sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Uma nota sobre a ciência

Devemos ter plena noção de que não há só ciências empíricas como a física ou a biologia. Também há ciências puramente conceptuais, como a matemática. Além disso, devemos ter consciência que sem a segunda as primeiras não seriam mais do que colecção de selos: sem a matemática a física ou a química não saem das meras descrições pouco informativas do que acontece. O que há de informativo nas ciências empíricas são as teorias muitíssimo explicativas, e estas baseiam-se na matemática.

Há um pressuposto empirista impensado de que ou um estudo é empírico ou não é sobre a realidade. Devemos ter uma atitude científica e suspender o juízo: não sei se a matemática é sobre a realidade ou se é só uma manipulação estipulativa de símbolos, como é comum aceitar sem reflexão. Se for esta última coisa, é bizarro pensar que sem ela as ciências empíricas não possam existir. Por isso o melhor é deitar às urtigas o empirismo impensado.  E se formos realmente lúcidos e corajosos, defendemos até o impensável para o dogma empirista: que podemos saber muito sobre a realidade empírica sem fazer uma só observação e sem ter uma só experiência. E esse conhecimento é exactamente o que nos dá a matemática.

A cientificidade de uma dada prática cognitiva não reside, nem de perto nem de longe, na experiência e na observação. Pois nesse caso a agricultura empírica seria científica e isso é precisamente o que não é. As ciência empíricas usam certamente a observação e a experiência, mas não é isso que as distingue do que não é ciência. O que as distingue é a observação e experimentação sistemática, para testar teorias matematizadas complexas e de grande poder explicativo. Sem esta segunda parte não há ciências como a física ou a química.

O pior é que a observação e a experiência não são condições necessárias da cientificidade. São condições necessárias, de facto, mas apenas das ciências... empíricas. O que é pouco mais do que óbvio. A questão é que a matemática tem tanta ou mais cientificidade do que a física ou a química, e no entanto não usa a observação nem a experimentação.

Historicamente, tudo se explica. E tem base na ignorância. A ignorância de quem hoje aceita histórias da carochinha sobre as origens da ciência moderna. Nessa história da carochinha, havia uns idiotas que queriam estudar coisas como o movimento dos planetas sem olhar para eles e queriam saber a origem do planeta Terra sem sair do quarto. Isto é tudo mentira. Sempre houve ciência empírica desde que se começou a fazer ciência, na Grécia da antiguidade. O que não havia -- surpresa, surpresa -- era algo como a ideia de que a matemática era aplicável à natureza empírica. A ideia parecia maluca porque 1) a nossa experiência empírica revela-nos um mundo em constante mutação, mas a matemática fala-nos de uma permanência aparentemente incompatível com a mutação do mundo empírico e 2) os antigos não tinham coisas como relógios e outros instrumentos de precisão que lhes permitissem começar a ver que a aparente irregularidade da natureza escondia regularidades matemáticas surpreendentes. A propósito, esta última descoberta antecede em muito a revolução científica moderna, sendo algo regularmente estudado pelos cientistas medievais. As experiências com planos inclinados eram bem conhecidas dos cientistas medievais.

O que realmente aconteceu na Europa por volta da enganadoramente chamada "revolução científica" foi uma revolta de muitos intelectuais (de muitas áreas, e não apenas da ciência: aconteceu precisamente o mesmo na filosofia) contra o mau ensino das escolas e universidades. O ensino era mau porque 1) baseava-se em caricaturas do pensamento científico, filosófico e matemático do passado e não num conhecimento real do que se tinha investigado nessas áreas, 2) aos alunos não se ensinava a fazer ciência, matemática ou filosofia, mas apenas a repeti-la diligentemente (ainda por cima, repetindo caricaturas) e 3) o ensino era rigidamente uniforme, o que impedia a inovação escolar e académica.

Quando hoje se baseia a concepção de ciência que temos num conhecimento caricatural do passado, não se ensina a fazer ciência mas apenas a repetir as mesmas falsidades históricas sobre a ciência que aprendemos quando éramos alunos da licenciatura e se defende a uniformidade epistémica devidamente certificada e abalizada pelo estado, estamos precisamente a tomar o partido da velha guarda que procurava pôr travão às perigosas ideias novas.

31 comentários:

João disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João disse...

Isto não é bem assim. Conforme a estranheza da questão mais forte tem de ser a prova.

E a prova empirica sistemática, reprodutivel e verificavel independentemente é a autoridade maior na ciencia.

Ou seja, não é preciso testar a mesma formula antes de a usar, uma e outra vez. Mas se se descobre que a teoria diz algo que não se sabia que ela dizia, mesmo que seja por via matemática, vai ter de ser provado empiricamente.

Mas não olhando e dizendo que se viu "em passnant"

Um bom exemplo do processo foi o que se viu recentemente com o Bosão de Higgs, os neutrinos FTL , ou os tumores nos ratos que comem milho transgenico. A evidencia empirica é a ultima palavra, mas tem de estar de acordo com determinados critérios para derrubar o que já se sabe - e que teve de passar pelo mesmo tipo de processo cientifico.

Em suma, não é plausivel deitar a maioria dos resultados fora para valorizar uma minoria. E por isso, se repete, refina, analisa o que há de evidencia empirica.

A metodologia é fortemente empirica e sistematica. Necessáriamente para qualquer coisa que seja um processo ou entidade nova ou indiretamente sobre uma entidade ou processo novo.

Porque?

Porque os erros que hajam de base numa teoria, sao frequentemente ampliados pela matematica ou o raciocinio.

Tudo o que se sabe, é usado para avaliar a força e a exigencia da prova requerida em cada caso. O que é banal requer prova banal, o que pretende revolucionar a ciencia tem mesmo de revolucionar a ciencia.

O que já foi estabelecido não requer grande prova nova. Apenas que anedoticamente se verifique que o universo não mudou. Por isso podemos continuar a usar as mesmas formulas sem as testar antes.

joão viegas disse...

Se te queres aventurar pela historia, talvez precises de saber que as universidades criaram-se na idade média como instituições independentes e livres do poder politico.

Por outro lado, a propria noção de Estado surge apenas no século XVI...

Mas tu não queres saber disso para nada, pois não ?

Queres apenas dar show e seres a caricatura daquilo que procuras criticar...

Boas

Desidério Murcho disse...

O ensino dá os primeiros passos no sentido da estatização com a fundação das escolas medievais que deram origem às universidades: as studia generalia. Estas eram já uma resposta às necessidades de educar monges e clérigos para lá do ensino elementar que recebiam nas escolas monásticas e nas catedrais. Quando a primeira instituição semelhante a uma universidade moderna é fundada em Salerno, na Itália, no séc. IX, aproximamo-nos ainda mais da estatização do ensino, pois tratava-se exclusivamente de uma escola de medicina, cuja profissão será mais tarde fortemente regulamentada pelo estado. A fundação da primeira universidade europeia propriamente dita, dedicada a várias áreas, ocorreu em Bolonha, no séc. XI. As universidades de Paris e Oxford, fundadas no séc. XII, apesar de continuarem a infeliz caminhada no sentido da estatização, eram ainda fundamentalmente instituições independentes: uma espécie de cooperativas de professores e estudantes, que tinham a liberdade de fazer o que julgavam adequado, sem dar satisfações ao estado. Já a Universidade de Nápoles, assim como a de Toulouse, ambas fundadas no séc. XIII, tornam explícito o problema que hoje vivemos: a primeira foi fundada pelo imperador Frederico Segundo, respondendo por isso à autoridade imperial, e a segunda foi fundada por decreto papal. A apropriação das universidades e do ensino por parte do poder político e eclesiástico inaugura uma parte importante dos problemas e confusões que hoje vivemos; e ainda que seja certamente um exagero afirmar que nada de bom daí adveio, não estaremos longe da verdade se afirmarmos que grande parte dos males que hoje vivemos no ensino resultaram desta apropriação.

A estatização do ensino teve o efeito devastador de normalizar todos os aspectos do ensino, incluindo os métodos, as bibliografias, os desenhos curriculares e as avaliações. Como seria de esperar, a normalização do ensino dificulta a inovação e tende a produzir professores iguais aos professores anteriores, que por sua vez formam professores iguais a si mesmos. A inovação genuína e a saudável experimentação é hoje quase impossível no ensino e basta pensar como seria hoje a tecnologia dos computadores, por exemplo, caso esta fosse inteiramente normalizada e centralizada pelo estado, para se ter uma ideia de como poderíamos ter inovado em educação se o estado centralizador não nos castrasse.

Como se isso não bastasse, a estatização do ensino teve ainda o efeito de obrigar as pessoas a estudar o que não querem e de não lhes permitir estudar o que querem. Os jovens são obrigados a estudar nas escolas e universidades, mas a uniformização não lhes permite escolher o que realmente querem. Os estudantes são obrigados a estudar o que não lhes interessa e nunca lhes interessará, acabando por ter um profundo desprezo pelo próprio ensino no seu todo. São horas infindáveis de tédio e sacrifício por parte deles, e recursos financeiros desperdiçados, quase sempre públicos. Consideramos hoje normal que um punhado de pessoas que detêm o poder político, e ainda que não tenham qualquer concepção minimamente articulada, e ainda menos defensável, do que deve ser uma escola ou uma universidade, tenham o direito de decidir quem estuda o quê e como e onde, dando origem ao imenso desperdício e tédio infindável do ensino atual, quando a simples liberdade grega original de cada qual fazer a sua escola e cursar o que bem quiser daria uma resposta muito mais eficaz às necessidades educativas dos jovens. Talvez no futuro as pessoas olhem para o ensino que temos hoje e fiquem perplexas com a nossa confiança cega na estatização e cen-tralização, mesmo depois de termos aprendido pela experiência que ambas geram ineficiências, desperdício, normalização e ausência de inovação em quase todas as áreas.

Anónimo disse...

Caro Desidério

Depois do comentário de joão viegas, de tão desligado e não relacionado com o seu post, tinha decidido mudar de postura em relação a este blog.

Tinha decidido passar a ler os posts e não ver comentários (por, na minha opinião, comentários construtivos / total de comentários ser aqui um rácio absolutamente miserável).

Por sorte, vi esta sua resposta. Muitos parabéns pela sua atitude em responder a alhos totalmente podres com bugalhos construtivos. Não é para todos!

Devido a essa postura fantástica, vou continuar a ler os comentários fazendo uma lista livre e individual sobre os que são de ler (estilo comando do TV).

E vou comprar (e ler!) os seus livros.

Obrigado

joão viegas disse...

Bom, não sabes do que falas, como sempre. As universidades sempre foram ciosas de salvaguardar a sua liberdade académica, e alias continuam a fazê-lo hoje o que explica, em grande parte, porque é que a liberdade de ensino é geralmente reconhecida nos paises democraticos (na propria constituição, vê tu...).

Mas ainda que o que tu dizes fosse exacto (so o é muito parcialmente), isso apenas mostraria que a "estatização das universidades" coincide perfeitamente, cronologicamente falando, com a tal revolução cientifica de que falas, o que deita completamente por terra o teu raciocinio...

Es professor de logica, dizes tu ?

Bom, estou a ser mauzinho, porque me irristaste.

O que tu escreves tem por vezes algum nexo. Mas quando falas do Estado e de organização politica, não dizes coisa com coisa...

Devias dar uma imagem mais rigorosa da filosofia, que ela merece...

Boas

Desidério Murcho disse...

Muito obrigado, anónimo!

João disse...

(cont)

"A questão é que a matemática tem tanta ou mais cientificidade do que a física ou a química, e no entanto não usa a observação nem a experimentação."

Sim, concordo que tem. Mas a matemática é empirica. Não surge do nada das nossas mentes, surge como abstração do mundo empirico.

E o uso dos seus axiomas em formulação de sistemas formais variados é posto à prova empiricamente. Conforme serve ou não.

Descobrem-se regras que depois podem ser provadas, com algumas limitações dentro desses sistemas. Tudo bem, mas as coisas começam com empirismo, e com indução das noções abstractas.

Isso é cada vez mais aceite e faz todo o sentido.

A matemática é de origem empirica e funciona como a ciencia.

Euclides pensava que não havia outra geometria. No entanto mudar um dos axiomas mostrou que se podia explicar muito mais coisas.

Newton, ao contrário, deparou-se com uma falha na matematica para explicar o movimento. Criou o calculo diferencial para explicar o que precisava.

De certo modo, muito na matematica actual é experimentar com axiomas e ver onde nos leva.

E na antiga, fazia-se o mesmo, mas era menos obvio para quem o fazia. Porque havia uma confusão entre a matematica ser a realidade, coisa que hoje se compreende que é mapa.

O empirismo é necessário a todo o conhecimento cientifico. Inclusivé à lógica. Nem noção de identidade tinhamos se não houvesse indução. Porque a identidade, a = a é uma abstração. O universo esta-se nas tintas para isso, não há coisas que sejam algo. Estão sempre em mudança e não se auto-representam. A identidade é logo dos primeiros conceitos empiricos criados.

E existem muito mais coisas para contar. Mas depois vão dizer que faço spam e sou infantil, e que sou ignorante.

ISto é só para servir de teaser. Não é um post, não é um livro.

É um comentário escrito entre pressas que espero que alguemm compreenda e leve a estudar mais.

Anónimo disse...

Galois

Um pensamento lateral.

Neste ninho, a única forma de termos hipóteses de participar em discussões pelos argumentos apresentados é manter o anonimato.

Sem anonimato, tenho a maior das certezas que isto passaria a ser um conjunto de clubes restritos às turras. Pelo que, desde início, o anonimato me pareceu boa ideia.

No entanto, confesso que, a partir de agora, vou saltar comentários que não me interessam ao estilo do comando da TV. Sendo assim, nomes de código são muito úteis e uma amabilidade para quem queira saltar os nossos próprios comentários. Poupa muito tempo saltar para os comentários interessantes saltando por cima do lixo. Mas é preciso reconhecer o lixo.

A partir deste momento serei o Galois (dessa forma, quem me considere lixo poderá logo passar por cima).

Galois

joão viegas disse...

Caro anonimo,

Por quem é ! Faça favor de não ler os meus comentarios que procuram apenas, de maneira arrogante e confusa, obter que o Santo Desidério tenha ocasiões para dar provas da sua excelência e supreender-nos com a equanimidade da sua postura no debate de ideias, confirmando sempre impecavelmente os 7 principios da boa discussão que ele desvendou no outro dia perante o universo(*) atonito !

Boas

(*) = ou antes do Universo, estado é que se escreve sem maiuscula, estou-me sempre a esquecer...

João disse...

Galois:

Talvez estejas confuso com a alegação da matemática ser empirica não é?

Nem queres ler. Que loucura. Só podia ser o João, que acha que ha damos em terceiros de vender a homeopatia com o mesmo aval de quem vende neurologia.

Olha, sugiro-te que comeces por aqui: "conversas com um matemático" Gregory J. Chaitin.

Rui Gonçalves disse...

Galois ... Golias

Será que se prevê algum confronto?

David versus Golias (...)

Anónimo disse...

Galois

O post aborda vários pontos. A meu ver, a questão da «teoria científica» (e teoria matemática em oposição às outras teorias científicas) pode ser alvo de um debate interessante.

Quando diz
«O que as distingue é a observação e experimentação sistemática, para testar teorias matematizadas complexas e de grande poder explicativo.»

está a falar da ideia usual relacionada com «teoria científica». Uma teoria na Física ou na Biologia pode mudar totalmente se se descobrir que não serve para explicar certos fenómenos da realidade que se tinham como alvo. Uma teoria pode ser generalizada se conseguirmos fazer uma extensão da mesma que explique ainda mais fenómenos do que a anterior teoria mais particular, etc (Feynman publicou um excelente livro de divulgação científica dedicado ao tema). Em ciências empíricas, como lhes chama, é usual a Natureza servir de suprema «avaliadora» para uma teoria, na medida em que os cientistas a tinham como alvo para os seus modelos teóricos explicativos. Como aqui saberão, embora funcione como Santo Graal (a busca utópica do cientista), não costuma haver «A» teoria. O que o tempo costuma dar à humanidade são teorias cada vez mais refinadas e mais capazes de explicar e prever fenómenos. É por isso que devemos sempre ter algum receio da «verdade científica»...

Um assunto muito interessante para pensar é o conceito de teoria matemática (existem inúmeras; teoria de números, teoria de grupos, teoria de jogos...). E serve este meu comentário para chamar a atenção de que a forma como os matemáticos usam a palavra teoria não é igual à de especialistas de outras ciências naturais. Normalmente chamam teoria matemática a um conjunto de conhecimentos matemáticos (com base axiomática ou não, teoremas, etc), abrangente, razoavelmente independente e auto-suficiente em relação a outras teorias matemáticas e cujo paralelo para «experiências» se encontra nos modelos aos quais se aplica. Uma das diferenças da matemática para outras ciências está nestes modelos: podem ter uma base na natureza, mas também podem ser totalmente inventados. Uma dada teoria matemática pode ser totalmente consistente podendo ser aplicada a modelos não existentes na natureza tal como a conhecemos. Os matemáticos inventam a sua própria natureza. E isso é fascinante. Além disso, uma teoria matemática pode dar origem ao seu simbolismo e formalismo próprios. Isso também é muito belo, uma vez que é um caso em que um tópico científico cria uma linguagem própria, mais útil e eficaz, para poder avançar melhor. Isso é muito característico das teorias matemáticas e da matemática em geral.

Desidério Murcho disse...

Não me parece que exista uma diferença marcada entre as teorias empíricas e as matemáticas. Há diferenças, certamente, e ganhei em ler o seu comentário porque nunca tinha pensado nisso. Mas agora que penso nisso não vejo mais do que a diferença que resulta precisamente de as teorias da física serem empíricas e as da matemática não. O aspecto que refere -- haver várias teorias diferentes que não se excluem nem são extensões umas das outras -- é algo semelhante a diferentes teorias empíricas, como teorias da física, da química e da biologia.

Posso estar a ver mal, e preciso pensar melhor nisso. A natureza das ciências formais, como a matemática ou a lógica, está longe de se reduzir à opinião comum dos cientistas empíricos, segundo a qual se trata meramente de uma linguagem inventada, com a qual fazemos seja o que nos apetecer.

Uma ideia antiga que vale a pena levar a sério é o que pensava Russell e Frege. Ambos pensavam que a lógica tinha por objecto a estrutura mais geral da realidade -- muito mais geral do que o género de estruturas que são objecto da física, que são mais gerais do que as que encontramos na química, que são mais gerais do que as que encontramos na biologia.

Esta ideia não só é compatível como pode iluminar o que acontece quando nos deparamos com teorias matemáticas, por exemplo, que não descrevem as coisas como são. A geometria euclidiana, por exemplo, não descreve (a acreditar na física contemporânea) a realidade tal como é; para isso precisamos de uma geometria não-euclidiana. Significa isto que a geometria euclidiana não é sobre uma estrutura geral da realidade? Não. Continua a sê-lo. Acontece apenas que não é essa estrutura que está efectivada. Mas é tão real quanto a que está efectivada. Na linguagem lírica e enganadora da lógica modal contemporânea, descreve um mundo possível que não está efectivado ou não é actual.

Mas isto são especulações, que talvez sejam úteis para alguém.

Anónimo disse...

Sim, também não me parece que exista uma diferença marcadíssima. Apenas quis observar que um matemático moderno que fala da geometria euclidiana ou não euclidiana (para usar o seu exemplo) não tem em mente sobre o tema uma preocupação exactamente da mesma natureza do que um físico quando fala da teoria da relatividade. E a diferença está exactamente no tipo de modelo. Os matemáticos sabem que ambas as geometrias são consistentes uma vez que para cada têm um modelo não contraditório. E é aqui a diferença; o modelo para um matemático também pode ser inventado. Um biólogo ou um físico usam habitualmente (coloquei esta palavra para não arriscar, mas acho que pode ser «sempre») modelos da natureza. Essa arte de inventar modelos que mostrem a consistência das axiomáticas das suas teorias, juntamente com a arte de inventar simbolismos próprios é das coisas mais bonitas (e para mim específicas) da matemática. E é do campo das ideias; quando se percebe o quão imaginativo é o processo, percebe-se a beleza da coisa.

Anónimo disse...

Galois

Esqueci de colocar o meu código «Galois».

E por vezes, o modelo inventado pode surgir antes de um modelo natural onde se aplica uma teoria matemática.

A geometria não-euclidiana tem aplicações. Mas um matemático pode conceber tudo e verificar a consistência da axiomática muito antes da aplicação (se é que há aplicação ao virar da esquina). Aliás, para muitos a utilidade e a aplicação é secundária (e a meu ver bem, uma vez que não tenho uma visão excessivamente preocupada sobre o par ciência/utilidade).

João disse...

Russel desistiu de fundar a matemática com a logica, que eu saiba desde que conheceu o trabalho de Godel.

TAmbém penso que Russel, brilhante como era e aberto a mudar de ideias, hoje não apostaria nos seus universais - penso que a maioria dos fas de Russel, como eu, também lhe torcem o nariz.

Coisa aliás, que está a um passo do idealismo platonico que no meu ver leva a uma confusão mapa e território.

E essa confusão é a origem da incompreensão do empirismo na matematica.

Parece que a matematica e a logica são a realidade e a fisica é apenas a coisa practica que dali sai.

Por tudo o que sei, esse é o significado do teorema de godel.

É que a matematica e a logica são mapa, não território.

A realidade, o territorio, é muito mais complexo que as nossas mais sofisticadas tentativas de o compreender.

E isso é lindo.

João disse...

(cont)

E sim. A matemática está sugeita à avaliação das evidencias pelos pares.

NOs dias que correm, podemos ver as discussões dos matemáticos ao vivo. Não percebo metade.

Mas percebo que eles discutem se determinado pormenores numa prova é válido ou não. Se a prova é prova, etc.

PArece uma ciencia qualquer.

Apenas é muito, mas muito, mais formal. E muito mais rigorosa.

Porque é apenas o primeiro passo da tentativa de fazer a ponte com a realidade.

O pior são os ultimos passos, têm muito mais onde errar e sobretudo se assentam já em erros esses são amplificados.

João disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João disse...

Vou deixar de vos chatear, uma vez que o tema que me trouxe aqui morreu.

Deixo apenas um post sobre este tema e se alguem quiser pode comentar lá.

http://cronicadaciencia.blogspot.pt/2012/12/a-matematica-e-empirica-como-toda.html

E quem quiser ter uma ideia de como os matematicos mudam axiomas e criam sistemas com um estalar de dedos, e com eles fazem experiencias, proponho:

Godel, Escher e Bach, de Douglas Hofstadter.

Não por ser um livro tecnico de elevado nivel. Mas por entreter enquanto faz precisamente isso que descrevi, e mostrando ligações empiricas e artisticas inesperadas.

Este foi o livro que quase me convenceu que a consciencia era um sistema matematico, sobre um sistema matematico, sobre um sistema matematico, sobre um sistema matematico... Até que depois percebi que o livro era precisamente sobre provavelmente isso não chegar. Algures há o passo emergente. E o que é emergente é que a matematica não explica.

Divirtam-se

Desidério Murcho disse...

A própria ideia de consistência não é uma vaca sagrada. As lógicas paraconsistentes ensinam-nos a lidar com a inconsistência, sem tornar o sistema trivial.

Toda a ciência criativa é profundamente imaginativa. Como a filosofia. O que nós temos hoje em dia, graças às escolas (cada vez mais parecidas com o pior da escola medieval) é uma confusão entre a matemática, as ciências empíricas e a filosofia tal como são feitas no seu melhor, e as caricaturas transmitidas. Estas caricaturas transmitidas depois chegam à universidade, com milhares de académicos a fazer trabalhos sem pinga de imaginação. Quando vejo este tipo de trabalhos faz-me lembrar o saudoso doutor Juvenal Urbino, que rejeitou uma refeição com o argumento de que tinha sido preparada sem amor.

Fernando Caldeira disse...

"Também há ciências puramente conceptuais, como a matemática"

E há mais como ela? Ou será que a Matemática não é propriamente uma ciência?

Desidério Murcho disse...

Sim, há mais.

António Bettencourt disse...

Em relação à questão que refere neste parágrafo:

"os antigos não tinham coisas como relógios e outros instrumentos de precisão que lhes permitissem começar a ver que a aparente irregularidade da natureza escondia regularidades matemáticas surpreendentes."

Penso que não é totalmente verdade. Veja-se por exemplo o caso de Pitágoras que formalizou as teorias ou leis (ainda hoje válidas e utilizadas) dos intervalos musicais aplicando a matemática à observação empírica.

Um comentário anterior refere também Euclides. Talvez em Euclides as coisas sejam mais conceptuais e não tanto relacionadas com o empirismo (que como muito bem diz, sempre existiu). Mas não tenho dúvidas que no caso de Pitágoras e dos intervalos musicais há uma quantificação e sistematização de carácter matemático perante a observação da vibração das cordas.

Anónimo disse...

Galois

Quanto a instrumentos de precisão, os antigos tinham alguns absolutamente notáveis. Um dos mais notáveis de todos (provavelmente um, se não «o», mais notável instrumento feito com os conhecimentos e meios de dada época) é o antiquitera (chamado com muito abuso de «primeiro computador» com a habitual tendência de nomes bombásticos). Mas o instrumento é INCRÍVEL.

Perdemos muita informação sobre os antigos. Alguém dizia que sobre o conhecimento dos gregos a grande palavra definidora é «perda». Sendo assim, a nossa ideia sobre o que eles sabiam é quase sempre pálida, sendo desmentida frequentemente por descobertas tipo antiquitera.

Vídeo aqui: http://www.youtube.com/watch?v=DiQSHiAYt98

Carlos Ricardo Soares disse...

Ainda assim, é notável o extraordinário sucesso de Pitágoras se considerarmos, por exemplo, que nada escreveu para a posteridade e que os sobreviventes da comunidade pitagórica também não terão registado por escrito a tradição pitagórica e que o próprio Aristóteles «não só foi incapaz de distinguir as ideias de Pitágoras das dos seus discípulos como também não conseguiu distinguir as ideias dos primeiros discípulos das ideias dos pitagóricos que viveram mais tarde».

Desidério Murcho disse...

Muito obrigado pela objecção. A geometria tem uma aplicação empírica óbvia; Heródoto considera que os gregos receberam esta ciência dos egípcios, que a desenvolveram por razões pragmáticas. Foram os gregos, contudo, a sistematizaram e lhe deram uma estrutura axiomática.

Por outro lado, os pitagóricos certamente consideravam que a natureza íntima da realidade era numérica; eles estariam em casa na ciência matematizada contemporânea. Só que não podiam aplicar a matemática ao estudo mais geral da natureza, como depois se começou a fazer com Galileu e culminou com Newton.

Ou seja: a ideia de que a realidade tem uma estrutura matemática é antiga. A possibilidade de a pôr em prática é que é mais difícil. E enquanto não se consegue pô-la em prática, você tem alguns filósofos que acreditam nessa hipótese, mas são vistos como tolos precisamente porque se trata de uma mera hipótese, sem grande aplicação que se veja.

Desidério Murcho disse...

Excelente objecção, muito obrigado. É bem possível que a aplicação da matemática ao estudo da natureza tenha sido iniciado pelos gregos, mas não tenham tido o tempo suficiente para o fazer. A civilização grega conseguiu muitas proezas intelectuais, mas é preciso não esquecer que todas ocorrem num período relativamente curto de tempo.

Mas este aspecto ilustra também uma das ideias centrais da minha nota: a história que se conta, segundo a qual os cientistas e filósofos medievais era malucos porque se recusavam a olhar para a realidade para teorizar sobre ela, é apócrifa. Quem sempre se recusa e continuará a recusar a olhar para a realidade são os membros de universidades rígidas e cheias de validações e certificados, mas parcas em inovação e contacto com a realidade. Esta é uma das razões pelas quais me oponho às ideias de David Marçal. Como intelectual e académico, a minha principal preocupação educativa é fazer as pessoas perceber que as validações do estado não têm e não devem ter qualquer peso na nossa avaliação das coisas.

Desidério Murcho disse...

O caso dos pitagóricos é um dos muitos em que há muitas histórias apócrifas. Fazendo um jogo de palavras, sabemos hoje menos sobre eles do que se sabia até aos anos 70 do séc. XX. O que acontece é que quase tudo o que se pensava que se sabia sobre os pitagóricos viu-se mais tarde que se baseava em lendas sem qualquer base histórica.

J. F. Guimarães disse...

Coitada da Ciência com o Ensino e Educação actual deve andar pelas ruas da amargura.
E o Tratado de Pisa só veio ajudar ainda mais ao descalabro.
Hoje em dia ir à escola oficial não passa de uma perda de tempo.

António Bettencourt disse...

É óbvio que quando me referi a Pitágoras num comentário anterior não me estava a referir a uma figura historicamente localizável que se teria chamado Pitágoras. Referia-me a um corpus de conhecimento atribuído a tal personagem, seus discípulos, e até, como muito bem diz o Desidério, a lendas. Penso que isso não invalida a questão que coloquei sobre um exemplo da aplicação da matemática a um fenómeno físico observável que pode não ter partido de um Pitágoras qualquer, mas está tradicionalmente atribuído ao corpus que referi anteriormente. Qualquer historiador de música da antiguidade confirma que esse sistema de intervalos musicais era utilizado na música da antiguidade ocidental.

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