terça-feira, 8 de abril de 2014

I'm a poor lonesome teacher, …



 Era eu miúdo de 13 ou 14 anos e o meu pai (que foi professor) ofereceu-me um livro construído com depoimentos de professores, pais, mesmo alunos, que me fez rebolar a rir: chamava-se, no infeliz título da tradução portuguesa, «Feira dos disparates» («La foire aux cancres» em língua francesa). Era escrito por outro professor do secundário, Jean Charles, e não tinha o caráter grave dos recentes livros de Maria Filomena Mónica—porque era propositadamente humorístico.
A estrutura não era muito diversa: tratava-se de juntar depoimentos, textos, episódios, apresentá-los e extrair algumas conclusões. Era um livrinho, na aparência e na essência, mais superficial, mas, feitas as contas, não menos informado.
Sou professor do ensino secundário público e não me reconheço, ou à minha escola, globalmente, em qualquer dos livros: Jean Charles, 1963, ou Maria Filomena Mónica, 2014. Reconheço, no entanto, que poderão suscitar reflexões interessantes, se não quisermos vislumbrar num, como nos outros, um sólido ponto de partida para generalizações.
A ironia do professor que, segundo Jean Charles, escreve numa informação a um pai—«o seu filho anda a faltar ao café para vir às aulas»—é ilustrativa de muitos comportamentos que conhecemos de ginjeira. Não podemos é deduzir do facto uma teoria sobre o estado de ensino público em França a um lustro do maio de 68.
São, naturalmente, livros para estimular a atenção, e são interessantes nessa justa medida; mas não vale a pena ficarmos demasiado empolgados com teorias. Não servem para isso.
As teorias pouco sustentadas pela análise abundam nestes tempos velozes; e são ferozmente debatidas por defensores e adversários. Ouvi um antropólogo, numa conversa amena de intervalo, num julgamento que envolvia pessoas amigas de ambos, descrever assim as duas partes, com uma ironia afetuosa: «é uma pena, mas têm aquele perfil litigante…»
Pareceu-me que Filomena Mónica foi a primeira a estabelecer os limites dos seus livros. Quanto a estimular a atenção, parece-me que terá conseguido alguns pontos: anda muita gente a lê-los. O que depois as pessoas pescam, é muito variável.
O programa Prós e contras é a superficialidade feita programa de televisão. Logo à partida, por ser programa de televisão. A primeira pessoa a afirmá-lo é a jornalista responsável—e apresentadora—Fátima Campos Ferreira. Mas ontem, num Prós e contras sobre educação especial, fiz uma boa pescaria. Não só vi o espelho do que se passa nas escolas que conheço, como me deu para filosofar sobre muitas das coisas que tenho vindo a dizer, designadamente neste blogue, sobre matéria de educação—e de inclusão.
Muitos teóricos à la minute não percebem que as soluções devem ser adaptadas ao teor dos problemas, e ao cenário que os envolve. Congeminam qualquer coisa que lhes parece catita, e vai de sair à rua a vender a panaceia universal. O duo Morris e Goscinny entreteve-se, durante anos, a encher de alcatrão e penas alguns desses teóricos, nas estórias do Lucky Luke.
O ministério da educação tem dessa gente, como o resto da sociedade. Infelizmente, não dispomos de alcatrão e penas.
O que motiva os pais, os profissionais de saúde e as instituições que se ocupam de miúdos com necessidades especiais, é uma causa que ferve de razão, e abunda de razões. Curiosamente, no programa de Fátima Campos Ferreira, até surgiram caminhos: foram apontadas soluções que parecem boas, no seguimento de diagnósticos corretos.
O que sabem os profissionais do ensino é que esses garotos das necessidades especiais são o exemplo mais gritante de uma situação que é geral na nossa sociedade, e a que nenhum ministério conhecido deu, até à data, qualquer relevo: é que se a paralisia cerebral salta à vista (embora nem sempre salte à vista a mobilização de recursos e a justiça social), as dificuldades na leitura, na escrita, nas contas, ou em qualquer domínio, em qualquer altura da escolaridade obrigatória, não deveria dar origem a umas parvoíces—não há outro nome: parvus, _a, _um—como o reforço da carga horária para todos, e quejandas; pondo a turma toda—sempre, toda—a atrapalhar um professor que gostaria de estar a trabalhar com um grupinho, ou só dois alunos, ou mesmo um, num tempo próprio, para resolver o problema de forma eficaz e duradoura.
Estou a falar da educação especial para todos, como estilo de ensino: «In school year 2008-2009, almost one third of all students in peruskoulu [ensino obrigatório finlandês] was enroled in one or two alternative forms of special education […]. More than one fifth of peruskoulu were in part-time special education that focuses on curing minor dysfunctions in speaking, reading, writing, or learning difficulties in mathematics or foreign languages.» (SAHLBERG, Pasi—Finnish Lessons. New York & London: Teachers College Press, Columbia University, 2010.)
Isto custa dinheiro? Bom, sim: como qualquer investimento. E depois, há alguma altura em que poupa dinheiro? Os finlandeses, por exemplo, acham que sim: deixa de haver retenções irreversíveis lá mais para diante; insucesso; exclusão. O ensino público finlandês é inclusivo. Maria Filomena Mónica fala de falta de inclusão, entre outras coisas, no dueto publicado.
É claro que é preciso saber fazer contas, que é isso mesmo que neste momento poucos percebem como é que se faz. A começar pela equipa de taumaturgos que nos governa.
Alcatrão e penas? Enfim, não quero ser disruptivo (adoro estes termos): alcatrão figurado; penas figuradas. Assim como numa estória em quadradinhos.
Retiro-me a cavalo trauteando I'm a poor lonesome teacher, and a long, long way from home…
António Mouzinho

P.S.: Falando em pesca em textos alheios, outra vénia a Maria Filomena Mónica: devo-lhe, já lá vão uns poucos de anos, a descoberta da acutilante Gertrude Himmelfarb, historiadora informada e lúcida que não brinca em serviço. Pronto: contas são contas.
AM

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