sexta-feira, 4 de novembro de 2011

UM CÉREBRO EM FUGA NO SÉCULO XVI


Minha crónica no "Público" de hoje (na imagem, o famoso juramento de Amato Lusitano censurado, tal como está numa cópia da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra):

Completam-se neste ano cinco séculos após o nascimento, em Castelo Branco, não só de um dos maiores médicos portugueses mas também de um dos maiores médicos de todos os tempos. Chamava-se João Rodrigues, nome a que acrescentou o da sua terra natal, vindo mais tarde a adoptar o pseudónimo de Amato Lusitano, nome pelo qual ficou conhecido em toda a Europa.

Na sua época, passou-se a ver a abóbada celeste e também o corpo humano com outros olhos. Em 1543 eram publicados os livros Revolução dos Orbes Celestes, do astrónomo polaco Nicolau Copérnico, e Fábrica do Corpo Humano, do médico belga André Vesálio. Estas duas obras inauguraram a ciência moderna, fundada na observação e na experiência. Esse é, por isso, convencionalmente, o ano do nascimento da ciência tal como a conhecemos hoje. Seis anos antes, o rei D. João III tinha mudado a Universidade de Lisboa para Coimbra (não havia ainda a Biblioteca Joanina, que exibe actualmente uma exposição sobre Amato Lusitano). E, sete anos antes, o mesmo rei tinha estabelecido a Inquisição, que, embora no início quisesse contrariar a Reforma protestante, cedo se virou, entre nós, contra os judeus.

Amato Lusitano era judeu. Não admira, por isso, que tenha saído do país em 1534, nunca tendo regressado. Depois de ter estado em Antuérpia, obteve um lugar de professor de Medicina na Universidade de Ferrara, em Itália, onde, no exercício da dissecação de cadáveres, descobriu as válvulas venosas, uma observação que haveria de conduzir passadas algumas décadas à identificação do papel do coração no sistema circulatório. Tratou o Papa. Morreu, vítima de peste, em Salónica, então no Império Turco e hoje na Grécia, depois de ter passado em errância por várias cidades, como Ancona, em Itália, e Dubrovnick, hoje na Croácia. Tinha apenas 57 anos: a longevidade não era naqueles tempos o que é hoje, graças em boa parte aos progressos da medicina. Vesálio, por seu lado, só viveu 50 anos. Talvez se tenham encontrado, pois um colega e amigo de Amato em Ferrara era irmão de Vesálio (já na altura havia famílias com vários médicos!). Segundo alguns autores, Amato figura até no areópago dos doutores mais notáveis do seu tempo uma vez que aparece na portada do livro de Vesálio, debruçando-se sobre um corpo anatomizado.

As citações existem desde que há ciência. Vesálio conhecia o trabalho de Amato e citou-o para criticar o seu trabalho sobre as veias. Reciprocamente, Amato referiu também várias vezes Vesálio, também num tom crítico. Lê-se numa citação das Centúrias, uma compilação de casos clínicos e a sua obra maior:“Sobre a raiz da China me agrada falar aqui, visto que até agora, que eu saiba, pouco ou nada foi dito e tanto mais que André Vesálio, há poucos dias, publicou um livrinho a que pôs o título ‘A raiz dos chineses’, no qual (poderia dizê-lo sem hostilidade pessoal) nada se encontra, além do título, que diga respeito à raiz dos chinas. Com efeito, todo o livrinho é de Anatomia. Para o entender é necessário o charadista Édipo”. A raiz da China é uma planta trazida do Oriente pelos Portugueses, à qual eram atribuídas propriedades de cura da sífilis. Portugal desempenhou na época um papel extraordinário no mundo, que então começava a ser global, ao trazer e divulgar plantas medicinais de paragens remotas. Na mesma época, outro judeu português, Garcia de Orta, que rumou de Lisboa para a Índia no mesmo ano em que Amato se exilou, citou Vesálio a propósito da referida raiz, nos seus Colóquios dos Simples. Escreve o médico e botânico: “E destouta raiz da China dizem Vesálio e Laguna muitos males dizendo que é podre e sem virtude e que custa muito dinheiro, e não tenho que ver com que custe muito ou que custe pouco, nem que seja cara ou barata, antes me parece bem o que diz Mateolo Senense, que basta para esta raiz ser boa mesinha, tomá-la o Imperador Carlos V e aproveitar-lhe." Pois aqui está um dito bem moderno e que devia ser ouvido nesta época de redução dos orçamentos da saúde: não importa tanto o preço do medicamento, mas mais que o doente se cure.

3 comentários:

Gabriel Oliveira disse...

Supostamente, quando se cita, é porque não vale a pena alterar o que já foi dito e se enquadra na perfeição no que queremos dizer. Ou mais prosaicamente, "não consigo dizer tão bem como disse o fulano tal". Não obstante, é muito frequente, em particular na ciência, parece-me, citar para apontar o erro. Num dos exemplos citados, isso não trazia sequer (aparentemente) nenhum incremento ao raciocínio - veja-se a referência de Amato Lusitano a Vesálio.
O "mundo das citações", em particular no contexto científico, é utilizado com mais frequência para que fins, na sua opinião? Para se alimentarem rivalidades? Para marcar "clubismos" e "pertenças a grupos/escolas/correntes"? Para mostrar que se leu muito e se conhece? Como argumento de autoridade para que o autor se auto-legitime? Gostava de saber a sua opinião sobre isto!

Gabriel Oliveira disse...

Não resisto a um outro comentário (e não pretendendo ser chato): conhece uma obra chamada "Os dias de Saturno", do Paulo Moreiras? É um romance picaresco cuja acção se inicia com um encontro do cozinheiro real com o médico da casa real, cujo nome é João Curvo Semedo, mas que poderia ser Amato Lusitano... apesar de o contexto ser o de D. Pedro II, portanto... um século depois de Amato Lusitano, certo?
O livro retrata também a mútua paixão pela alquimia que unia os dois amigos: cozinheiro e médico. Imagem fértil: que é a cozinha senão alquimia pura e requintada? A feijoada do meu pai faz corar de humilhação qualquer tosão de ouro, e quem o adivinharia, vendo tão pobres ingredientes saltarem para o caldeirão? Deixo-lhe a sugestão: uma crónica sobre a alquimia. E sobre as relações entre a alquimia e as ciências "sérias" (perdoe-me se estiver a dizer algum sacrilégio), ao longo dos tempos.

Cláudia S. Tomazi disse...

A propósito da raiz da China, a diversidade e diria mais da multidisciplinariedade de tantas e tantas culturas ao longo de incursões trazidas, configuraram a ambientação européia perfazendo rotas conhecidas de certa forma, também absorvidas moldaram-se aliando contrastes a notoriedade portuguesa, pois fora o ponto de entrada (impacto) vocação para: unir, conjecturar, assimilar esta dinâmina (auxiliar)e que corresponde de certa forma ao retratado por Vesálio a Centúria.

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