário.

Eleita pelos representantes do povo para dirigir o Parlamento, deveria fazê-lo com a necessária gravitas, procurando representar todos os portugueses.Podia ter reforçado o convite aos militares para estarempresentes. Podia ter explicado que ali só falavam pessoas eleitas. Podia até ter dito que não ia adiantar mais nada sobre o assunto. Mas não. Na Casa da Democracia disse, com o fundo de uma campainha, o que ficou registado.

Não podemos deixar de concluir que Assunção Esteves não está, de facto, à altura do lugar que ocupa. O seu nome, que surgiu a Passos Coelho como solução derecurso após a dupla derrota de Fernando Nobre, não está definitivamente a par de nomes da nossa democracia comoVitor Crespo, Barbosa de Melo ou Mota Amaral, só para referir figuras do PSD que a antecederam no cargo. Para que fique claro, não quero defender o direito do tenente-coronel Vasco Lourenço falar do alto da tribuna parlamentar no próximo dia 25 de Abril.

Percebo que a resposta dos deputados seja negativa, depois de ele, à porta da Aula Magna, ter dito sobre o governo eleito: “Eles ou saem enquanto têm tempo ou qualquer dia... vão ser corridos à paulada, se não for pior". Uma coisa é estar insatisfeito com o governo, como eu estou e tanta gente está, outra é corrê-lo “à paulada” e não a votos.

Mas vivemos num país livre e o presidente de uma associação privada pode dizer os disparates que entender. À Presidente da Assembleia da República, exige-se-lhe, porém, contenção.

Problema deles? É, sobretudo, um problema nosso, enquanto Assunção Esteves estiver em S. Bento.

Carlos Fiolhais

12 comentários:

Rui Baptista disse...

Um abraço de concordância com o seu texto, caro Professor, e a forma acutilante como são descritos os factos e as pessoas a eles ligadas como, por exemplo, a ameaça das pauladas do "democrata" Vasco Lourenço! E, é bem certo, contra factos não há argumentos...

Pedro disse...

Estranho paradoxo: Enquanto na rua e nos aeroportos está a geração mais qualificada da história de Portugal, nas esferas do poder político (e jornalístico) está a geração mais desqualificada da história de Portugal. Não admira, pois, a divergência crescente entre a sociedade civil e a sociedade política. Doença cancerígena que a prazo ameaça matar a Democracia, mesmo na sua versão mais ligeira. O problema não é deles; é um problema nosso.

Carlos Ricardo Soares disse...

Não serão os deputados, nem os partidos políticos a promover e a levar a cabo o mais necessário: a reforma (autêntica, não a outra aos quarenta anos) dos "poderes" dos órgãos do Estado. É o que há de mais revoltante e causa de mal-estar na sociedade portuguesa.

Quanto à outra reforma (pensão), até seria discutível se não teriam direito a ela, a partir dos 67 anos. O que é provocador e escandaloso é o automatismo dos privilégios por parte daqueles que "estão no sistema, definido por eles mesmos, para eles mesmos".

Do que o país, o povo, está precisado, mais do que tudo o resto, é que haja moralidade!

Vegetatário disse...

Quem me dera receber uma pensão igual à da Assunção e ao mesmo tempo ser insensível (para que serve a sensibilidade?)
Quem me dera a reforma aos 41 anos igualzinha à da Esteves.
Quem me dera inconseguir fosse o que fosse, e tudo o que quer que seja que se inconsiga!
Quem me dera dizer que o problema é de quem não vai à festa depois de ter enviado o convite.
Quem me dera correr à paulada sem me esquecer de ser invisível em cada curva!
Oh! Quem me dera ser assim livre, assim incompreendida, assim invejada.

Anónimo disse...

O segredo está em inconseguir, a coisa é um pré-requisito de cargos com Poder no Estado. O Poder está nas mãos de incompetências inconseguidoras, de outra forma, como explicar o estado a que isto chegou?

O sonho e as consequências do Positivismo foi e é o governo tecnocrático, com inevitável e deliberada eliminação da Política e a desumanização dos indivíduos. Má Política irá dissolver o 'desagradável' e imprevisível factor humano e nada como uma crença puramente racional das ciências exactas para seguir um caminho gnóstico e egocêntrico. O problema é que todas as utopias revolucionárias cometem sempre o mesmo erro, sendo fruto de mentes profundamente doentes e sociopáticas, é de todo natural que essas mesmas mentes olhem a realidade e o lado humano com o horror que elas próprias projectam no mundo, é muita mania da perseguição e Antropofobia. Um governo tecnocrático e a uma agenda anti-humana é tudo o que essas mentes precisam para se refugiar.

Estas comemorações dos 40 anos do '25 de Abril' materializam a fractura entre poder e População. O conflito está seriamente aberto. Os medos, esses manifestam-se como nunca!!

Anónimo disse...

Por outro lado, já viram a quantidade de agentes políticos que estão a ser convidados para instâncias internacionais? Meus amigos, é a apoteose do INconseguimento.

Anónimo disse...

Dir-se-ia que, de acordo com um dos básicos "Princípios de Peter", a Sra. foi "... Eleita pelos representantes dos partidos (correcção factual) para dirigir ... aquilo...."
No seu stressado afâ a Sra. ainda não terá dado por isso.
JS

Carlos Ricardo Soares disse...

E não sabemos se foram feitos os descontos "de lei", como se diz do ouro, para a dita pensão "aos 41".

Carlos Ricardo Soares disse...

O que me preocupa é isto:

«Má sorte ser jovem?

Representando um quarto da população mundial, os jovens constituem uma fonte inexplorada de inovação, energia e entusiasmo em termos de esforços globais para se atingir e promover o desenvolvimento, a prosperidade e a segurança para todos. Esta é a principal conclusão do primeiro Índice Global de Bem-estar Jovem, publicado pela International Youth Foundation (IYF) e pelo Center of Strategic and International Studies (CSIS), com o apoio financeiro da Hilton Worldwide e respondendo a um desafio lançado, em 2012, pela Clinton Global Initiative.
Lançado no início do mês, é o primeiro estudo que reúne um conjunto de informações e dados estatísticos de 30 países, abrangendo todas as categorias de rendimentos e representando cerca de 70% da população jovem a nível mundial. O Índice avalia o bem-estar em seis áreas por excelência: participação cívica, oportunidades económicas, educação, saúde, informação e tecnologias da comunicação e, por último, segurança.
No seguimento dos dados mais recentes divulgados pelo INE, a 14 de Abril último, em finais de 2013 existiam, em Portugal, 400 mil “nem-nem”, ou seja, jovens entre os 15 e os 30 anos que não estão na escola e também não encontram lugar no mercado de trabalho. Este índice internacional partilha preocupações similares no que respeita à vida dos jovens em Portugal, na medida em que apesar de constituírem a maior geração da história da humanidade, são também aqueles que maiores desafios enfrentam no mundo globalizado da actualidade. Considerados já como a “geração perdida” ou como a geração NEET (o acrónimo em inglês para nem empregados, nem na escola, nem em formação), apelidada em português como “nem-nem”, os jovens entre os 10 e os 24 anos (a faixa etária escolhida para o universo deste estudo) representados neste estudo estão em risco de inverter o que nas últimas décadas tem sido norma: aspirarem a uma vida melhor do que a dos seus pais.
De acordo com Bill Reese, presidente e CEO da International Youth Foundation, “cerca de metade da população mundial de jovens está desempregada ou em situação de subemprego, cerca de sete por cento é ainda iletrada e mais de 40% dos novos infectados pelo vírus HIV/SIDA pertence a esta faixa etária”.
Adicionalmente, e como acrescenta Chris Nasseta, presidente e CEO da Hilton Worldwide, “estes jovens não têm, na sua esmagadora maioria, as competências – de vida ou de trabalho – necessárias para ocupar o lugar na sociedade que deveria ser seu por direito”. “Se os 75 milhões [de jovens desempregados] estivessem no mercado laboral e a contribuir, o seu impacto económico seria esmagador”, acrescenta Nasseta.
Dos 30 países analisados (Portugal não faz parte do estudo), apenas 15% destes jovens vivem em locais com níveis elevados de bem-estar. Ou seja, a esmagadora maioria – 85% - vive em países que demonstram níveis médios baixos ou baixos de bem-estar. Nos 40 indicadores analisados e, em termos gerais, o domínio da saúde é o que apresenta, em média, os resultados mais elevados, sendo que os mais baixos estão relacionados com o domínio das oportunidades económicas.»

Carlos Ricardo Soares disse...

O que me preocupa? É isto:

«No ranking geral, os jovens australianos posicionam-se em primeiro lugar, seguidos dos suecos, dos sul-coreanos, dos britânicos e dos alemães, com os jovens norte-americanos a ocuparem a 6ª posição. Segue-se o Japão, a Espanha, a Arábia Saudita e a Tailândia. Os cinco países com piores classificações incluem a Índia, seguida de quatro países africanos: o Quénia, a Tanzânia, o Uganda e a Nigéria.
Todavia, todos os países, mesmo os que melhor posicionados ficaram, têm muito trabalho a fazer no que respeita a melhorias em diversas áreas. Os autores do estudo alertam também para uma leitura cuidada e respectiva interpretação dos resultados alcançados: por exemplo, e no caso dos Estados Unidos, o qual na tabela geral se “porta” bem com o 6º lugar alcançado, o país desce vertiginosamente no ranking no que respeita ao nível de participação cívica, subindo, por exemplo no item que analisa a segurança. Por seu turno, países onde os jovens se sentem menos seguros, como a Colômbia, a Índia, a África do Sul ou Tanzânia, estão positivamente posicionados no que respeita à participação cívica dos jovens. Por outro lado, alertam também os responsáveis, é muito comum que os jovens de diferentes países não tenham as suas perspectivas em linha com as realidades sugeridas pelos dados estatísticos e outro tipo de informações considerados para o índice em causa. Os jovens norte-americanos, por exemplo, têm uma ideia significativamente negativa no que respeita às suas oportunidades económicas, sendo que esta é a dimensão em que o país se posiciona em primeiro lugar.
Nas palavras de Bill Reese, o principal objectivo deste índice inaugural é servir como um “guia orientador que ajude os governos, as agências de ajuda estrangeira, as empresas e as organizações de filantropia a decidirem quais as áreas que carecem de maior necessidade para o investimento dos seus recursos e onde este terá mais hipóteses de gerar resultados mais positivos”. Para o presidente da IYF, a ideia é também a de que este estudo obrigue a um olhar mais abrangente no que respeita aos desafios enfrentados pelos jovens de hoje, e que seja gerado um verdadeiro debate sobre o desemprego jovem, o qual inspire mais actos do que palavras por parte dos decisores mundiais.
Mundo jovem, futuro hipotecadoAs estimativas apontam para a existência de 1,8 mil milhões de jovens no planeta, com idades compreendidas entre os 10 e os 24 anos. Adicionalmente, e com mais um quarto da população mundial com idades inferiores a 10 anos, estamos perante um planeta muto jovem. Devido a estes padrões demográficos, o futuro próximo do desenvolvimento global, da prosperidade e da segurança irá depender, em larga escala, de uma diminuição eficaz dos gaps de oportunidades existentes, os quais, se não abordados eficazmente, poderão funcionar como um rastilho perigoso de insatisfação e distúrbios sociais. Assegurar que os jovens de hoje sejam capazes de se libertar dos ciclos de pobreza que os envolvem, que consigam vislumbrar oportunidades económicas e que sejam equipados com as ferramentas necessárias para conduzir as comunidades onde vivem a um futuro mais equitativo não pode constar apenas dos guias utópicos da humanidade.»

João Alves disse...

"O problema é deles", parece-me contenção mais que suficiente. O 25 de Abril também se fez para acabar com a pecha do respeitinho. Não gosto de Assunção Esteve, acho um escândalo a sua reforma, que foi aprovada em Lei do parlamento sem nenhum voto contra, mas não acho que neste caso Assunção Esteves se tenha excedido. Quem se excedeu foi quem exigiu estar acima da vontade popular.
No parlamento inglês, um deputado republicano goza invariavelmente com o representante da rainha todos os anos: "Lá vem o gato das botas" é das mais simpáticas tiradas. É que aquela gente dá-se ao respeito, mas desconhece o respeitinho!

José Mesquita disse...

Era ainda um miúdo e por vezes ouvia o meu Pai dizer que o país estava a saque. Sabia, das aventuras de banda desenhada, o que era um saque mas como não via nada disso no mundo que me cercava, achava aquilo muito estranho e não entendia. Já passaram entre 30 a 40 anos. Entretanto compreendi o que o meu Pai queria dizer... Miserável povo que não consegue melhores lideres

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