segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Sobre as «raízes»

Em texto anterior, por ter estranhado, notei o uso recente em contexto político do termo «raízes», no sentido social, cultural, étnico, para caracterizar uma pessoa e a sua obra. Reproduzo abaixo a dissertação mais completa e esclarecedora que conheço em torno do termo, da lavra do filósofo Fernando Savater. Nela se faz referência ao papel que a educação deve ter na construção dum entendimento que se distancie daquele que actualmente (ainda) tem.

"Sem dúvida, falar de «raízes» (...) é pura linguagem figurada porque os homens não têm raízes que os cravem à terra e que os alimentem com a substância fermentada dos mortos, mas sim pés para andar, para viajar ou fugir, para procurar o alimento físico ou intelectual onde melhor lhes conviver.

Admitamos contudo, a metáfora que tanto agrada aos nacionalistas («recuperemos as nossas raízes»), aos entusiastas da etnicidade («conservemos a pureza de nossas raízes»), aos integristas religiosos («a raiz da nossa cultura é cristã ou muçulmana ou judaica») e aos integristas políticos («a raiz da democracia está na liberdade de mercado»), etc. Na maioria destes casos, o apelo às raízes significa que devem mondar do nosso jardim nativo quantas ervas nocivas e adventícias turvem a enraizada harmonia do que supostamente foi planeado em primeiro lugar e também que cada qual, dentro de si mesmo, deve procurar aquela raiz própria e intransferível que o identifica e que o torna semelhante aos irmãos do mesmo torrão natal.

Segundo esta visão, a educação consistiria em dedicar-se a reforçar as nossas raízes, fazendo-nos mais nacionais, mais étnicos, mais ideologicamente puros… mais idênticos a nós mesmos e portanto inconfundivelmente heterogéneos relativamente aos outros. A única universalidade que esta argumentação admite é a universalidade das raízes isto é, que todos e cada um de nós temos as nossas, universalmente responsáveis por nos ligar ao que é próprio de nós mesmos e evitar que nos enredemos confusamente em frondosidades alheias.

Mas esta utilização metafórica das raízes pode ser invertida e isso é precisamente o que deve ser realizado pela educação universalista. Porque se, nos deixarmos levar pela intuição e não tanto pela erudição botânica, aquilo em que mais se parecem todas as plantas, entre si, é precisamente nas suas raízes, enquanto diferem, a olhos vistos, pela estrutura dos seus ramos, tipo de folhagem, flores e frutos.

Com os homens passa-se algo muito semelhante, as nossas raízes mais próprias que nos distinguem dos outros animais são o uso da linguagem e dos símbolos a disposição racional, a recordação do passado e a previsão do futuro, a consciência da morte, o sentido do humor etc... em resumo, aquilo que nos torna semelhantes e que nunca falta onde há homens. O que nenhum grupo, cultura ou indivíduo pode reclamar como única e exclusivamente próprio, temo-lo em comum.

Pelo contrário tudo o resto - as variadíssimas fórmulas e praxes culturais, os mitos e lendas os interesses científicos ou artísticos, as conquistas políticas a diversidade das línguas, das crenças e das leis. etc. - são a folhagem variegada e a colorida multiplicidade de flores e frutos.

É o universalista que vai até às raízes profundas que nos tornam comummente humanos, enquanto os diversos nacionalistas, etnicistas e particulares vão sempre de ramo em ramo, fazendo macaquices e buscando restrições.

Vamos levar a metáfora até ao fim, antes de a pôr de lado, como deve ser feito com todas as imagens literárias para que não se convertam em estorvo do pensamento. Sem raízes as plantas morrem irremediavelmente, sem folhagem, flores e frutos a paisagem seria de uma intolerável e estéril monotonia. A diversidade cultural é o modo próprio de a comum raiz humana expressar a sua riqueza e generosidade. Cultivemos a floresta, gozemos as suas fragrâncias e os seus múltiplos sabores, mas não olvidemos a semelhança essencial que une através da raiz o sentido comum de tanta pluralidade de formas e matizes.

Isto deverá ser sempre recordado, nos momentos mais cruciais, quando a convivência entre grupos culturalmente distintos se torne impossível e a hostilidade não possa ser resolvida com recurso às regras internas de qualquer dos «ramos» em conflito (…).

A nossa humanidade comum é necessária para caracterizar o que é verdadeiramente único e irrepetível da nossa condição, enquanto a nossa diversidade cultural é acidental. Nenhuma cultura é insolúvel para as outras, nenhuma brota de uma essencial tão idiossincrática que não possa ou não deva misturar-se com outras, sofrer o contágio de outras. Esse contágio de umas culturas por outras é precisamente o que pode chamar-se civilização (…).

Aquilo a que nos referimos ao falar de civilização e também de universalidade é a essa potencialidade, que cada cultura possui, de transmutar-se nas outras todas, de não ser uma verdadeira cultura sem transfusões culturais das outras e sem traduções ou adaptações culturais das outras. Não se trata de homogeneizar universalmente (um dos pânicos retóricos mais reiterados do nosso século, a americanização mundial, etc.), mas sim de romper com a mitologia autista das culturas que exigem ser preservadas, idênticas a si mesmas, como se todas não estivessem a transformar-se continuamente, durante séculos, por influxo civilizador das outras. Etnocentrismo?

Sê-lo-ia, se só considerássemos a universalidade como uma característica factual da cultura ocidental, em vez de tê-la como um ideal valioso, promovido mas também espezinhado inúmeras vezes pelo ocidente (signifique o que significar este confuso termo).

Não. A universalidade não é património exclusivo de nenhuma cultura – o que seria contraditório – mas sim uma tendência que existe em todas mas que também em toda a parte é obrigada a confrontar-se com o provincianismo cultural do idiossincrático insolúvel, igualmente presente nas latitudes aparentemente mais opostas. A tarefa educativa mais apropriada para o nosso mundo hipercomunicacional consiste precisamente em potenciar essa tendência comum e ameaçada para a variedade, mas não para o tribalismo (…).

Porventura, o afã histérico de ser inconfundível e impenetrável para os outros seja apenas uma reacção face à evidência, cada vez mais óbvia, de que os homens se parecem demasiado, evidência que antes só era sentida por alguns espíritos mais avisados e que hoje é colocada ao alcance de todos através dos meios de comunicação social. Perderam-se assim muitos matizes? Espreita-nos a homogeneidade universal? Não o creio (…). A diversidade está assegurada, ainda que, provavelmente, seja, cada vez mais, desconcertantemente diversa e se vá parecendo, cada vez menos, com as diversidades purificadas com que estamos familiarizados.

Para esse processo inovador é bom que a educação prepare também as gerações que vão vivê-lo. Mas não nos enganemos, o sentido sociológico da nossa actualidade não aponta para o inevitável triunfo «uniformizador» do universalismo. Muito pelo contrário, são angustiantes as demonstrações, aqui e ali, do êxito crescente das atitudes antiuniversalistas, que aliás costumam proclamar-se vítimas da suposta omnipotência universalizante.

O que realmente está hoje em perigosa alta é, de novo, o recurso às origens como condicionamento inexorável da forma de pensar, isto é, dividir o mundo em duetos estanques de índole intelectual. Quer dizer, só os nacionais de uma nação podem compreender as outras pessoas dessa mesma nação, que só os negros podem entender os negros, os amarelos os amarelos e os brancos os brancos, que só os cristãos compreendem os cristãos e os muçulmanos os muçulmanos, que só as mulheres entendem as mulheres, os homossexuais os homossexuais e os heterossexuais os heterossexuais. Cada tribo deve permanecer fechada em si mesma, idêntica de acordo com a sua «identidade», estabelecida pelos patriarcas ou caciques do grupo, ensimesmada na sua pureza de pacotilha."

In Savater, F. (1997). O valor de Educar Lisboa. Edições Presença (republicação pelas Edições Dom Quixote em 2006)

2 comentários:

José Batista disse...

Sim, de acordo com o sentido geral do texto, que parece avisado.
O único ponto que acho discutível é sobrepor a intuição à erudição botânica para afirmar que
"aquilo em que mais se parecem todas as plantas, entre si, é precisamente nas suas raízes, enquanto diferem, a olhos vistos, pela estrutura dos seus ramos, tipo de folhagem, flores e frutos". Há muito quem o sabe melhor do que eu, mas as raízes das plantas diferem muito na sua estrutura, no tipo e na função, tal como os ramos, as folhas, as flores (que são folhas modificadas para permitir a reprodução) e os frutos. As raízes das plantas também evoluíram e diversificaram-se, como se "diversificaram" as raízes biológicas, sociais e culturais humanas. Problema "bicudo"...
Combatamos qualquer forma de chauvinismo sócio-cultural. É nosso dever. Mas sem forçar as metáforas...

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Excelente texto de apreciação! Ora, falar de raízes é considerar a gentileza do florescer e, que de gentileza por compromisso nem a franqueza apaga.

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