quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Sobre o valor do conhecimento

Recupero uma entrevista sobre o valor do conhecimento, realizada em 2010 por estudantes de Pedagogia a Carlos Fiolhais, físico teórico, professor da Universidade de Coimbra e divulgador de ciência, e Carlos de Jesus, classicista, doutorando da Universidade de Coimbra, tradutor e divulgador da cultura grega e latina.

P: Como comentam duas frases que nos parecem ter um sentido convergente: uma é de Albert Einstein: “Comparada com a realidade, a nossa ciência pode parecer primitiva e infantil, mas é a coisa mais preciosa que temos” e outra de Jacob Bronowski, “A ciência é um louvor ao que podemos conhecer apesar de sermos falíveis”.

CF: A nossa ciência é uma forma de cultura, uma conquista da humanidade. Pode, de facto, parecer primitiva e infantil mas é a ciência que conseguimos ter,  fomos nós que a construímos, é património humano, é nossa. Ela pode parecer primitiva porque está no seu início… se a sua história for comparada com a história da humanidade. A ciência experimental remonta ao tempo de Galileu, tem cerca de 400 anos, é uma jovem, que tem muito futuro à sua frente. Há imenso a fazer na ciência. Para dar a ideia do que falta fazer cito Newton, “Sinto-me como uma criança à beira do oceano, que vai recolhendo umas conchinhas à beira da praia, mas que é esmagada pela imensidade do oceano”.  A ciência é, mais do que um saber, uma promessa de saber, um compromisso com o futuro. Uma vez que a ciência está no seu início, nós sabemos muito pouco. Como disse o matemático David Hilbert: "nós temos de saber, nós saberemos”.

A propósito de Newton, sempre digo que as questões que colocamos sobre o mundo não são muito diferentes das que uma criança coloca ou pode colocar. A ciência é o exercício desinibido da curiosidade humana e um cientista é alguém que, sobrevivendo à escola, manteve a curiosidade infantil. A ciência já é a coisa mais preciosa que temos, apesar de estar ainda no seu início. A frase de  Einstein é um bom slogan publicitário. Einstein era bom a “vender" ciência. A  ciência é a coisa mais preciosa porque nos proporciona prazer intelectual, para além, claro, de a nossa vida ganhar conforto quando a nossa mente está de posse de conhecimento sobre o mundo. O conforto material começa por ser uma vida vivida de uma forma menos perigosa, uma vida mais segura. Devido à ciência, a esperança média de vida aumentou extraordinariamente. Hoje vivemos melhor do que ontem graças aos conhecimentos que a ciência nos facultou sobre sobre o mundo, estando nós incluidos no mundo.

Jacob Bronowski, um pensador notável, na sua obra A ascensão do homem  transmite-nos o essencial da ciência, isto é, a ideia de que os humanos podem errar, que afinal existem muitas coisas que julgamos que sabemos e que afinal não sabemos, mas que conseguem errar cada vez menos. O processo de produzir ciência consiste em superar os nossos erros. Karl Popper diz-nos que a verdade é algo sempre provisório, algo ao qual podemos fazer emendas e acrescentos. Temos de fazer constantes ajustes entre a nossa representação da realidade e a realidade. Por exemplo Einstein encontrou pequenos erros em Newton e emendou-os. Mas isso obviamente não tira valor a Newton. O erro é permanente e devemos aprender com ele. O cientista  fica feliz quando encontra um erro e o consegue corrigir. Tudo o que sabemos está continuamente a ser submetido a escrutínio. A identificação de erros, que deriva da crítica continuada, ajuda  a reformular a ciência, a ampliá-la.  Temos que pensar que, por exemplo, que a teoria  da relatividade de Einstein  não será eterna, podem existir erros no que ele disse que ainda não foram detectados mas um dia virão a ser. Mas, para finalizar, acrescento que, ao corrigir os erros, o método de construção da ciência permanece, tornando a ciência herdeira de si própria. Ora isso é uma coisa fantástica!

P: Carlos de Jesus, a pergunta vai no mesmo sentido, mas introduzimos a frase de Sólon “Envelheço sempre, muitas coisas aprendendo” (in O “equilíbrio dinâmico” de Sólon: Um breve ensaio. Sólon, séc. VI a.C., trad. De Delfim Leão, 18 West).

CJ: Sólon durante muito tempo, antes mesmo de Aristóteles, foi o político mais influente da civilização ateniense, o seu expoente máximo – e dele apenas conhecemos alguns textos. O pouco que conhecemos é através de citações, e de citações de citações… o que conhecemos dele são interpretações de autores que o citam. Nas humanidades, o saber é cumulativo mas também se reconstrói. Isso também acontece na ciência e, tal como na ciência, nas humanidades é preciso o grande trunfo da imaginação.

Veja-se que a interpretação de um texto é quase ilimitada… O que se diz hoje sobre um autor da Antiguidade pode não ser válido amanhã… pode surgir, noutros textos que desconhecemos ou que relemos, algo que nos coloca frente a um novo dado, que nos faz rever a verdade que tínhamos por verdadeira. O desconhecimento pode-nos fazer incorrer em erros, e, se queremos chegar à verdade, temos de estar sempre a pensar nisso. 

P: Uma ideia corrente na nossa sociedade é que a Ciência desumaniza, atribuindo-se-lhe um carácter técnico, frio, calculista, racionalista. Em contrapartida, afirma-se que as Humanidades humanizam, atribuindo-se-lhe um carácter mais afectivo, subjectivo. Esta ideia é baralhada, por exemplo, por George Steiner quando afirma no ensaio Linguagem e silêncio o seguinte: "A mais terrível comprovação de nosso tempo é que as humanidades não humanizam." Peço-vos um comentário.

CJ: Prefiro pensar que a humanização não é exclusivo das Humanidades, as ciências devem igualmente humanizar. Se as humanidades e as ciências não humanizarem algo vai mal. Se entendermos a humanização de um modo romântico, um humanista é alguém que estuda o homem e que, de alguma forma, dá um contributo para o bem-estar e para o crescimento do homem. Mas não é isto que a ciência também faz? A humanização não pode pois ser exclusivo das Humanidades.

CF: Temos de ter atenção o contexto das frases. A sua afirmação remete-nos para a dicotomia ciências técnicas (frias, duras) versus humanidades (quentes, moles). Devemos criticar essa dicotomia  impedindo que persista a velha questão que Charles Percy Snow teve a coragem de colocar de uma forma brutal numa conferência, em Inglaterra em 1969: “Cultos são apenas as pessoas que conhecem literatura? Como podem dizer que são cultos apenas por terem grandes conhecimentos sobre literatura se afinal não sabem a segunda Lei da Termodinâmica! Se não a sabem como podem dizer que são cultos?”.

Passados 50 anos, a questão das duas culturas continua para muita gente a fazer sentido, sobretudo para separar artistas e engenheiros, por exemplo. Mas a cultura é algo que é humano, independentemente de estarmos a falar de humanidades ou de ciências. O que nos une é mais do que nos distingue. O que se ensina na Faculdade de Ciências e Tecnologia e na Faculdade de Letras é igualmente cultura.

E podemos também chamar a arte para aqui. Os processos criativos de um artista e de um cientista são semelhantes, por exemplo o cubismo de Picasso e a relatividade de Einstein surgiram na mesma época, Picasso dizia: “pinto o que penso e não o que vejo” enquanto Einstein teorizava, sem ver, o que pensava ser a verdade. Mais: muitas vezes, a procura da verdade em ciência passa por critérios estéticos, que muitos dizem pertencer apenas ao domínio  arte, pois o artista também a harmonia, busca o belo. John Keats afirmava que "beauty is truth, truth beauty," - that is all / Ye know on earth, and all ye need to know”.

Einstein falava de Deus como a “beleza do mundo”. Para ele Deus era a harmonia, tudo aquilo que torna belo o mundo. É sempre a a beleza, a harmonia, mas também a verdade e a bondade que procuramos; são esses valores que fortalecem a humanidade que há em nós. Mas não é isto que o humanismo busca? 

P: Corroboram, então, a ideia do físico-poeta Rómulo de Carvalho/António Gedeão de que “ciências e humanidade é tudo a mesma coisa”?

CF: De facto, não é tudo a mesma coisa, o que Rómulo de Carvalho pretende é provocar-nos, induzindo a ideia de que as ciências e as humanidades estão mais próximas do que pensamos. Ele era professor de ciências e ao mesmo tempo poeta, exercia os dois ofícios, pelo que pôde dizer isso. Reprimiu durante anos a sua faceta de poeta, e só aos 50 anos conseguiu libertar o seu lado poético; ao fazê-lo, também conseguiu unir os dois mundos, mais antagónicos na época do que hoje.

P: O que vos motiva a investigar e como investigam?

CJ: O primeiro factor de estímulo foi talvez o facto de gostar de coisas estranhas… pouco comuns. A área de saber onde estudo não era massificada ou generalizada, poucas pessoas a escolhiam e isso atraiu-me. No meu caso, do meio de onde provenho, não era natural uma carreira em artes, o meu gosto pela literatura, curiosamente devo-o a um professor de matemática… O que, de facto, me motiva, é a possibilidade de oferecer a outras pessoas a descoberta.

Tenho-me interessado pela tradução de textos clássicos em grego e latim, permitindo a outros o seu conhecimento. É verdade que os textos devem ser lidos na língua original, mas é um crime não oferecer a oportunidade de os conhecer a quem não sabe essas línguas. Por isso, também faço teatro. O teatro tornou-se para mim a forma mais imediata e melhores de oferecer o conhecimento de textos clássicos. Para mim, o trabalho de preparação de um artigo sobre um achado arqueológico é um gosto pessoal, é gratificante falar sobre um texto que se descobriu, a utilidade desse achado pode ser menor, ou não, aqui começa a velha questão do utilitarismo ou utilidade do conhecimento… se pensarmos que teremos apenas… talvez 1% de todos os textos clássicos publicados (nem 10% dos textos clássicos estão traduzidos) existe ainda muito trabalho para fazer sobre todos os outros que não foram ainda traduzidos e que devem ser dados a conhecer.

Bom… como investigo? O método de investigação na minha área, ronda um problema e uma necessidade de o resolver. Deve investigar-se o que foi feito e dito sobre esse problema. Deve verificar-se se o “tal” erro existe e acrescentar-se sempre algo de novo, pois se apenas se diz o mesmo mais vale não o dizer. Mas mesmo que um texto já exista/esteja traduzido… não quer dizer que não precise de ser revisto.

CF: No liceu D. João III (actual escola José Falcão) tive bons professores, tive também o privilégio de ler bons livros de divulgação científica, como os de Rómulo de Carvalho, que mostravam a ciência de modo diferente da dos manuais escolares. A ciência era uma aventura continuada, feita por homens e mulheres normais. Estava por isso ao nosso alcance. Tive a intuição que a ciência com que tive contacto no liceu era uma pálida imagem da ciência que existia e que os professores iam buscar a algum lado. A ciência era melhor do que nos aparecia nas aulas. Penso que a escola mata a ciência quando não transmite uma verdadeira imagem da ciência. Por exemplo, quando se estuda a queda dos graves ou o plano inclinado, não se consegue, em geral, saber as verdadeiras motivações de Galileu… E porque não fazer na escola as experiências que ele fez, com as mesmas limitações? Só assim conseguiríamos descobrir as dificuldades por que ele passou… Galileu tinha meios limitados e mesmo assim conseguiu descobrir regularidades nas suas observações. Somos incapazes de perceber a ordem escondida se nos limitarmos a seguir os manuais. No liceu o que mais me fascinou não foram as roldanas ou os planos inclinados, mas a dissecação de rãs, peixes e de outros animais… sentia que isso era uma ciência mais viva!

Em relação ao “como se investiga”? Bem, primeiro é necessário ter um problema e estar obstinado  com a sua resolução, levar o problema para casa e não o largar. Há duas formas de fazer ciência: o investigador pode fazer como Einstein, que imaginava experiências (um elevador a cair, um raio de luz – “O que vejo se for tão rápido como um raio de luz?”) e, mentalmente, tentava encontrar soluções para elas… ou usa instrumentos para visualizar o que imagina. Eu uso o computador para fazer experiências, ele dá-me a possibilidade de criar mundos virtuais, controlar variáveis e depois ver quais estão de acordo com a realidade. A criação desses mundos simulados onde não é propicia a existência de vida, permite dizer que o mundo que conhecemos se adequa à vida … que não apenas vivemos no melhor dos mundos como no único dos mundos, pois pequenas alterações às leis de Newton e de Einstein tornariam o mundo impossível para nós. A ciência é a procura de uma ordem. O mundo é só um e as suas leis são universais. Isto é uma questão de profissão de fé. O mundo porta-se bem… o homem é que não tanto.

 P: É curioso perceber que a diferença não é substancial nem no que vos faz investigar nem na atitude com que o fazem… Uma vez que falaram no ensino, como o vêem no presente, no nosso país?

CF: O ensino da ciência requer comunicação, é necessário começar por mostrar como é, começar por ver o que é a ciência desde cedo (Jardim de Infância, 1.º ciclo). Há uma idade em que os infantes expressam de forma espontânea a sua curiosidade e podem experimentar, perguntar porquê… Esse tipo de ciência, que começa por ser uma brincadeira, é a forma por devem começar. O facto é que os educadores e professores do 1.º ciclo receiam a ciência e isso porque não a conhecem.

O ensino da ciência melhorou um pouco, mas não o que precisávamos. Em Portugal está tudo demasiado formatado, na escola pública tudo é muito rígido. A centralização imposta pelo ministério da Educação torna-se num problema, que resulta numa limitação para os professores. Eles  não podem ser melhores… não pode haver distinção de escolas. O ministério da Educação não é a solução, é o problema. Para encontrar solução temos de tratar o problema, por exemplo, temos de tratar a linguagem, que é pouco clara… e temos de tratar da filosofia subjacente. O aluno está hoje no centro da aprendizagem, desfocando o papel do professor. Os gregos pensavam na educação como um “pacote” completo: professor e aluno, devíamos continuar a fazer o mesmo. Quando num país se pensa que as novas tecnologias, os artefactos, são a solução então há pouco a fazer.

CJ: O ensino dos gregos era de uma grande proximidade entre o professor e o aluno e conferia um papel extremamente importante ao professor. E também eu digo que a literatura deve ser levada mais cedo às escolas, e não só os textos mais utilitários… as crianças não podem apaixonar-se por aquilo que não conhecem, deve ser-lhes proporcionado um vasto leque de textos sem a pretensão utilitarista. Grande parte do que somos é o que lemos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Quando num país se pensa que as novas tecnologias os artefactos são a solução há pouco a dizer.

Na verdade basta uma vista de olhos ao panorama português para verificar que há muito trabalho a fazer e não só em ciência.

É verdade, o mundo porta-se melhor. É mesmo o melhor dos mundos como dizia Leibniz; se não fora o melhor, já teria rebentado com tanta asneira humana. Mas ele aguenta. Logo, é o melhor.

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