sábado, 23 de novembro de 2013

Espelho meu, espelho meu… 2

Dizia eu em texto anterior que a mentalidade vigente é de avaliar tudo e todos, classificando pessoas, instituições, programas, iniciativas, sistemas, seja o que for. E isto para decretar o quê ou quem é superior e inferior, o quê ou quem é mais-qualquer-coisa ou menos-qualquer-coisa, o quê ou quem vale tudo ou nada vale, o quê ou quem é superior e inferior… Em suma, para decretar o quê ou quem deve ser glorificado e abatido.

O cenário em que essa mentalidade se instalou é um misto de positivismo exacerbado e de pós-modernismo laxista, o cenário perfeito para a emergência das mais diversas falácias. Explico.

1. A falácia do “para se saber”. Todos e tudo têm de estar, a todo o momento, e relativamente a todos os aspectos, sob escrutínio. Digamos que têm de estar sob um “olhar supra”, capaz de provar a sua localização inequívoca numa qualquer escala. Obtêm-se distribuições muito bem arrumadinhas em gráficos ou tabelas e… descansa-se: está tudo ali!
- “Mas, desculpe… porquê?” – pergunta um sujeito ligeiramente céptico.
- “Para se saber…” – O sujeito insiste: - “Mas, para se saber o quê? E para quê?”.
O ping-pong continua e, a páginas tantas, só pode ser arrumado com um “porque sim”.

2. A falácia da igualdade e, já agora, da justiça. A igualdade é um argumento que o sujeito ligeiramente céptico pode ter ouvido nesse ping-pong de perguntas e respostas, e volta a ele, mas o que ouve é:
- “Nada nem ninguém é mais ou superior e, nessa medida, tem de se subordinar às mesmas regras”.
E ouve mais: - “É uma questão de justiça!”
O sujeito adivinha o argumento que sustenta as duas afirmações: “porque sim”, naturalmente…

3. A falácia da confiança. As declarações acima não impedem que o sujeito ligeiramente céptico fique com a desagradável impressão de ter detectado uma “admissível e permanente” suspeita que recai sobre tudo e todos. Mas, suspeita por parte de quem? E porque é que alguém suspeita de tal maneira? E, porque é que a suspeição desencadeia algo que se aproxima, muito perigosamente, do vigiar?
Bom… passa à frente… porque o seu interlocutor disserta agora sobre a perfeição.

4. A falácia da perfeição. “A avaliação permite chegar à perfeição”, é outra afirmação que o sujeito ligeiramente céptico ouve. Argumenta:
- “A perfeição é algo que, na verdade, nunca se pode conhecer, é um fim que se deve querer alcançar, sim; porém, bem vistas as coisas, a sua natureza dita que não se possa alcançar, é um problema em aberto, é aquilo que faz correr, mas que se situa sempre a uma distância…”

5. A falácia da infalibilidade de critérios. O sujeito é interrompido:
- “Por isso há critérios de avaliação que garantem que o processo seja imparcial e se obtenham resultados confiáveis”.
- “Sim, mas a fundamentação dos critérios, a sua origem, alguns parecem decorrer da aleatoriedade…”
O interlocutor continua: - “Tem de haver indicadores. Sabe o que são indicadores? Os indicadores indicam. Indicam objectivamente…"

O sujeito percebe no diálogo aquela  perigosa atitude que se designa por “triunfo da vontade”: "Quer-se, faz-se! O querer é tudo”. Quem não quer, tem algo a temer ou a esconder, ou as ambas as coisas. Há-de haver alguma razão para se recusar a fazer... E disso teve a certeza quando ouviu a pergunta inevitável:

- “Não me diga que é daqueles que não quer se avaliado, nem quer avaliar!?”

Apanhado na sua própria teia, o sujeito ligeiramente céptico, retira-se apreensivo.

(Continua)

3 comentários:

Anónimo disse...

Cara Helena
E quem avalia os avaliadores? quem define os critérios? Quem define os indicadores?

É que o sistema avaliativo é externamente bonito e pomposo, cheio de palavras caras, de textos com tamanho 16, construções pós modernas e outras coisas assim ao jeito de quem fala de tudo e não diz nada.
Estas manias avaliativas servem para manterem os mesmos no cimo e remeter os outros lá para baixo, quem faz as avaliações em Portugal está feito com o poder e com a classe que o detêm, é mais uma arma de manter corruptos e incompetentes no comando da máquina burocrática a decidir para onde vão os dinheiros públicos..

Fernando Caldeira disse...

(...)
Triste por ver que não lhe ligavam nenhuma, o alcatraz soltou um doloroso gemido. Olívia lembrou-se de repente porque é que tinha subido ao passadiço e virou-se para o pobre ferido.
– Posso apanhá-lo capitão? – perguntou ela.
– Com certeza, se não tens medo que ele te morda! - disse o capitão.
– Mas os pássaros não mordem – disse Olívia.
– Ah! Ah! Ah! é que esse pássaro não é um pássaro vulgar.
– Então o que é? – perguntou Didi.
– Não sei – disse o capitão – o que prova claramente que não é um pássaro vulgar, porque esses conheço-os eu: temos a pega, a bugigansa, o escorvém, o paneiro de xadrêz, a moedura, o gaviãozito, o cardume, a abetarda e o cantropo, o verdete das praias, o marcha-a-olho e o sempre-em-concha; além destes, podemos citar a gaivota e a galinha vulgar, que eles chamam em latim cocota deconans.
– Bolas!... o capitão sabe imenso! – murmurou Didi.
– Foi para isso que aprendi – disse o capitão.
(...)
Boris Vian, O Outono em Pequim. Tradução de Luísa Neto Jorge. Publicações D. Quixote (1989).

– Porque é que eu tenho de saber isso? – Foi uma pergunta que, como professor, ouvi centenas ou milhares de vezes. Sempre que isso acontecia lembrava-me desta passagem, que conhecia desde os meus 18 ou 19 anos, e apetecia invariavelmente responder: – Para saber!...

O conhecimento pode realmente ser um fim em si. Já a avaliação nunca o é. Mas torna-se obrigatória sempre que alguém pretende ou exige uma classificação ou a certificação de uma aptidão...

A questão dos critérios de avaliação, ou melhor, da sua objectividade, é mais complexa. Entre uma classificação nula (não sabe nada do assunto) e máxima (sabe tudo sobre o assunto), as gradações intermédias não podem ser aleatórios mas também não há forma de os tornar objectivos, pelo que seria preferível aceitar um determinado grau de subjectividade...

perhaps disse...

Concordo.

DUZENTOS ANOS DE AMOR

Um dia de manhã, cheguei à porta da casa da Senhora de Rênal. Temeroso e de alma semimorta, deparei com seu rosto angelical. O seu modo...