domingo, 27 de fevereiro de 2011

"Ora veja, «livre de valores» não passa de um disparate..."

A introdução da educação sexual no currículo do Ensino Básico, obrigatória a partir do presente ano lectivo, requer a sua operacionalização ao nível de cada escola/agrupamento de escolas (Lei n.º 60/2009, de 6 de Agosto; Portaria 196-A/2010; Decreto-Lei n.º 18/2011, de 2 de Fevereiro).

As orientações mínimas do Ministério da Educação desencadeiam as mais variadas dúvidas entre os professores: de conceptualização, de planificação, de ensino-aprendizagem, de avaliação...

Frequentam acções de formação disponibilizadas por colegas e/ou especialistas - das áreas da saúde, da psicologia e da pedagogia -, numa tentativa de perceberem como devem fazer e desenvolver os projectos para leccionarem a nova componente, projectos estes que podem ser para uso próprio ou para uso de outros professores.

O olhar que deitei por algumas dessas acções de formação e por alguns desses projectos, fez-me perceber que há ideias erradas que se repetem. Uma dessas ideias é da neutralidade educativa: "ser tão neutral quanto possível", "adoptar uma posição absolutamente neutra", "respeitar opiniões sem fazer juízos de valor"...

Ora, acontece que a neutralidade é a negação da própria educação formal: quem elabora o currículo que guia essa educação e quem o usa para ensinar não pode deixar de fazer opções curriculares, ainda que recuse ou negue fazê-las.

Mais, declarar que não se fazem ou não se querem fazer opções curriculares é já fazer uma opção curricular (a de não fazer opções curriculares e de deixar os alunos seguirem o caminho que entenderem, que lhes interesse seguir...).

Sendo a educação sexual, diz-se, guiada por valores, adoptar uma atitude de neutralidade axiológica, uma atitude livre de valores, como diz J. Bronowski, "não passa de um disparate..." (in A responsabilidade do cientista e outros escritos, 181 e 153-156). Vale a pena ler o texto deste matemático e também epistemólogo:

"Ora veja, «livre de valores» não passa de um disparate, dado que a liberdade menos valiosa que há no mundo — e a maior escravidão — é precisamente uma liberdade «livre de valores» (...)
Os conceitos de valor são profundos e difíceis, exactamente porque fazem duas coisas ao mesmo tempo: aglomeram os homens em sociedade e, contudo, garantem-lhes uma liberdade que os torna homens singulares. Uma filosofia que não reconheça ambas as necessidades não pode desenvolver valores e, na realidade, não os admite. Isto é verdade numa filosofia (...) tal como o materialismo dialéctico, em que a comunidade estabelece o modo de conduta do indivíduo; não existe espaço para ele se interrogar sobre o modo como deveria actuar.
É igualmente verdadeiro nos sistemas individualistas (...) tais como o positivismo lógico e o seu derivado moderno, a filosofia analítica (...) Torna-se manifesto que o único critério do verdadeiro e falso que é aceite é o indivíduo, então não há base alguma para um acordo social. A pergunta de como o homem se deve comportar é uma questão social, que envolve sempre diversas pessoas, e, se ele não aceita qualquer evidência nem qualquer juízo senão o seu próprio, não possui os meios para elaborar uma resposta adequada (...).
A falácia que aprisiona o positivista e o analista é a suposição de que ele pode examinar o que é verdadeiro e o que é falso sem consultar ninguém, a não ser ele próprio. Tal facto, evidentemente, inibe-o de fazer qualquer juízo de social. Suponhamos então que abandonamos esta hipótese e reconhecemos que, mesmo na verificação dos factos, necessitamos do auxílio dos outros. Que é que se segue?"

4 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Professora Helena Damião:
A legislação que refere é recente, mas, há mais de meia dúzia de anos já eu e um grupo de professores da minha escola nos inscrevemos numa acção de formação sobre educação sexual, de 50 horas, ministrada por uma formadora de que evito referir o nome. E a "filosofia" já era essa. De tal modo que um problema que a dita formadora colocou aos formandos, um belo dia, consistia nisto:
- Suponhamos que uma aluna adolescente procura um professor com quem tem mais confiança e lhe expõe o seguinte problema: o seu namorado propõe-lhe que ela faça sexo simultaneamente com ele e com um amigo. Que conselho deve esse professor dar à aluna?"
A questão, assim colocada, provocou arrepios em vários formandos, alguns dos quais tinham filhas adolescentes... O que fez com que houvesse quem parasse logo ali a frequência da formação. Outros, porém, acentuaram a improbabilidade de uma tal situação se verificar na realidade e referiram, com veemência, a obrigatoriedade moral de alertar com severidade a aluna para as consequências (im)previsíveis de namorar com um indivíduo capaz de lhe fazer tal proposta...
Pois sabem qual foi a atitude que a formadora, de modo perfeitamente isolado, defendeu? - Segundo ela, o professor não devia dar conselho nenhum, sob pena de se perturbar a auto-construção da personalidade e do "caminho" da aluna. Nem mais.
Os que vivemos a situação ainda agora a referimos, amuidadas vezes...
Como se vê, a loucura é incomensuravelmente monstruosa. E vem de longe...
Também relativamente a isto, e por causa disto, é bom não esquecermos quem são os responsáveis.

José Batista da Ascenção disse...

No (meu) comentário anterior, no penúltimo parágrafo, onde escrevi "amuidadas" devia ter escrito "amiudadas".
Também faltam aspas no ínicio da citação do problema colocado pela formadora.

Cisfranco disse...

É exactamente assim. Uma educação sexual sem valores é um perfeito disparate.Não sei como há formadores que podem ter este tipo de concepção. O Estado demite-se completamente da sua função formativa/apresentação de principios. Não se trata de querer uma orientação seguidista/sectária, mas da formação dos jovens segundo princípios básicos universais. Só com um substrato desta natureza poderá haver uma verdadeira formação, seja em que aspecto for.
Por aqui se vê que isto anda mesmo à deriva. Com formadores como é referido no post, mais vale não haver formação nenhuma.

Anónimo disse...

Concordo com a opinião da Professora Helena Damião quanto ao facto de a neutralidade constituir a negação da própria educação formal. Mas chamaria a atenção para duas coisas. A primeira prende-se com o estipulado pela Lei de Bases do Sistema Educativo que no ponto 3 da alínea a) do Art.º 2 estipula muito claramente algo impossível de cumprir mas que faz letra de lei: “O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.”
A segunda é para o tema em questão: a sexualidade. Ora se podermos identificar princípios gerais que uma sociedade civilizada defende (o primado da dignidade humana, o direito à auto-determinação consciente da vida de cada um, o direito a um desenvolvimento pessoal o mais harmonioso possível, etc.) teremos mais dificuldades de, no quadro de uma acção de educação sexual para crianças e jovens, sancionarmos positivamente ou negativamente determinadas práticas sexuais. Penso que todos comungaremos que a coacção e a violência com objectivos de natureza sexual são intoleráveis. De igual forma, qualquer acto sexual cometido com menores ou com pessoas que não estão em condições de tomarem decisões conscientes também é inaceitável. Mas depois chegamos a uma zona cinzenta em que as opiniões se dividem e nas quais é necessário, de facto, não ser prescritivo e assumir alguma neutralidade. Por exemplo, o coito oral ou anal são moralmente reprováveis ou não? Dever-se-á promover a abstinência sexual entre os jovens até eles se casarem como à 40/50 anos? A masturbação deverá ser considerada um comportamento aceitável ou moralmente condenável? E a lista poderia prolongar-se até chegar ao sexo em grupo, tendo por base o exemplo que foi apontado pelo José Batista da Ascenção. Veja-se o caso do “swinging”: a investigação evidencia que não estamos perante um caso de parafilias (ver http://www.ejhs.org/volume3/swing/body.htm e http://www.springerlink.com/content/t145pu771l17kl76/). Moralmente condenável? Depende do ponto de vista.

PJ

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