segunda-feira, 10 de setembro de 2012

CATEDRAIS DA TERRA

Novo texto do Professor Galopim de Carvalho, que o De Rerum Natura tem muito gosto em publicar.

“Gradualmente, pico após pico, toda a cordilheira se embebia de luz, enquanto o Sol se espraiava e dourava as cúpulas e os pináculos desta catedral de terra”.
Foi assim que a geofísica Louise Young, da Universidade de Chicago, no livro de sua autoria, The Blue Planet, (editado em português pela Editora Presença, em 1986, sob o título O Planeta Azul) se referiu, em bom estilo literário, aos cumes aguçados dos Himalaias, comparando-os às magníficas expressões arquitectónicas da religiosidade humana.

Um dos problemas que, durante mais tempo, intrigou filósofos, naturalistas e, mais tarde, geólogos foi, sem dúvida, a formação das cadeias de montanhas, ou seja, a orogénese, no jargão usado entre pares.

Para Estrabão (63 a.C.-24 d.C.), a existência de “pedras semelhantes a conchas marinhas” no seio nas camadas rochosas das montanhas, eram prova da formação destas a partir da elevação de materiais acumulados no mar, elevação que atribuía ao mesmo fogo central que alimentava os vulcões.

Mil anos depois desta visão, o persa Abu Ali al-Hussein ibn Abd-Allah ibn Sina, mais conhecido por Avicena (980-1037), afirmava que um tremor de terra elevava o solo, podendo criar uma montanha e, dois séculos mais tarde, o alemão Albert von Bollstadt, ou Alberto Magno (1206-1280), de seu nome latino, ensinava, na linha de pensamento do ilustre geógrafo grego, que o calor libertado pelo interior da Terra erguia o relevo, fazendo nascer as montanhas.

Na mesma época, o filósofo italiano Ristoro d’Arezzo (sem qualquer fundamento científico) dizia que as estrelas, ao atraírem a Terra, “como o íman atrai o ferro”, elevavam as montanhas.

No século XV, Leonardo da Vinci (1452-1519) dava um novo salto em frente ao afirmar que as conchas encontradas nas montanhas eram restos de seres vivos depositados no fundo do mar, no que foi corroborado, dois séculos depois, pelo dinamarquês Nicolau Steno (1638-1696). Estes dois mestres do saber deram corpo e força científica a uma ideia vinda da Antiguidade e que se aproxima da visão que hoje de uma parte temos desta problema.

Mas que forças colossais poderiam ter edificado tão extensas e volumosas porções de crosta?

No século anterior René Descartes (1596-1650) explicava a formação das montanhas como uma consequência do arrefecimento da Terra, uma ideia retomada por Pierre Laplace (1740-1827) nos começos do século XIX e por Émile de Beaumont (1789-1874) a meados do mesmo século.

Nesta hipótese admitia-se que, inicialmente em fusão, a Terra, ao arrefecer, teria formado uma crosta sólida, rochosa. Na continuação do seu arrefecimento, o planeta teria reduzido o seu volume e, portanto, também a sua superfície. Tal diminuição implicaria que, por exemplo, dois ou mais pontos da superfície se aproximassem entre si, criando as forças tangenciais de compressão necessárias ao enrugamento.

Podemos ter uma imagem desta concepção, susceptível de a visualizar, numa maçã cuja pele engelha devido à redução de volume, em resultado da secagem do fruto. Em resultado deste tipo de enrugamento por contracção tangencial da crosta estimava-se que, por exemplo, a largura actual da cadeia alpina correspondia apenas a 25% do total da largura dos seus estratos, imaginando-os desdobrados. Tinha havido, portanto, uma contracção tangencial, de cerca de 75%, um valor que apontava para um arrefecimento demasiadamente acentuado para ser admissível.

Por outro lado, uma tal contracção exigiria uma redução de cerca de 2Km, no raio da Terra, o que, segundo os cálculos do geofísico alemão Beno Gutenberg (1889-1960), necessitaria de cerca de 200 milhões de anos, um valor incompatível com a modernidade, conhecida, desta cadeia de montanhas europeia.

Mais de dois séculos depois, a hipótese lançada por Descartes, era ainda aceite pela generalidade dos geólogos, entre os quais, o americano James Dwight Dana (1813-1895) e o austríaco Eduard Swess (1831-1914), dois nomes grandes na história da geologia.

Os primeiros trabalhos verdadeiramente geológicos e as correspondentes reflexões dos estudiosos interessados nesta temática incidiram sobre o estudo das rochas e dos fósseis recolhidos no terreno, relacionando-o com as estruturas particulares de algumas montanhas, tomadas isoladamente.

Uma tal abordagem permitiu conhecer partes das suas histórias, sem que delas constassem as forças, tidas por misteriosas, que as haviam elevado. Nesta perspectiva distinguiram-se, no século XVIII, os trabalhos dos suíços Peter Simon Pallas (1741-1814), nos Urais, e Horace Benedict de Saussure (1740-1799), nos Alpes, e do alemão Johann Gottlieb Lehmann (1719-1767) nas montanhas do Hartz, na Alemanha.

Uma outra grande interrogação, à época, era suscitada pela ocorrência de camadas de rochas, que sabiam ser rígidas, mas que se apresentavam intensamente dobradas, testemunhando uma plasticidade (ductilidade) que não têm nas condições de pressão e de temperatura da superfície a que estão expostas.

A meados do século XIX, o geólogo americano James Hall (1818.1898) explicava a génese de uma cadeia de montanhas como sendo o resultado do enrugamento das rochas sedimentares estratificadas (em sequências cujas espessuras ultrapassam frequentemente os 10 km), depositadas durante centenas de milhões de anos, em grandes bacias, à escala de um oceano, a que deu o nome de geossinclinais.

Na perspectiva do autor, estas bacias eram mais largas do que a cadeia a que deram origem por compressão lateral. Nesta concepção, o correspondente enrugamento chega a reduzir-lhes a largura a metade do seu valor inicial. Segundo Hall, a fase de elevação da cadeia (fase orogénica) que se segue à fase de afundamento e acumulação sedimentar (fase geossinclinal) é muito mais curta, não ultrapassando, em média, os 50 Ma.

A Teoria das Translações Continentais, apresentada em 1912 pelo meteorologista alemão Alfrfred Lothar Wegener (1880-1930), reuniu num todo o trabalho de alguns autores que, isoladamente e de modo incompleto abordaram este tema.

Com esta teoria surgiu uma nova explicação para a génese das montanhas. Segundo esta engenhosa concepção geodinâmica global, que mobilizou a comunidade científica com apoiantes e opositores, os actuais continentes são porções separadas de um supercontinente único (Pangeia) à escala do planeta e afastados entre si. Wegener acrescentava que, na sua deslocação, à superfície da Terra, estes blocos (os actuais continentes) iam empurrando e levando à sua frente os sedimentos depositados no mar, enrugando-os e edificando, assim, as montanhas.

A cordilheira dos Andes, que margina a oeste o continente sul-americano, parece coadunar-se a este modelo concebido para uma deriva de Este para Oeste. Um grave senão deste novo modelo era não ter explicação para as forças capazes de promover as referidas translações. Neste quadro e numa época em que as ideias fixistas estavam ainda muito presentes na comunidade dos geólogos, esta teoria, francamente mobilista, acabou por ser abandonado. Mas não morreu. Adormeceu para acordar meio século mais tarde.

Em 1939, David Tressel Griggs (1911–1974) explicou a formação das montanhas (orogénese) pela existência de correntes de convecção do manto. Este geofísico americano, certamente influenciado pelo conceito de geossinclinal do deu colega e conterrâneo, James Hall, admitia que, numa faixa de convergência, no lado descendente, deste tipo de correntes se formava uma depressão alongada que se enchia de sedimentos, constituindo uma massa de materiais erodidos a partir das terras emersas de ambos os lados e, portanto, menos densa (na ordem de 2,7) do que o substrato oceânico (com uma densidade na ordem de 2,9) em que se afundara.

Se o afundamento atingisse profundidade suficiente (alguns quilómetros) as temperaturas e as pressões tornariam plásticos (dúcteis) os materiais que à superfície são rígidos e, portanto, quebradiços. Terminada a convecção, esta massa tenderia a elevar-se para alcançar o inevitável equilíbrio isostático.

Segundo o autor, a convecção criava a bacia de sedimentação e a isóstase, ao elevar os sedimentos ali acumulados, gerava a correspondente cadeia montanhosa. As respostas às duas grandes interrogações dos geólogos dos séculos XVIII e XIX, estavam parcialmente dada.

Nos anos 60 do século XX, a Teoria da Tectónica de Placas foi um vento que revolucionou as ciências geológicas no seu todo (geologia, geofísica, petrologia e geoquímica, entre outras). Fruto do trabalho de um conjunto de geólogos, geofísicos e geoquímicos interessados nos fundos marinhos (destaque para H.H. Hess, D. H. Mathews; F. J. Vine, J. Tuzo Wilson), realizado nos anos que se seguiram à II Guerra Mundial, esta moderníssima concepção da tectónica global não só encontrou explicação para o alastramento dos oceanos e a deriva dos continentes, como também para a orogénese, relacionando-a com as faixas de aproximação ou de colisão de duas placas.

É o que se passa na cintura orogénica peripacífica, com relevância para os Andes e as Montanhas Rochosas, e na cintura mesogea a que pertencem os Alpes e os Himalaias.

Estas cinturas constituem zonas instáveis, essencialmente formadas por crosta jovem, de idade mesocenozóica. Inicialmente horizontais, como é regra da sedimentação, as camadas desta crosta jovem encontram-se intensamente pregueadas pela compressão tangencial actuante nessas faixas. O Mediterrâneo é exemplo do que resta de uma bacia oceânica residual entre dois continentes em colisão, a África e a Eurásia. O fecho desta bacia continua a elevar os Alpes e conduzirá a uma cadeia montanhosa como é a dos Himalaias.

São conhecidas várias cadeias orogénicas antigas, escalonadas no tempo e anteriores à formação da Pangea. Duas delas tiveram lugar ao longo dos trezentos milhões de anos de duração do Paleozóico e as restantes no decurso dos milhares de milhões de anos dos tempos pré-câmbricos. Das duas orogenias paleozóicas, a mais recente, referida entre os geólogos por orogenia hercínica (do nome de uma floresta, Hersynia silva, na Alemanha) teve lugar entre o Devónico e o Pérmico.

As cadeias correspondentes a esta orogenia tiveram extensão mundial, encontrando-se hoje fragmentadas e deslocadas, em consequência da deriva mesocenozóica (ainda actual).

Na Europa, a cadeia hercínica estende-se pela Alemanha, França, sul de Inglaterra, de onde inflecte para a Península Ibérica e Marrocos. Um ramo desta cadeia está hoje do outro lado do Atlântico, fazendo parte dos Montes Apalaches.

Todo o maciço antigo português, à semelhança do de Espanha, é formado por rochas sedimentares metamorfizadas e por rochas magmáticas, em especial, granitos, que integram essa cadeia, cujo relevo já está muito reduzido pela acção erosiva do tempo que se lhe seguiu (cerca de 280 Ma). Testemunhos ainda imponentes da orogenia hercínica são, entre outros, os Montes Urais, na Rússia.

Mais antiga, a orogenia caledónica (de Caledónia, antigo nome da Escócia) desenvolveu-se ao longo de cerca de cem milhões de anos, entre o final do Câmbrico e o Devónico. Na Europa está representada na Escandinávia, na Escócia e na Irlanda, territórios que são parte de uma cadeia mais longa que se continua na América do Norte, constituindo a outra parte dos Montes Apalaches.

De extensão igualmente global, a orogenia caledónica é testemunhada por cadeias montanhosas já muito degradadas pela erosão, na Ásia, na Austrália, nas Américas e na Antárctica. Ainda mais antigas, as cadeias orogénicas do Pré-câmbrico encontram-se totalmente arrasadas pela erosão, constituindo os escudos [1] e o substrato das plataformas [2].

São as cadeias antigas, anteriores à actual deriva, isto é, as paleozóicas e as pré-câmbricas, total ou parcialmente esventradas e, de há muito, estabilizadas (cratonizadas), que possibilitaram a exposição, à superfície, de rochas geradas em profundidade, no decurso dos respectivos processos orogénicos.

Foram estas antigas montanhas que permitiram aos geólogos compreender a transformação das rochas sedimentares em metamórficas, a deformação plástica de rochas que se comportam, à superfície, como materiais rígidos e quebradiços e, ainda, o magmatismo profundo (plutonismo) e a correspondente formação dos granitos.

Uma tal exposição à superfície dificilmente acontece nas montanhas alpinas, demasiado jovens para revelarem o que ainda guardam nas suas entranhas. Afloramentos de granitos com 10Ma, nos Andes, e 2Ma, no Japão, são ocorrências raras nas montanhas alpinas.

[1] Bloco crustal rígido, à escala de um continente, essencialmente formado por rochas ígneas e metamórficas de antiquíssimas cadeias totalmente arrasadas, que não sofreu deformações orogénicas no decurso dos tempos posteriores ao Pré-câmbrico.
[2] Grandes planuras no interior dos continentes, elevadas relativamente às áreas envolventes, fazendo parte dos escudos pré-câmbricos cobertos por uma sequência sedimentar horizontal, como é, por exemplo, a do Colorado.

Galopim de Carvalho

2 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Está a natureza semelhança: erguera cátedra o conhecimento.

João de Castro Nunes disse...

CATEDRAIS AO VIVO

É nessas catedrais da natureza
no cume das montanhas ogivais
que gosto de fazer a minha reza
sem precisar de ler pelos missais.

Erguendo para Deus o coração,
irrompe-me dos lábios espontânea
a litúrgica voz de uma oração
de lídima expressão contemporânea.

É nas montanhas que me sinto perto
do sobrenatural poder de Deus
sem a interposição de opacos véus.

É lá que apanho notas do concerto
que os astros em sincrónico andamento
entoam para além do firmamento!

JOÃO DE CASTRO NUNES

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