quinta-feira, 1 de março de 2012

A "Balada da Neve", os Velhos e os Doentes


“Quem já é pecador /Sofra tormentos, enfim!/ Mas as crianças, Senhor,/ Porque lhes dais tanta dor?!.../ Porque padecem assim?!...” ( "Balada da Neve", Augusto Gil, 1873-1929).

Em medida do actual governo, passa a contar para efeitos de desconto do IRS apenas 10% de despesas de saúde do contribuinte agravadas por um determinado tecto, enquanto, em anos anteriores, essa dedução abrangia 30% sem qualquer limitação. Ou seja, em Portugal, país de brandos costumes para quem não merece e de mão de ferro para quem não deve, a condição de velho e doente crónico, em vez de ser havida com uma desgraça, passa a ser taxada como um luxo.

Notícias do tempo do consulado de José Sócrates davam-nos conta da possível aplicação de taxas moderadoras diferenciadas em função dos rendimentos auferidos pelos doentes. Ora, como se sabe, o valor do IRS e os descontos para a ADSE (no caso dos funcionários públicos) não são iguais para todos, fazendo com que os que declaram maior rendimento comparticipem em dose maior nas despesas de saúde. Além disso, uma possível bondade de taxas moderadoras diferenciadas seria contrariada, ab initio, pelo facto de nem sempre o valor colectável ser digno de crédito, pese embora o esforço da máquina tributária em contrariar tal situação motivada pela dificuldade em evitar a fuga aos impostos devido a paraísos fiscais e à impossibilidade de acesso a contas bancárias.

Digno de crítica me parece, igualmente, porque afectando pessoas idosas muito diminuídas por doenças graves e/ou crónicas, “com pesares que os ralam na aridez e na secura da sua desconsoladora velhice” (Garrett), uma outra medida do Partido Socialista que defendia uma redução do plafond com as despesas de saúde para efeitos de IRS, penalizando, desta forma, inevitáveis gastos com médicos e medicamentos. Aliás, medida aproveitada pelo actual Governo em terreno previamente adubado pela governação de Sócrates.

Como escreveu Jean-Baptiste Colbert, ministro de Estado e da Economia de Luís XIV, o acto detributar é idêntico ao depenar de um ganso, procurando obter o máximo de penas com a menor gritaria”. Pelos vistos, os queixumes dos velhos e os gemidos dos doentes vítimas desta penalizante redução não serão suficientemente ruidosos para evitar o actual depenar dos que sofrem. Mas não deverá ser obrigação de qualquer governo de rosto humano a constante preocupação com a saúde dos seus cidadãos? Ou seja, a bem ou a mal, como advertiu, já no século XIX, Henry Thoreau, "os cidadãos hão-de aprender que a política não é moral ocupando-se apenas do que é oportuno".

Simples contas de cabeça são suficientes para demonstrar a falta de razoabilidade em deixar adoecer a população por poupança forçada nos respectivos cuidados de saúde que terão como desfecho trágico passar a gastar rios de dinheiro da fazenda pública com o subsequente estado de agravamento de doenças em estratos de pessoas menos abastadas. Aliás, a excepção das grandes fortunas confirma a regra de uma pobreza quase generalizada por um desemprego crescente e diminuição acelerada do poder de compra, fazendo com que a classe média seja substituída por uma legião de remediados obrigados a contar os cêntimos no dia-a-dia gastos para sobreviver com um mínimo de vergonha na cara para não acumular dívidas difíceis de saldar.

É reconhecida a humanização da saúde em países com preocupação de natureza social. Só se ignora em Portugal onde, por exemplo, foi defendida, por Manuela Ferreira Leite, na SIC Notícias (10/01/2012), a medida economicista de serem restringidos os gastos com a saúde, através da não comparticipação estatal de sessões de hemodiálise para maiores de 70 anos. Desta forma desapiedada (em que a partir dos 70 anos de idade os pobres e remediados perderiam o “direito à vida”, consignado no artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos) seriam reduzidas as despesas com as reformas e com a saúde dos portugueses vítimas de letais patologias dos rins.

Mas abandonar os doentes à sua triste sina nem sequer é original. Segundo Séneca (4 a.C – 65 d.C ), “matam-se os cães quando estão com raiva; exterminam-se os touros bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos se nascerem defeituosos e monstruosos. Afogamo-los, não devido ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis “.

Ou seja, por a doença ser tida, ao longo dos tempos, como pesado fardo de uma sociedade que encara a saúde em termos de gastos públicos, os recém-nascidos da Roma Antiga, com malformações congénitas, e os actuais doentes renais, no Portugal do século XXI, com 70 ou mais anos de idade e carências económicas, necessitados da hemodiálise para sobreviver como que se identificariam num destino trágico. Daqui, a reevocação adaptada que faço da Balada da Neve: “Mas os velhos e doentes, senhores governantes,/ Porque lhes dais tanta dor?!... / Porque padecem assim?!...”

6 comentários:

Francisco Domingues disse...

Este texto merece um comentário: é fácil, e talvez demagógico, criticar medidas economicistas e reivindicar cuidados de saúde para os velhos, sobretudo pobres, que não têm como pagar as enormes despesas que as suas doenças, crónicas ou não, implicam. Difícil é tentar um equilíbrio entre o desejável e o possível. Está tudo dependente da economia. Se não produzimos riqueza suficiente, como podemos ter uma saúde de luxo? Se uns ganham escandalosamente (Mexias e Bavas: 3 milhões/ano, Catrogas: 45 mil/mês, Furtados: 30 mil/mês, etc., etc.); se há trabalhadores de 1ª (os dos transportes, da CGD, do BDP, etc., que têm medicamentos gratuitos, complementos de reforma, subsídios de doença, subsídios de especificidade do trabalho, subsídios de comparência, etc., etc.) e trabalhadores de 2ª que são os outros todos; se a justiça não funciona para os ricos mas apenas para os pobres, os advogados apenas defendendo os criminosos ricos porque lhes pagam fortunas, etc., etc.; num país como este de corrupção generalizada, como ter uma saúde totalmente humanizada, em que os mais necessitados teriam a prioridade?

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor Rui Baptista;

Fui Bombeiro Voluntário durante 4 anos, e desses anos, em mais de um ano, em serviço diário (remunerado) no transporte de doentes; na terra onde nasceu Abade Correia da Serra.

Conheço bem o drama e o sofrimento da pessoa doente e dos seus familiares próximos; e em particular o daqueles que fazem tratamento de hemodiálise.

Obrigado pelo post.

Rui Baptista disse...

Numa tentativa de clarificar a minha posição, e em face do interesse do comentário do leitor Francisco Domingues, acabo de publicar um novo post intitulado "Ainda o IRS, os Velhos e a Doença".

Rui Baptista disse...

Sobre o post do leitor Joaquim Manuel Ildefonso Dias, agradeço-o e reconheço o respectivo valor por vir de quem, como diz o povo, "sabe da poda" por experiência própria numa actividade de elevado valor cívico.

Daqui, lanço a pergunta: Quem vive de uma reforma que lhe dá para uma vida decente no caso de ter saúde, será que ela chegará para deslocações, várias vezes por semana, a Centros de Reabilitação, após, por exemplo, um Acidente Vascular Cerebral?

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor Rui Baptista;

É com grande satisfação que leio as palavras que escreveu “actividade de elevado valor cívico” para caracterizar o trabalho dos Bombeiros Voluntários. As suas palavras são exactíssimas, e vejo nelas a expressão exacta daquilo que deve ser o pensamento das pessoas quanto a isso.

As palavras, supérfluas, como por exemplo “experiências riquíssimas de vida” ficam para Outros, pois que, estarão, porventura, em perfeita sintonia com interesses inconfessáveis.

Estas palavras “experiências riquíssimas de vida” são de uma senhora, fervorosa apoiante das NO e dos seus moldes; e são retiradas do seu post “As novas oportunidades e antigos defeitos”.

Vêm esta mistura que faço, de Voluntariado e NO, a propósito do seguinte;

Há, a meu ver, um paralelismo entre o acontece no Voluntariado e o que foi as NO (com outras subtilezas naturalmente, dada a sua natureza distinta); mas que existe na verdade, e que é um problema, muito próprio, também aqui, que vêm do interesse daqueles que tiram proveito da ignorância dos outros, infelizmente.

Cordialmente,

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor Rui Baptista;

No último § quando falo em "Voluntariado" refiro-me a todas as formas de voluntariado.

Ainda a frase “experiências riquíssimas de vida” no sentido em que foi empregue seu post “As novas oportunidades e antigos defeitos”.

O que será uma “experiência riquíssima de vida”, falta-nos um exemplo?

Será um episódio da vida que contenha a dor e o sofrimento?

Será um episódio da vida em que um individuo aprende à custa da sua ignorância e falta de preparação «o aprender batendo com a cabeça na parede» pelo facto de não ter o ensino que deveria ter tido?

Será que as NO é um episódio marcante da vida e constituirá por si também uma "experiência riquíssima de vida"?

É ou não uma frase intimidatória, para quem se atrever a dizer o contrário, e bajuladora para quem a escuta?

etc... muitas outras perguntas se poderiam colocar acerca da frase.

Haverá por certo algum critério que defina o real valor a atribuir a uma determinada experiência na vida, não concorda Professor Rui Baptista?

Cordialmente,

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