sábado, 4 de maio de 2013

A NATUREZA DE UM CANAL À NANOESCALA

Crónica publicada na imprensa.

Tem alguma régua à mão? Se tiver, olhe por favor para a divisão mais pequena que corresponde a um milímetro (se não tiver, recorra à imaginação!).

Os objectos biológicos que iremos abordar a seguir têm dimensões um milhão de vezes inferiores ao milímetro. São, no seu justo tamanho, de uma importância decisiva para que vivamos com saúde.

Assim, estamos agora melhor preparados para mergulhar pelo milímetro adentro até uma parte do mundo celular. (Os liliputianos seriam gigantes nesta escala manométrica a que funcionam as “peças” da vida).

Todas as células são delimitadas por uma membrana de natureza maioritariamente lipídica (em rigor, fosfolipídica), matéria gordurosa com não mais de 10 nanómetros de espessura (1 nanómetro é a milésima milionésima parte do metro). Esta membrana, chamada plasmática, separa o exterior do interior da célula criando uma interface selectiva. Isto é, garante pelas suas propriedades físico-químicas e bioquímicas, que só a atravessem determinadas substâncias e não outras. Por exemplo, assim como a água (molécula polar) não se mistura com o azeite (gordura – compostos apolares), também a água não permeia facilmente pela membrana gordurosa das células. Para que isso aconteça é necessária a presença de proteínas específicas, que são autênticas portas de entrada e de saída para, e do, espaço intracelular.

Não cabe aqui, no espaço desta crónica, detalhar todos os diversos e muitos tipos de proteínas que existem na membrana plasmática, e que têm por função facilitar e regular a passagem de moléculas polares e iões, entre outras funções. Diga-se, contudo, que estas pequenas máquinas bioquímicas, com dimensões da ordem dos 10 nm, são essenciais para o bom funcionamento celular. Ou seja, o mau funcionamento, a sua deficiente presença ou mesmo inexistência, pode ser a origem biomolecular de uma dada doença. Daqui que seja muito importante conhecer em detalhe a composição, estrutura e funcionamento deste tipo de proteínas membranares (assim como de outras que existem na célula, bem entendido seja!). Até porque é possível (já há algumas décadas) desenhar e desenvolver fármacos a elas dirigidas para tratar doenças como sejam, a epilepsia, a hipertensão, arritmias cardíacas, entre outras. A propósito, 50% dos fármacos comerciais hoje utilizados (terapêuticos ou não) são dirigidos a esse tipo de canais proteicos.

De entre as proteínas que são canais iónicos transmembranares (ou seja que atravessam a membrana de um lado ao outro) encontram-se os canais de potássio (K+). Como o próprio nome o diz, são canais proteicos que regulam o trânsito do ião K+ entre o interior e o exterior das células. Existem na membrana de todas as células eucarióticas (como as nossas) e procarióticas (como as das bactérias) Alguns funcionam de modo a bombear iões de K+ para dentro da célula e por isso também são chamados por bombas de, e neste caso, K+ (leia-se ião potássio). À custa de energia, garantem que a concentração de K+ no interior celular se mantenha muito maior do que aquela que existe no exterior. Isto é fundamental para que determinadas funções celulares ocorram. Uma delas é, por exemplo, a transmissão do impulso nervoso. Se as bombas de potássio que existem nas membranas dos neurónios não funcionarem, por exemplo por estarem bloqueadas por algum veneno, não é possível que o impulso nervoso se propague e, em caso maior, pode até ocorrer paralisia cerebral e eventualmente a morte do organismo.

A primeira bomba de potássio foi descrita em 1957 e valeu o Nobel da Química de 1997 a Jens Christian Skou. Desde então, outras bombas e canais têm sido descritos mas o estudo destas estruturas minúsculas é tecnicamente tão difícil que os novos contributos continuam a ser do interesse das mais prestigiadas revistas científicas. Já em 2003, Roderick MacKinnon recebeu também o Nobel, desta vez por desvendar a primeira estrutura dum canal de potássio. 

Agora uma equipa composta por 3 investigadores do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) da Universidade do Porto, liderada por João Morais Cabral, publicou na prestigiada revista Nature (ver artigo aqui) a forma como funciona uma determinada bomba de potássio: o transportador KtrAB da bactéria Bacillus subtilis.

Bacillus subtilis

Para o coordenador da equipa, João Morais Cabral, perceber como “funciona uma máquina de 10 nm é o mais empolgante destes trabalhos” para além de que “este tipo de investigação é essencial para o desenvolvimento de aplicações práticas”. O Bacillus subtilis, que está presente em grande quantidade no nosso intestino, foi o organismo modelo deste estudo, e apresenta um tipo de transportadores de potássio semelhantes a alguns transportadores existentes em plantas e fungos, o que lhe valeu o interesse da equipa de investigadores do IBMC.

Em relação à dificuldade técnica que envolveu esta investigação, Ricardo Pires, primeiro autor do artigo publicado, afirma no comunicado do IBMC, que das “mais de 70 mil estruturas que existem nas bases de dados, apenas 2% são de proteínas membranares”. Se tivermos em conta que nos organismos 20-30% das proteínas são membranares, poderemos ter uma ideia da dificuldade de as estudar. Na realidade, “as proteínas que estão inseridas nas membranas possuem características que as tornam mais difíceis de caracterizar e de entender como funcionam”, adianta o investigador no referido comunicado.

Ainda segundo o texto divulgado pelo IBMC, no modelo agora publicado na Nature (ver imagem em baixo), as partes que condicionam o funcionamento do transportador KtrAB são duas: uma coroa, que está mergulhada na membrana que rodeia a bactéria e que constitui o poro por onde passam os iões de potássio; e um anel, na face interna da membrana celular. O controlo, ou seja, a abertura e fecho do poro, é efectuado por este anel, que muda de configuração de acordo com a presença de outras moléculas (ATP ou ADP). Desta forma, o anel permite (na presença de ATP) ou bloqueia (na presença de ADP) a entrada dos iões potássio que passam pelo poro na coroa. De salientar, contudo, que a alteração da configuração deste “anel-porteiro” não implica gastos energéticos para esta bactéria.


Remate-se, para finalizar, que este modelo de funcionamento é específico deste transportador KtrAB do Bacillus subtilis e que outros canais e bombas de potássio existentes nas nossas células podem apresentar estruturas e modos de funcionamento e regulação distintos. São contudo variações sobre um mesmo tema, pelo que este trabalho de elevada dificuldade técnica, acrescenta conhecimento com pormenor nanométrico e é um grande contributo para o avanço da nanobiotecnologia e da nanomedicina.

António Piedade

3 comentários:

José Batista disse...

..."a água (molécula polar) (...) não permeia facilmente pela membrana (...) das células. Para que isso aconteça é necessária a presença de proteínas específicas"...

Às proteínas membranares que servem de poros para a passagem da água (por difusão simples) vi em certos "papers" chamar "aquaporinas" (significando "poros de água", suponho).
Nos diversos livros do ensino secundário, a difusão da água através da bicamada lipídica ainda é comummente referida, como classicamente, embora nunca explicada (hoje como antes).

Aquele termo - "aquaporinas" - tem aplicação comum entre os bioquímicos?
Como os programas do ensino secundário não referem tal termo, o mesmo poderá ser geralmente aplicado para conhecimento e uso dos alunos?

Muito obrigado.

António Piedade disse...

Sim. As proteínas transmembranares chamadas aquaporinas foram descobertas pela equipa de Peter Agre, prémio Nobel da Química de 2003 (http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/chemistry/laureates/2003/press.html). Foram descobertas pelo menos cinco tipos de aquaporinas. E mais recenetemente várias doenças humanas relacionadas com quaporinas não funcionais (ver aqui: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0014579303010834)
Há muita matéria incompleta, incorrecta, nos manuais escolares. E ainda por cima hoje em dia são reeditados todos os anos, pelo que o argumento da sua actualização e sintonia com o avanço do conhecimento científico já não poder ser usado como desculpa.
Cumprimentos.

José Batista disse...

Caríssimo Doutor António Piedade

Não pode imaginar como lhe agradeço pela sua resposta tão pronta e tão elucidativa.

Deixo-lhe um grande abraço.

Obrigadíssimo.



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